Volume 1 – Arco 4

Capítulo 33

Ainda na madrugada, o grupo discutia a futura batalha entre Gurok e Infelix. As chamas de Kaji na forja iluminavam seus rostos cansados.

Xin, com suas expressões marcantes e gestos ágeis, mostrava frustração. Ela não conseguia entender o motivo de alguém usar uma armadura que não pudesse proteger seu usuário.

Gurok, com um leve sorriso no rosto, respondeu de forma calma.

— Sei que não parece, mas essa é a armadura mais poderosa do mundo. Está apenas incompleta.

Todos se entreolharam, surpresos com a declaração. Gurok continuou, observando o brilho das brasas.

— Fabris, seu criador, a projetou para ser resistente contra qualquer ataque mágico. Era a maneira dele de declarar guerra aos magos, com quem tinha tantas desavenças.

A história de Fabris pesava no ar como uma lenda esquecida. O motivo para ele não ter terminado a armadura era devido aos materiais raros, e as ferramentas necessárias para criá-la, que sequer existiam na sua época.

— E seus descendentes de sua família nunca estiveram interessados em finalizar seu trabalho, pois nunca nutriram ódio pelos magos. A armadura acabou sendo largada e esquecida no armazém.

Gurok suspirou, pegando uma luva grossa em seu bolso e retirando de um pequeno frasco de vidro uma pedra metálica, brilhante e platinada, que reluzia com a luz do fogo.

Sebastian, observava a pequena pedra com fascínio.

— Que tipo de metal é esse? — indagou, seus olhos vermelhos refletindo o brilho do mineral.

— Ninguém sabe — Gurok balançou a cabeça, parecendo tão intrigado quanto todos. — É um metal ainda desconhecido. Nem mesmo eu sei suas propriedades exatas.

Lois, que até então observava silenciosamente, cruzou os braços e participou da conversa.

— Possuíamos esse metal abundância em nosso armazém, mas acabamos perdendo tudo. Eu tive que me infiltrar nas minas para procurar por mais, e isso foi tudo que eu encontrei, mesmo com Eldoria sendo rica em minérios raros...

— Se vocês têm o metal, por que não concluem a armadura? — perguntou Kenshiro, sua voz mais forte, tentando entender a complexidade da situação.

Gurok fechou os olhos por um instante, como se as palavras pesassem.

— Porque as ferramentas necessárias para manipular esse metal ainda não existem.

O grupo ficou em silêncio, sentindo o peso da verdade.

— Mas há uma esperança! — Gurok falou subitamente, sua voz agora mais enérgica. Ele olhou diretamente para Erina, que levantou uma sobrancelha, intrigada.

— Como? — perguntou o grupo.

— Anos atrás, um raio caiu aqui e atingiu nosso estoque de metais. A eletricidade criou uma reação que fez os metais se unirem em uma só liga.

— Infelix controla raios... Espera, ele provocou esse raio? — deduziu Erina.

— Sim — disse Lois, friamente. — Ele sabia do projeto. Sabia que a armadura era nossa melhor chance contra ele em um combate direto.

Gurok assentiu, confirmando a veracidade.

— Levou anos pra Lois encontrar todo o metal que precisávamos, e para mim montar a armadura que havia sido danificada. O maior problema agora, é utilizar os raios de Infelix como ferrementas para terminar esse projeto. E um raio comum não será o suficiente, embora ele já consiga causar alguma reação ao metal.

— Como assim? — perguntou Erina.

— O metal é instável perto de qualque corrente elétrica. Eu preciso de um descarga de energia forte o suficiente para o metal se expandir em alta velocidade, cobrindo a armura por completo. Eu preciso que Infelix me acerte com um de seus "super-raios".

Kenshiro, que ouvia tudo em silêncio, finalmente falou.

— E como você pretende sobreviver a isso? Ouvi história que esses "super-raios" já conseguiram quebrar partes da muralha da Capital. E mesmo que seu plano funcione, a armadura seja enfim terminada, acho difícil você sobreviver...

— Estou disposto a arriscar. — Gurok respondeu firme, seus olhos determinados.

Takashi, subitamente notou algo que o incomodou.

— Espere! Se o metal reage ao menor sinal de eletricidade, como você pretende lutar contra Infelix? O metal pode reagir antes que você chegar perto!

