Volume 1 – Arco 4
Capítulo 29
Enquanto os nobres se deliciavam com os luxos do novo feriado em homenagem a Maximus, os pobres e miseráveis estavam enfiados nas profundezas de suas cavernas. Era a rotina de sempre, como uma marca cruel do destino.
Mesmo que os festejos dos ricos ecoassem nas encostas, interrompendo o silêncio da noite, era a fome que mantinha os olhos dos desfavorecidos abertos, uma vigília perpétua que os atormentava.
Subitamente, o som de passos ecoou nas cavernas, quebrando o mormaço que impregnava o ambiente. Guardas mascarados surgiram das entradas, empurrando e forçando os necessitados para o fundo, como gado indo para o abate.
As cavernas eram interligadas, e em pouco tempo, todos estavam amontoados em um único espaço apertado, o medo crescendo à medida que as saídas eram cortadas.
Um idoso, frágil e curvado pela doença, tomou coragem para falar, sua voz fraca trêmula de pavor:
— O que vocês farão conosco? — perguntou, sabendo que a resposta poderia ser a última coisa que ouviria.
— Estamos apenas ‘limpando’ a cidade! — disse um dos guardas, com a voz fria e impessoal, abrindo um galão de óleo e ascendendo um isqueiro.
O pânico começou a se espalhar como uma onda silenciosa, mais forte do que qualquer grito.
Mulheres, crianças, os idosos doentes, todos podiam sentir o cheiro de sua própria morte se aproximando. A verdade é que suas vidas nunca foram mais do que sombras do que deveria ser uma existência digna. Sempre presos na sujeira, na doença e na fome, a morte parecia apenas uma extensão natural de sua desgraça, uma conclusão esperada para um sofrimento prolongado. E enquanto muitos se encolhiam, aterrorizados, alguns aceitavam aquele fim com um estranho alívio, como se o fogo fosse o descanso que a vida lhes negou.
Eldoria, no dia seguinte, seria apenas uma cidade de ricos. Essa era a promessa, e bastavam dois guardas para realizar o extermínio de toda a população plebe e fraca.
Mesmo em número esmagadoramente superior, ninguém ousava resistir. Nenhuma mão se levantou para deter os guardas. Era como se algo invisível os impedisse de agir, como se suas correntes fossem tão mentais quanto físicas. Eles eram prisioneiros de si mesmos, amarrados por uma fraqueza que não entendiam, incapazes de usar a chave que permanecia em suas mãos.
E então, uma luz dourada brilhou atrás dos guardas, acompanhada pelo zumbido de estática. As pessoas, tomadas pelo pavor e pela esperança, começaram a se ajoelhar, acreditando que o Juiz Infelix havia chegado para salvá-los. Mas, para seu espanto, a figura que se aproximou era outra.
Uma cavaleira, vestida com uma armadura dourada semelhante à do Juiz, mas de contornos femininos, avançou com uma postura firme e decidida. Ela irradiava tranquilidade, em contraste com o medo que o Juiz costumava inspirar. Com um único movimento, um clarão ofuscante surgiu, e os guardas desapareceram, varridos em um instante.
A multidão, perplexa, olhava para a cavaleira como se estivesse diante de um milagre.
Quando ela retirou o elmo, revelando seu rosto, muitos gritaram em choque.
— Pensávamos que estivesse morta!
— Ela voltou do inferno!
Era Lois.
A reação das pessoas não era o que ela esperava, mas ainda assim, ela tinha um papel a desempenhar. Ela precisava dessas mentes fracas e quebradas para seu golpe, e faria o que fosse necessário para controlá-las.
Assumindo uma postura quase divina, Lois começou seu discurso:
— Vocês têm razão. Eu morri — sua voz era firme, quase serena. — Mas eu não fui para o inferno. Eu voltei dos céus, carregando os mesmos poderes daquele que me matou. Eu voltei para libertá-los.
O silêncio que se seguiu foi perturbador, mas logo uma voz ousou quebrar o clima de reverência:
— Nós não somos escravos... Vivemos na cidade mais rica do mundo!
Lois sorriu, um sorriso afiado como uma lâmina.
— É mesmo? Eu não acabei de salvá-los dos guardas? — disse ela, desafiadora.
— Isso deve ter sido um engano! — insistiu outra pessoa, a voz trêmula. — O Juiz e o governador nunca fariam mal a nós. Eles precisam da gente para extrair as gemas.
Lois riu, uma risada seca e dura.
— Será? — disse ela, com uma calma perigosa. — E se eu dissesse que, em poucos dias, o governador já terá negociado com o Império novos trabalhadores para substituí-los?
O choque silencioso tomou conta da multidão. As correntes que os prendiam pareciam apertar ainda mais, mas Lois sabia que estava quase lá.
As pessoas começaram a encarar a realidade: elas não significavam nada para aquele governo e seus empregadores. Porém, essa verdade era pesada demais para ser reconhecida.
— Nós iremos falar com o Governador! Vamos propor a ele um salário menor!
— Sim, sim. Qualquer coisa é melhor do que a morte...
Lois sentiu sua raiva inflamar. Como seu próprio povo podia ser tão submisso e dependente? Aqueles miseráveis, implorando para apertarem ainda mais suas correntes.
