Volume 1 – Arco 4
Capítulo 32: Ecos do Fracasso
Gurok retornava para casa, mais contente do que gostaria de admitir, ser tratado de maneira tão respeitosa — sem ser discriminado — por outras pessoas que não fosse Lois, parecia ter mexido com ele.
Ninguém ousava se aproximar dele. Era um exilado desde o momento que nascera. Ainda que não sentisse empatia ou sensibilidade com a raça que o menosprezava, buscava constantemente ser uma alguém melhor, não replicar tais comportamentos.
Nunca seria agradecido, ou ter sua dor reconhecida. Para ele, bastava uma única pessoa estar ao seu lado.
Por mais que estivesse acostumado com a ausência de civis ao seu redor, havia algo de errado. As ruas estavam vazias demais, como se até o próprio mundo tivesse prendido a respiração.
Então, uma voz familiar cortou o silêncio, impossível de ignorar, como se um feitiço o obrigasse a escutá-la.
— Juiz, Lucan! Eu exijo uma audiência!
Era Lois.
Um relâmpago rasgou o céu, e a luz desapareceu com ele. As construções, as pessoas, até o chão dourado foram tomados por uma escuridão repentina. Somente o palco à frente permanecia iluminado — um foco teatral grotesco, como se tudo fosse uma encenação cruel.
Lois e Lucan discutiam, mas estavam longe demais para que Gurok ouvisse.
Uma sensação incômoda tomou conta de seu corpo. Um arrepio, um frio no estômago.
O perigo se aproximava.
Nada poderia ser feito. O pior dos seus pesadelos estava prestes a se repetir.
Começou a correr. Precisava salvá-la.
Mas seu corpo estava pesado, cansado... deformado. Não conseguia sair do lugar. Via a imagem dos dois se afastando, cada vez mais distantes.
As pessoas ao redor davam passagem, abrindo caminho... Só para insultá-lo.
— Monstro.
— Assassino.
— Fera Verde.
Ignorou cada palavra.
Lois. Ela era a única coisa que importava.
Correu como se estivesse numa maratona sem fim, até que, chegou finalmente ao palco.
Tarde demais.
— “Se uma autoridade é atacada...”
Zzzrrt! Faíscas e energia estalaram, surgindo tanto no palco quanto no próprio corpo de Lucan.
— “...ela tem total direito de revidar...”
— LOIS! SAÍA JÁ DAÍ! — gritou Gurok, os pés afundando no chão, preso, inútil.
Lois olhava para Lucan, assustada. Percebendo que não havia escapatória, voltou-se para Gurok.
— “...da maneira que achar apropriada!”
— Gurok... socorro... — sussurrou. Suas últimas palavras.
A mão de Lucan brilhou com uma luz tão intensa que cegou tudo ao redor.
Desorientado, Gurok ainda se forçava a avançar.
Algo caiu em seus braços.
Quando a visão voltou, viu: era Lois. Queimada. Morta.
O horror o dominou. Abraçou-a, desesperado — e viu o corpo se desfazer.
Cinzas. Voando livremente pelo ar.
Ingenuamente, tentou pegar cada pedaço. Mas escapavam entre seus grandes dedos.
— Parece que, mais uma vez, você não conseguiu fazer nada, Gurok! — zombou Lucan.
— Ha, ha, ha!
— Ha, ha, ha!
— Ha, ha, ha!
A risada ecoava, se multiplicava, vinha de todos os cantos.
Gurok tentava ignorar, queria apenas segurar algum fragmento dela. Qualquer coisa. Mas o último grão de cinzas escapou. E então, o chão cedeu.
Caiu. Num abismo sem fim. Sua prisão eterna.
Enquanto gritava em desespero, seus próprios urros foram se transformando num rugido profundo.
Estava se tornando aquilo que mais temia. Um monstro.
Seus olhos se tornaram completamente verdes.
Era tarde demais.
Nada restava para salvá-lo. E nada do que restava ele queria salvar.
O mundo o oprimira, o julgara, o destruíra. Por que lutar por ele?
Destruição e morte. Era o único caminho.
— Gurok! — A voz de Lois ecoava, ainda que distante.
***
— Gurok! Acorda seu vagabundo! — disse Lois, batendo a porta atrás de si, rudemente.