— É aí que você entra. Acha que sua mira é precisa o suficiente? — perguntou Lois, com um tom sério.

Takashi bufou, claramente irritado.

— Você só pode estar brincando... — disse Takashi, ainda desacreditando.

Antes que qualquer outra palavra fosse dita, Erina interveio, sua voz firme e confiante.

— Ele consegue. Ele é o Flecha Fantasma! 

Sua declaração deixou Takashi envergonhando, enquanto os demais ficaram surpresos com sua confiança em seu subordinado.

Houve um breve silêncio, enquanto todos absorviam a ideia. Apesar das dúvidas que pairavam no ar, Erina não parecia se abalar. Takashi, no entanto, ainda queria contestar, mas já era tarde demais.

— Então está resolvido. — Lois concluiu, firme.

Mesmo que todos ainda estivessem tensos, era hora de todos seguirem suas partes no plano.

Erina, Takashi e Lois partiriam para mobilizar o povo, enquanto Kenshiro, Xin e Sebastian se preparariam para capturar o governador.

A missão estava apenas começando, mas o peso das decisões já estava sobre os ombros de todos. A manhã se aproximava, e com ela, o destino de Eldoria seria decidido.

***

Takashi estava no topo da torre, o ar seco daquele ambiente de destruição acertando seu rosto. Ele olhava desacreditado com a visão de caos e morte em sua frente.

Suas mãos trêmulas seguravam o arco. Suor escorria de sua testa, não pelo esforço físico, mas pela pressão esmagadora que sentia.

“E seu eu falhar?”, a pergunta ecoava repetidamente em sua mente, como um martelo batendo incessantemente.

De repente, a voz de Erina quebrou o silêncio.

— Foi impressionante como apenas nós dois conseguimos afastar toda a população daquele jeito...

Takashi mal ouviu. Seus olhos estavam fixos no centro da cidade, onde os telhados, chamas, explosões e pessoas se tornavam borrões indistintos. Ele estava perdido em pensamentos. Quando Erina se aproximou e tocou seu ombro, ele deu um pulo, soltando um grito involuntário.

— Erina! Meu deus... Não faça isso, você me assustou!

Erina cruzou os braços, olhando-o com um leve sorriso despreocupado.

— Mas eu estava falando com você o tempo todo. Você estava tão absorto que não me ouviu.

Takashi piscou, surpreso, antes de esfregar a testa com a mão.

— Desculpe... eu só... estava pensando. — Ele voltou seu olhar para o horizonte, uma sensação de impotência crescendo dentro dele. — Por que estamos aqui em cima? Por que não estamos lá embaixo, no meio da ação?

Erina suspirou, aproximando-se novamente.

— Aquele metal... ele é muito sensível. Se estivéssemos no meio da multidão, poderia haver uma reação inesperada. E aqui em cima, você tem uma visão completamente livre.

— E eu já achava difícil acertar um raio... — murmurou Takashi, frustrado.

— As lendas do Flecha Fantasma dizem que ele atingia alvos de distâncias maiores que essa — Erina olhou para o arqueiro, o desafiando.

— Isso seria complicado em qualquer situação, mas... Eu nem posso vê-los direito daqui! — Takashi gesticulou, apontando para o centro da cidade.

— E as lendas também dizem que ele acertava alvos nas menores frestas, mesmo quando a física dizia ser impossível — A voz de Erina carregava uma provocação suave, mas intencional.

Takashi fechou os punhos, suas emoções borbulhando à superfície.

— Por que você está fazendo isso?! — Takashi a encarou com os olhos marejados. — Por que está me pressionando?

Erina parou, surpreendida pela explosão de emoções de seu subordinado. Ela logo suavizou sua expressão. Com delicadeza, ela retirou o capuz de Takashi, expondo completamente seu rosto.

— Desculpa — Sua voz era suave, quase maternal. — Mas você nunca acertará a flecha se ainda estiver em dúvida sobre quem você realmente é.

Takashi desviou o olhar, envergonhado com o peso daquelas palavras.

— Não é tão simples quanto você pensa... — Ele respirou fundo, sua voz quebrada. — Eu... não sei mais quem sou. Eu fui Takashi, e agora sou o Flecha Fantasma. Mas eu não me sinto como essa lenda... Não me sinto digno disso.