A imagem de seus companheiros, que haviam sacrificado suas vidas para proteger aquelas famílias, invadiu sua mente.
“Eles morreram lutando”, pensou Lois “enquanto essas pessoas se ajoelham sem resistência.”
Ela ergueu a voz, suas palavras sendo mais poderosos que um trovão.
— O QUE MAIS FALTA SER TIRADO DE VOCÊS?!
O grito ecoou nas cavernas, deixando todos em silêncio. Olhares envergonhados encontraram o chão, mas logo alguns tentaram se justificar.
— Já houve casos de trabalhadores que se tornaram nobres. Talvez possamos conseguir também!
— Ou podemos ter a sorte de casar com alguém da nobreza!
— Talvez, se trabalharmos mais duro, eles nos reconheçam... Quem sabe não recebemos um aumento um dia?
Lois estreitou os olhos. Essas pessoas são cegas. Suas vozes ecoavam os mitos de uma sociedade que jamais se importara com elas. Cada frase só aumentava seu desprezo pela ilusão em que viviam.
— Vocês ainda acreditam nessas mentiras? — Lois vociferou, segurando os pingentes e correntes de seus antigos camaradas que ficavam presos em seu pescoço. — Seus pais e avós acreditaram, e morreram de doenças ou de fome. Seus filhos terão o mesmo destino, se continuarem aceitando esse destino.
A verdade nas palavras de Lois começou a penetrar nas mentes deles.
Algumas pessoas trocaram olhares, lembrando-se de familiares perdidos, de doenças que os mataram sem piedade, de uma fome que nunca os deixava.
— Mas Lois... — uma voz hesitante se levantou. — O Juiz é invencível. Ele tem o poder dos céus e um exército mercenário. Se lutarmos, morreremos. Aqui, ao menos, continuamos vivos.
Lois observou a hesitação nos olhos de seu povo. O medo da morte era algo que ela podia entender, algo que ela mesma enfrentava todos os dias. Mas viver como eles viviam? Isso não era vida.
— Se a fome, a doença, e a miséria ainda não são motivos suficientes para vocês se revoltarem... — Lois disse, sua voz fria e firme. — Então fiquem em suas cavernas. Vivam, por mais um pouco de tempo. Mas quando vocês morrerem, e seus filhos e netos se perguntarem quem permitiu que eles sofressem tanto, eles saberão que foram vocês.
Um silêncio pesado caiu sobre eles. Eles sabiam, no fundo, que Lois estava certa. Eles eram os responsáveis por perpetuar aquele ciclo de sofrimento.
— Ou... — Lois continuou, sua voz agora mais suave, mas ainda carregada de força — aproveitem essa última chance. Lutem ao meu lado. Não por riquezas, mas por dignidade. Pela vida que vocês e seus filhos merecem.
Algumas pessoas começaram a se levantar, lentamente, movidas pela força das palavras de Lois. Mas uma dúvida persistia.
— E que garantia você nos dá? — alguém perguntou, sua voz cheia de desconfiança e até desprezo. — O próprio governador era um de nós... E nos abandonou. Como podemos confiar em você? O que você nos promete em troca de nosso apoio?
Lois ficou em silêncio por um momento, refletindo. Ela sabia que não podia prometer uma vida de luxo. Mesmo que vencessem, a desigualdade poderia ainda persistir. Mas havia algo que ela podia prometer, algo simples e vital.
— Saúde. Terras. E pão.
A resposta pairou no ar, deixando a todos confusos.
— É isso que posso prometer. — Lois prosseguiu, sua voz firme. — Saúde, terras e pão. Sob o meu governo, vocês terão os cuidados para não morrerem mais pelas doenças que os consomem. Vocês terão suas próprias terras para viver e cultivar, mesmo que seja fora das muralhas. E garanto a vocês, fiquem comigo, e jamais sentirão fome outra vez!
O silêncio se instalou por alguns segundos. Apenas as crianças, inocentes e crédulas, comemoraram primeiro. Mas logo os adultos começaram a se unir aos gritos de celebração.
A caverna inteira foi preenchida com o som de aclamação, as vozes se unindo, não pela promessa de riqueza, mas pelo juramento de uma vida com dignidade.
Lois observou seu povo, agora com as esperanças renovadas. Finalmente, ela havia conseguido. Eles não lutariam mais pela sobrevivência, mas por um futuro. Um futuro onde seus filhos poderiam viver com a cabeça erguida. Um futuro a qual ela governaria.
***
Agora, a revolução estava selada. Armados com ferramentas de mineração, e as armas improvisadas que Lois lhes ensinou a criar, garrafas incendiárias e explosivos caseiros, eles estavam prontos.
Sabiam que enfrentariam guardas armados e treinados, mas pela primeira vez, sentiam que poderiam vencer. Estavam dispostos a morrer para conquistar o que ninguém jamais lhes fora oferecido.
Quando o sol estava prestes a nascer, o grito de Lois ecoou nas cavernas, um chamado à guerra.
Explosões e incêndios começaram a rasgar o céu, despertando os nobres que dormiam após suas celebrações.
A revolução não terminaria até que Eldoria pertencesse novamente ao povo, ou até que todos os revolucionários tivessem perecido em nome de seu sonho de Saúde, Terras e Pão.