— Lois...? Você está vi... — Não teve coragem de contar o que sonhara. — Acho que tive uma noite ruim...
— Quer se levantar logo? Temos convidados hoje — Continuava sendo grosseira, como sempre.
Ao colocar os pés para fora da cama, tentou caminhar. Um deles estava inchado e roxo. Quebrado. Buscou nas memórias uma explicação.
Veio como um fragmento antigo. Uma cavaleira, uma perseguição, algo atingindo seu pé, a queda, o impacto... um soco.
Levou a mão ao queixo. Ainda doía.
Olhou para Lois. Ela parecia desconfortável.
— Aquilo... aconteceu de verdade, não é?
— Falamos disso depois — Aproximou-se, havia tristeza no olhar. — Agora vamos.
O quarto de Gurok parecia um arsenal. Espadas, martelos, machados, escudos. Cada arma com um design único, feito com cuidado. Mas nenhuma armadura.
Viviam juntos na grande torre escura de Altunet.
A estrutura lembrava um farol, e por um bom motivo: ali era uma forja. O calor e a luz do fogo aceso noite e dia iluminavam os céus como um verdadeiro farol.
Com Lois ajudando, Gurok saiu do quarto.
No salão principal, um grupo peculiar os aguardava.
Rostos familiares. E, com eles, um conforto inesperado.
— Vocês...? — disse Gurok, surpreso.
— Olá de novo, campeão — cumprimentou Kenshiro.
Sebastian acenou com a cabeça.
(...)
Mesmo sem jeito, todos se sentaram ao redor da forja.
Silêncio.
Começar uma conversa parecia impossível.
— Está bem... — Gurok suspirou. — O que aconteceu hoje? Eu... matei alguém de novo?
— Você não se lembra? — perguntou Erina.
Ele a encarou. Lembrava dela. Era a cavaleira.
— Não. Quando eu me enfureço, perco completamente o controle. É como um sonho. Fragmentado. Confuso.
— Eu explico — disse Lois, sentando-se ao seu lado, mais próxima do que o normal.
***
— ...da maneira que achar apropriada!”
Erina foi a primeira a perceber as intenções de Lucan.
— Kenshiro!
— Já estou indo!
Veio o clarão.
KRA-KOOM! O trovão rasgou os céus.
Lois desapareceu.
Erina brandiu seu gigantesco escudo, deixara ao lado. Protegidos atrás dele, escondidos, estavam Kenshiro e Lois.
— O-obrigada... — disse Lois, ainda sem entender o que havia acontecido.
— Não há... — Kenshiro vomitou sangue em profusão — ...de quê.
Tonto, precisou soltá-la para se apoiar.
Seus subordinados mal podiam acreditar no que viam. O espadachim conseguira atravessar o palco em um único instante para salvar Lois, como se previsse tudo que estava por vir. A sincronia do casal era impressionante.
Mas Kenshiro estava trapaceando.
Os grandes Heróis costumavam treinar por décadas para alcançar tamanha velocidade. Para o espadachim atingir tal feito, o custo físico fora brutal, podendo levá-lo à morte. Seu coração teve de bombear sangue em ritmo absurdo, algo que teria sido letal se não fosse a magia de sua esposa.
O sangue, sem ter por onde escapar, foi vomitado.
— NÃOOOOO! — Gurok avançava, enfurecido, pronto para esmagar o Juiz.
— Não deixem-no se aproximar de Lucan!
Erina hesitou. Ainda não sabia se podia confiar no orc. Havia se arriscado muito salvando Lois, não poderia repetir aquela imprudência.
Lois, desesperada, agarrou o braço da cavaleira.
— Por favor... ele é tudo que me restou.
Erina viu a dor em seus olhos. E cedeu.
— Takashi, Sebastian — ordenou.
Não precisou dizer mais nada. Os dois assumiram sua posição, escondendo Lois e Kenshiro.
Erina então avançou, alcançando Gurok antes que ele saltasse ao palco.
Embora não fosse tão rápida quanto Kenshiro, mover-se com tanta agilidade usando uma armadura pesada era igualmente impressionante.
Mas Lois sabia o que viria. Vira aquilo antes.
— Não podemos deixá-lo aqui... precisamos levá-lo para a torre!
— Acalme-se — pediu Kenshiro, limpando o sangue dos lábios. — Por quê?