— Você quer esquecer Takashi, porque lembrar de sua família e de Kuroda é doloroso — Erina se aproximou um pouco mais, suas palavras suaves, mas firmes. — Mas fugir de sua identidade não vai te levar a lugar nenhum. Você nunca será perfeito como as lendas dizem, mas acho que nenhum de seus antecessores foi igual a lenda diz ser.

— O arco deveria brilhar com energia... mas não acontece nada! Talvez tenha sido Hitoshi quem realmente disparou a flecha naquela caverna, e não eu. — Takashi murmurou, sua insegurança se espalhando como veneno.

Erina inclinou a cabeça, os olhos fixos nele.

— E quando você “viu” a Lois nas barracas?

Takashi hesitou, lembrando-se do estranho episódio.

— Foi... estranho. Como se eu estivesse vendo através de outra pessoa. Mas novamente, não fui eu que fiz aquilo. Não fui eu quem... utilizou daquele poder. Não voluntariamente.

— Se as lendas forem verdadeiras, no início você só será o Flecha Fantasma quando estiver sendo guiado pelos seus mestres — Erina deu mais um passo à frente. — Mas isso não significa que você não poderá se tornar ele completamente um dia.

O peso das palavras de Erina ficou no ar por um momento.

Takashi sabia que a batalha lá embaixo já havia começado, e ele precisava se preparar. Sua flecha, com o metal misterioso preso na ponta, parecia mais pesada do que nunca. Ele assumiu sua posição, tentando ignorar o nó em seu estômago.

— Quando você acha que o raio vai cair? — Ele perguntou, tentando esconder o nervosismo.

— Ninguém sabe. Pode ser a qualquer momento. — Erina respondeu, ainda calma.

— E você continua tão tranquila? Se eu falhar, tudo terá sido em vão! — A voz de Takashi se elevou, quase beirando o desespero.

Erina riu, um riso leve que pegou Takashi desprevenido.

— Acha mesmo que eu confiaria o destino de toda uma cidade somente a você? — Ela o encarou com um sorriso que parecia ao mesmo tempo reconfortante e enigmático.

— O que você quer dizer? — perguntou Takashi, confuso.

— A única coisa que você realmente precisa saber é que, se falhar agora... será expulso do nosso grupo. — As palavras de Erina foram como uma adaga silenciosa.

Takashi sentiu o chão sumir sob seus pés. O medo de falhar e ser exilado agora o consumia. Em um lampejo de dúvida, ele pensou que talvez essa fosse sua chance de sair, de buscar seu verdadeiro sucessor. Mas algo o prendia ali. Ele não queria ir embora. O grupo... eles eram como um ímã, puxando-o para perto, como se ele estivesse preso em um feitiço.

Ele olhou para Erina mais uma vez, sentindo algo estranho no peito. Seu sorriso meigo, sua calma sob pressão... havia algo nela que ele não entendia, algo que o fazia se questionar.

"Erina... O que você é?", ele pensou, confuso e assustado.

Antes que pudesse mergulhar mais fundo em seus pensamentos, um estrondo reverberou ao longe, chamando sua atenção de volta à batalha.

Erina se aproximou de Takashi como uma sombra silenciosa, sua presença serena trazendo um contraste ao caos ao redor. Seu sussurro próximo ao ouvido de Takashi soou quase como um encantamento.

— Esqueça o que está à sua volta e apenas se concentre em seu alvo...

Takashi fechou os olhos, obedecendo cegamente às instruções. A voz de Erina parecia se entrelaçar com o som do vento e dos trovões distantes, guiando-o para dentro de si mesmo.

— Preste atenção em todos os seus sentidos... Não enxergue com os olhos, sinta com seu corpo e mente.

Uma estranha calma começou a tomar conta de Takashi. Sua respiração, que antes estava ofegante, tornou-se suave e controlada. Ele sentiu cada parte do seu corpo com uma clareza quase sobrenatural.

Seus lábios estavam secos do nervosismo, ele cuspiu o excesso de saliva que o incomodava e se concentrou.

O perfume de Erina, misturado ao cheiro metálico e áspero da cidade em chamas abaixo, era perturbador, então ele ignorou seu olfato.

