Volume 1 – Arco 4

Capítulo 32

Eldoria, a cidade dourada, estava irreconhecível naquele amanhecer. O ar, antes limpo e cheio de vida, estava agora saturado com a fumaça dos incêndios. O brilho habitual das ruas fora substituído pelo cinza opressor das nuvens que ocultavam o céu, mergulhando a cidade em um pesadelo de caos e destruição.

Explosões ecoavam pelas vielas, e os gritos de pessoas desesperadas ressoavam, misturando-se com o som abafado de janelas sendo quebradas e estruturas desmoronando.

O golpe havia começado.

Em meio ao tumulto, os nobres, em pânico, gritavam por proteção, tentando de qualquer forma fugir da cidade. Mas as ordens eram claras: ninguém sairia de Eldoria. Os portões foram trancados, e os mercenários, pagos pelo Juiz, bloqueavam todas as saídas.

Guardas em menor número tentavam, em vão, conter a ira da população, mas o avanço do povo era inevitável. O sofrimento de anos se transformara em fúria, e agora, como uma maré, essa fúria tomava conta das ruas.

Lois, movida pela determinação amarga de quem já perdeu demais, caminhava lentamente em direção ao centro da cidade. Seu coração pesava com o custo daquele levante. Sabia que, embora necessária, a revolução traria a morte de muitos inocentes. Cada prédio em chamas, cada vida perdida... tudo fazia parte de um preço que ela se amaldiçoava por ter que pagar.

"Eu preciso terminar isso", pensou. "Antes que Eldoria se consuma por completo."

Chegando ao palco central, Lois encarou a multidão. Eles a olhavam com esperança, alguns em lágrimas, outros com a raiva fervendo. Ela havia liderado o golpe até aquele momento e se tornara um símbolo de liberdade, mas não havia tempo para discursos inspiradores. Precisava agir.

Sem hesitar, sua voz cortou o ar:

— EU DESAFIO O GOVERNADOR E SUA SOBERANIA!

De repente, um trovão ribombou no céu, e um relâmpago caiu diretamente sobre o palco. Mas Lois, preparada, permaneceu de pé.

Das nuvens, o Juiz Infelix emergiu, como uma força da própria natureza, envolto em sua armadura dourada, sua presença imponente e mortal. Seus olhos, vazios de emoção, refletiam apenas desdém.

— Então você sobreviveu... — disse ele, com um sorriso sádico.

Lois ergueu a cabeça, determinada.

— Juiz Infelix, conforme a Lei, eu o desafio pela dominância de Eldoria. Como Juiz, o senhor representa as leis desta cidade e seu governador. Aceita o meu desafio?

Infelix, ainda com aquele sorriso malicioso, estava mais do que disposto a acabar com aquilo. Ele queria ver o sangue derramado. Ele queria saborear a vitória esmagadora sobre a insurreição que ousou desafiá-lo.

— E conforme a Lei, eu aceito o desafio em nome do Governador e como seu campeão! Agora, diga-me, quem eu devo matar primeiro? — Infelix deu um passo adiante, sua voz retumbando.

Lois deu um passo para trás, mas não por medo. Ela estava preparando o terreno. Com voz firme, ela anunciou:

— Eu apresento meu campeão: Gurok!

O murmúrio entre a multidão foi imediato. O orc, Gurok, era conhecido, mas desprezado por muitos. As pessoas esperavam que Lois fosse enfrentar o Juiz pessoalmente, e a escolha de Gurok as deixava desconcertadas.

Ele apareceu lentamente, sua armadura era velha, enferrujada e trincada, um reflexo de sua própria vida de lutas e derrotas.

Infelix gargalhou, uma risada alta e estrondosa.

— Isso é ridículo!

A multidão silenciou completamente quando Gurok se aproximou. O orc parou diante do Juiz, sua postura imponente contrastava com a simplicidade de sua armadura destruída. E então, ele falou:

— Já faz um bom tempo desde que nos enfrentamos pela última vez, irmão.

Aquelas palavras fizeram o silêncio cair como uma pedra sobre a multidão. O burburinho rapidamente se transformou em uma onda de choque. O Juiz Infelix, um símbolo de poder puro e intocável, era, aparentemente, irmão do orc desprezado. As murmurações ficaram mais altas, dúvidas sobre a legitimidade do Juiz começaram a se espalhar.

Infelix, visivelmente incomodado, tentou dissipar as dúvidas.

— Meu pai acolheu você, mas isso não te faz meu irmão. Seu sangue é sujo, Gurok. Você não tem o direito de portar o fardo da nossa família.

Mas Gurok, calmo, apenas continuou.

— É verdade. Você é o legítimo herdeiro, o descendente de Fabris. Mas há algo que você nunca foi capaz de fazer, Infelix. Você nunca criou nada verdadeiramente seu, nem mesmo a sua própria armadura lhe pertence. Ela foi feita para mim, afinal.

Os olhares da multidão mudaram. Infelix, o intocável, estava sendo desmascarado. E isso o irritou profundamente.

Com um pisar de pés, ele chamou novamente o trovão dos céus.

— Chega de conversas! Eu sou o Juiz de Eldoria, e vou matá-lo, como a Lei me permite!

O embate começou.

Quase que em um piscar de olhos, Infelix esmagou o joelho de Gurok, quebrando-o junto da frágil armadura que mal pôde conter o poder do golpe. O orc se ajoelhou, gritando de dor, enquanto o Juiz o olhava de cima, já se considerando o vencedor. O brilho dos raios em sua armadura dourada refletia a frieza em seus olhos.