Erina soltou o orc. Ele a agarrou no mesmo instante, desferindo golpes furiosos que a afundaram contra o chão.
Apesar do susto, Erina mal sentiu o impacto. Ficou impressionada. Fora a primeira vez que testara aquela armadura sob tamanho perigo.
— Ele vai se enfurecer! Pode acabar matando alguém!
Lois tinha razão. Se Gurok perdesse o controle, Lucan poderia retornar e o conflito escalaria. O nome do grupo se espalharia por todo o continente, não de forma positiva.
— Xin! — chamou Kenshiro. — Avise Erina o que fazer!
Após se levantar e socar Gurok, no meio do tumulto, Erina tentou interpretar os sinais do grupo, mas a gritaria da multidão tornava tudo inaudível. Avistou Xin ao longe, usando sua linguagem de sinais. Com gestos rápidos, explicou o plano.
Erina entendeu.
Tento total atenção do orc, após impedi-lo de atacar uma garotinha inocente, conduziu-o até a torre, desviando-se da multidão e protegendo os civis.
Por fim, nocauteou o orc com um golpe preciso.
***
Sabendo de toda a verdade, Gurok soltou um longo suspiro, aliviado.
— Então ninguém morreu... Ainda bem. Obrigado por isso.
— Acho que o mínimo seria pedir desculpas por ter perdido sua cabeça! — retrucou Lois, cravando o calcanhar no pé roxo e inchado do orc.
Gurok grunhiu de dor, incapaz de responder. A vergonha ainda pesava mais do que o próprio corpo.
Erina, tentando aliviar o clima, puxou assunto.
— E essa torre... o que exatamente é?
— Uma forja — respondeu Lois. — Foi a primeira construção da cidade, antes mesmo das muralhas.
— Como algo tão importante não está sob o controle do Governador? — questionou Zudao, desconfiado.
— Apesar da importância — começou Gurok —, a torre nunca foi realmente parte da cidade. Existem motivos... conflitantes.
O grupo o observou em silêncio, esperando por mais.
— Desculpem... não estou pronto para falar sobre isso agora.
— Foi um dia difícil, né? — disse Erina com empatia.
— “Difícil”? Foi péssimo! — Lois bufou, se levantando e andando em círculos. — Fizemos tudo certo e mesmo assim... Unnrrggg! A única chance real de mudar essa cidade escorreu pelos nossos dedos.
— Vocês podiam vir com a gente — disse Erina, de forma direta.
A proposta pegou todos desprevenidos — exceto Kenshiro e Sebastian, que já pareciam esperar por isso. Gurok piscou, surpreso. Pensava que só Kenshiro era louco o bastante para confiar em desconhecidos.
— Já viram parte da nossa força. Não vejo por que não continuarmos juntos.
A tensão aumentou. Os subordinados de Erina começaram a questionar com olhares e cochichos. Kenshiro, cansado, apenas bateu a ponta das espadas no chão.
Ting, ting, ting.
O som foi simples, mas cortante. Todos se calaram. Ele os observava com olhos frios.
— Não questionem as ordens de Erina. Guardem suas dúvidas. Se eu ouvir algo do tipo de novo... terei que discipliná-los.
Ninguém ousou responder.
Nem mesmo Gurok. Nem mesmo Lois.
— Ai, ai... — uma voz surgiu, leve, brincalhona. — Mestre Kenshiro, pegando pesado de novo...
Uma criatura flamejante começou a surgir da forja. Sua forma era redonda, com olhos grandes e sorriso largo, como um mascote encantado. Mas para quem o via pela primeira vez...
— O QUE É ISSO?! — gritaram Gurok e Lois.
O orc, por instinto, tentou socar o elemental. Inútil. Os punhos atravessavam o fogo sem causar nada.
Kaji o olhava, confuso.
— Como alguém esperava ferir fogo com carne?
Lois, mais prática, agarrou um balde d’água.
— NÃO! — o casal gritou em uníssono. — Se molhar o Kaji, ele vai se irritar!
Enquanto Gurok ainda tentava encostar no elemental, Takashi observava curioso: as mãos do orc não queimavam.
Sem perceber, o casal já os aceitara como parte do grupo.
Embora ninguém admitisse em voz alta, Takashi não conseguia ignorar a sensação incômoda crescendo dentro de si.
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