Ele sentiu suas mãos suadas escorregarem levemente sobre o arco, por isso ele as limpou em sua manta. Agora ele segurava o arco com mais firmeza, nenhum acidente poderia acontecer.

O som distante dos trovões ecoava acima dele, como tambores de guerra, trazendo uma tensão que ele quase pudesse tocar. Mas, ao invés de desconcertá-lo, aquilo o ajudava a focar. Sabia que o “super-raio” logo cairia. Ele apenas precisava esperar o momento certo.

— Agora, abra seus olhos — disse Erina, sua voz sondo duplicada, como se fosse outra pessoa falando.

Quando Takashi abriu os olhos, tudo havia mudado. Ele não estava mais na torre. O mundo ao redor se desvanecera como névoa dissipando-se sob o sol. Agora, ele estava diante da cena que temia e ansiava enfrentar: Infelix, com os braços cruzados acima de sua cabeça, olhando para Gurok. Mas algo estava errado. O tempo estava congelado, como se o universo tivesse parado para dar-lhe um momento, uma chance.

“Será que estou sonhando?” pensou ele. Mas, por instinto, sabia que não deveria questionar aquilo. Se ele olhasse ao redor ou tentasse desvendar o mistério do que estava acontecendo, a visão se desvaneceria, e ele perderia sua única oportunidade. Ele precisava deixar aquela visão carregá-lo ao invés de lutar contra. Ele precisava parar de tentar assumir o controle de tudo.

Apenas algumas coisas ele poderi fazer de diferente, começando por ele mesmo.

Seu arco estava abaixado, mas os alvos, Gurok e Infelix, estavam bem diante dele. Ele ergueu o arco lentamente, com um esforço enorme, como se o arco pesasse toneladas, como se a gravidade estivesse tentando puxá-lo para baixo. Seus braços tremiam pelo esforço, e ele sabia que não aguentaria por muito tempo.

— Preciso esperar o raio... preciso aguentar mais um pouco — disse Takashi para si mesmo

Então, ele viu. O raio estava descendo dos céus lentamente, como se o próprio tempo estivesse desacelerado para prolongar o momento. Cada centímetro que o raio avançava era uma eternidade para Takashi, enquanto sua força lentamente o abandonava.

Sua mente gritava para ele soltar a flecha, mas seu coração insistia para ele resistir mais um pouco.

Quando o raio finalmente tocou Infelix, em um instante de pura sincronia cósmica, Takashi soltou a flecha.

***

O tempo voltou ao normal com uma explosão de luz e som. Ele estava de volta à torre, com a cidade à sua volta e Erina ainda estava distante dele. Tudo parecia ter acontecido em um piscar de olhos, mas ele sabia que algo monumental havia mudado dentro dele.

— Takashi? Por que você disparou a flecha? Nem chegou a trovejar! — questionou Erina, confusa e preocupada.

Takashi olhou para suas mãos, ainda sentindo o peso da magia. Ele não podia acreditar no que acabara de presenciar. A flecha que ele havia disparado, deixara um rastro roxo brilhante no ar, um rastro místico que ele havia visto antes, mas nunca acreditara ser capaz de replicar. Era o mesmo rastro das flechas de Hitoshi, o Flecha Fantasma anterior.

“Será que mais alguém está vendo isso além de mim?”, pensou ele, encantado, enquanto observava o rastro desaparecer lentamente no horizonte. Pela primeira vez, ele havia disparado uma verdadeira Flecha Fantasma.

Erina desistindo de conversar com Takashi, após ele ignorar todas as suas perguntas, começou a vestir sua armadura, acreditando que precisaria participar do combate. Mas antes que terminasse de se vestir, o "super-raio" finalmente desceu do céu com um estrondo ensurdecedor, rasgando a atmosfera e atingindo o local exato onde a flecha de Takashi havia caído.

Por um breve momento, Takashi percebeu: ele havia disparado a flecha antes do raio... mas seu instinto, ou talvez a própria magia, já sabia o que estava por vir.

Naquele instante, Takashi soube, não havia mais nenhuma dúvida, que era o Flecha Fantasma. O poder não estava apenas no arco, mas dentro dele.



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