Infelix não era apenas um condutor da eletricidade; ele era a própria manifestação do relâmpago, dotado de energia e velocidade devastadoras.

— Eu esperava que estivesse melhor equipado para nossa grandiosa luta! — zombou o Juiz, a estática crepitando ao redor de seu corpo.

Mas, subestimando o orc, Infelix se aproximou com a guarda baixa, certo de sua superioridade. Aproveitando esse momento, Gurok, mesmo com a perna destroçada, estendeu seu braço como uma fera encurralada, agarrando o pescoço de Infelix com uma força titânica. Em um movimento rápido, ele levantou o Juiz do chão.

Infelix se debateu, a surpresa e o desprezo se misturando em seu rosto, mas antes que pudesse reagir, foi jogado violentamente contra o solo.

O impacto reverberou pelo campo de batalha, semelhante ao que acontecera a Erina. O chão estremeceu, e o som do choque ecoou, fazendo Infelix cuspir sangue dentro de sua armadura dourada, manchando o interior reluzente.

Era a primeira vez que o Juiz se via ferido em combate.

— É um tolo se pensa que não posso feri-lo... — Gurok rugiu, seus olhos ardendo com a fúria de um guerreiro que não aceitava a derrota.

Infelix, lentamente, se ergueu, ainda sentido o impacto por todo o corpo. Pequenos estalos de eletricidade percorriam sua armadura enquanto ele lutava para manter a compostura. A energia ao seu redor começou a crescer, fazendo o ar vibrar com a tensão.

— Isso não precisar terminar assim, Infelix, meu irmão. — Gurok hesitou por um momento, encarando o irmão. — Desista. Mude quem você é. Ainda dá tempo de ser alguém melhor. Seria uma pena se a linhagem de Fabris se encerrasse com você.

Infelix, ofegante,  começou a gargalhar, seu riso frio e descontrolado reverberando como trovões no ar. A corrente elétrica que envolvia seu corpo aumentou de intensidade, relâmpagos subiam dos seus pés à cabeça.

— De que adianta ter golpes tão poderosos... se você não vai sequer me acertar?! — e, como uma miragem, Infelix desapareceu.

Gurok se pôs em alerta, buscando ao redor, mas foi surpreendido por um soco devastador no rosto, quebrando-lhe o nariz. Sem ter tempo de reagir, outro golpe atingiu seu estômago, e em seguida um gancho no queixo que quase o fez cair para trás.

Infelix reapareceu diante dele, seu sorriso arrogante iluminado pelos raios.

— Sabia que velocidade é igual a força? — ele disse, zombando. — Até parece que você luta em câmera lenta para mim!

O orc, mesmo sangrando e ferido, tentou agarrá-lo novamente, mas Infelix desapareceu mais uma vez, deixando apenas um rastro elétrico no ar.

A cada ataque do Juiz, sua velocidade e a força aumentavam. Cada golpe parecia ser o prenúncio de uma derrota inevitável. Gurok sabia que não resistiria por muito mais tempo. Sua armadura estava se desfazendo e o peso dos golpes estava acumulando danos brutais.

Então, em um movimento arriscado, Gurok mudou de estratégia. Ele colocou sua perna machucada à frente, como isca. Quando sentiu uma leve corrente elétrica aproximando-se, puxou a perna para trás e, aproveitando o impulso, socou o ar com toda a força que lhe restava.

Para a multidão, parecia que o orc havia socado o vazio. Mas, um estrondo reverberou quando Infelix surgiu preso na muralha, seu corpo atingido pelo impacto do golpe.

A torcida, antes silenciosa, explodiu em gritos de incentivo ao orc. Gurok, mesmo enfrentando a fúria implacável de Infelix, mostrava que a vitória era possível.

O Juiz caiu da muralha, ajoelhando-se no chão e vomitando sangue. Pela primeira vez, Infelix estava levando a pior, e a humilhação queimava em sua alma.

"Um soco... apenas um soco... Eu o acertei dezenas de vezes, e ele continua de pé! Não... não... Eu sou o mais forte! Eu sou o Juiz Infelix!" Pensamentos de ódio e desespero o consumiam.

— EU VOU PROVAR PARA TODOS VOCÊS! — gritou Infelix, sua voz agora distorcida, tomada por uma fúria animalesca.

Num piscar de olhos, Infelix desapareceu, e antes que Gurok pudesse reagir, foi arremessado brutalmente ao chão. O Juiz o dominou completamente, socando-o com uma velocidade tão absurda que os golpes pareciam vir antes dos próprios movimentos.

O elmo de Gurok começou a amassar sob os ataques incessantes, enquanto sua armadura se desfazia a cada golpe.

— VOCÊ NÃO É NADA PARA MIM! NADA! — rugiu Infelix, os socos ensandecidos ecoando por todo o campo.

Gurok olhou ao redor, tentando encontrar Takashi ou Erina, seu plano começava a parecer uma falha. A dúvida passou brevemente por sua mente, mas ele a afastou. Não, Erina nunca o abandonaria.

Infelix, imerso em sua própria fúria, ergueu os punhos ao céu e, com uma força titânica, conjurou um relâmpago monstruoso. O "super-raio" caiu com um impacto colossal, engolindo os dois irmãos em um clarão de pura energia.

O som era ensurdecedor, e a luz cegante fez muitos espectadores desmaiarem. O choque foi tão violento que as próprias rochas ao redor da arena se racharam.

Quando a poeira começou a baixar e os ecos do trovão se dissiparam, a multidão, ainda atordoada, ficou diante de uma visão que ficaria marcada para sempre em suas memórias.



Comentários