Volume 1 – Arco 4

Capítulo 28

O céu sobre Eldoria se partiu com o som de um trovão devastador. Um grande relâmpago caiu violentamente no centro da cidade, iluminando a praça com um brilho antinatural. Gurok, atordoado e confuso, se virou instintivamente para a origem do clarão e viu Infelix no palco, imponente como um deus.

“Por que ele estava ali?”, Gurok não sabia ao certo. Tudo parecia distorcido, como se a realidade estivesse se moldando ao redor do seu medo.

Ao se aproximar, ele avistou Lois. Ela estava em cima do palco, confrontando o Juiz, seu rosto tenso e desafiador, mas não era possível ouvir o que diziam. As palavras eram apenas ruídos distantes, distorcidos, como se a própria cidade estivesse engolindo suas vozes.

De repente, para sua surpresa e temor, viu Lois acertando o rosto de Infelix. O impacto soou ensurdecedor, como um tambor ressoando em sua mente, e ele imediatamente percebeu um erro havia sido cometido. Seu coração disparou, e o terror o invadiu. Sabia o que viria a seguir.

Ele gritou o nome de Lois com toda sua força:

— LOIS! SAÍA JÁ DAÍ!

Mas o som da sua própria voz se perdeu no ar como um eco abafado. A multidão ao seu redor se tornava cada vez mais nebulosa, suas faces se dissolvendo em borrões indistintos.

Gurok começou a correr, mas o chão sob seus pés parecia de borracha, esticando-se cada vez mais longe a cada passo que ele dava. O palco, que estava tão perto um segundo antes, agora parecia tão distante quanto o horizonte.

Ele não conseguia ver. O caminho à sua frente continuava a se esticar, infinitamente, e Gurok corria com todas as suas forças, empurrando pessoas que não existiam, gritando por socorro que ninguém poderia ouvir. O pavor crescia em seu peito, sufocando-o, à medida que o palco, Lois e o Juiz se tornavam sombras inalcançáveis.

E então, ele ouviu. Claras e nítidas, as palavras de Infelix cortaram o ar, como se tivessem sido sussurradas diretamente em sua mente:

— “Se uma autoridade é atacada, a mesma tem o direito de se defender com o que achar mais apropriado!”

A voz soava distorcida, como se viesse de todos os lados ao mesmo tempo, cada sílaba reverberando em sua cabeça.

— E já que me atacou com toda a sua força... Eu farei o mesmo!

Desespero puro tomou conta de Gurok.

Ele empurrou com mais força, sua respiração acelerada, o suor frio escorrendo por sua pele. O caminho finalmente começava a encolher, e ele acreditou, por um instante, que poderia alcançá-la.

Lois virou-se para ele, seus olhos desesperados encontrando os dele. Ela estendeu a mão, seus dedos tremendo, implorando silenciosamente por sua ajuda.

— NÃO!

Mas antes que pudesse tocá-la, o céu explodiu em luz. Um clarão cegante iluminou o mundo, seguido pelo estrondo de um trovão que vibrou pelos ossos de Gurok. Quando a luz diminuiu, Lois não estava mais lá.

Ela havia sido pulverizada.

Tudo o que restava dela eram fragmentos de poeira flutuando no ar. Gurok, desesperado, tentou pegá-los, suas mãos grandes e desajeitadas tentando segurar o impossível. Mas os pequenos pedaços de sua amiga se desvaneceram entre seus dedos, escapando como areia entre suas garras. Cada grão que caía parecia uma parte de sua alma se desintegrando junto.

E então veio a risada.

Infelix gargalhava, um som distorcido e monstruoso, que não parecia humano. A risada encheu o ar, ecoando de todas as direções, invadindo sua mente.

O riso não parava.

Quanto mais alto se tornava, mais o mundo ao seu redor desaparecia. As luzes da cidade se apagaram, as ruas se dissolveram e a multidão se desfez no vazio.

Agora, havia apenas escuridão. E o riso. Sempre o riso.

Gurok estava sozinho, perdido naquele abismo negro, com nada além da voz do Juiz Infelix preenchendo sua cabeça. A sensação de impotência esmagava seu peito, como se ele estivesse sendo engolido pela própria culpa. Ele tentou gritar, mas nada saiu.

Ele estava preso. Sem Lois. Sem saída.

E a risada, fria e imortal, o perseguiria para sempre.

***

Gurok despertou em seu quarto, ofegante e ainda sentindo o eco do pesadelo em sua mente.

Seu corpo estava pesado, suado, mas logo se deu conta de que estava em um lugar familiar: seu quarto.

As paredes estavam cobertas de ferramentas, armas e armaduras de diferentes estados: algumas praticamente sucata, outras tão bem-feitas que poderiam estar em exposição em um museu. O ambiente era um caos, mas um caos que ele conhecia bem.

"Foi tudo um sonho?", Gurok se perguntou, ainda com o coração disparado.

Ao tentar se levantar, seu pé cedeu, e ele desabou no chão com um estrondo que fez até as espadas penduradas nas paredes tremerem.

Ele grunhiu, confuso, segurando o pé dolorido, lembrando vagamente de uma perseguição e de uma cavaleira de armadura negra.

Antes que pudesse refletir mais sobre o estado do seu pé, a porta do quarto se escancarou e Lois entrou furiosa, batendo a porta com força.

— Não consegue dormir sem fazer barulho?! — ela gritou, com os braços cruzados e uma expressão irritada.

Gurok levantou a cabeça, ainda no chão, olhando para ela com olhos arregalados de surpresa e alívio.

— Lois! Eu pensei que... — ele se interrompeu, coçando a cabeça. — Devo ter tido um pesadelo...

— Pesadelo ou não, você faz mais barulho acordado do que dormindo! — disse Lois, impaciente. — Agora levanta logo e se apresente decentemente para nossos convidados!

Gurok piscou, confuso, tentando processar o que ela havia dito.

— Convidados? Que convidados?

Antes que pudesse protestar mais, Lois se posicionou embaixo de um dos braços do orc gigantesco, tentando ajudá-lo a levantar. Claro, ela era muito menor que ele, mas a determinação de Lois era quase tangível. Ela não iria desistir de tentar levantá-lo, mesmo que isso fosse fisicamente impossível.

— Anda, Gurok! Não me faça passar vergonha na frente deles! — disse ela, tentando parecer inabalável, mas claramente lutando para não ser esmagada pelo peso do orc.

Finalmente, Gurok conseguiu se equilibrar, ainda cambaleando um pouco, e seguiu Lois até a forja, onde encontrou Kenshiro, Sebastian e o restante de seu grupo. A cavaleira, que ele lembrava vagamente de ter visto antes, estava lá; era a líder.

O ambiente estava cheio de calor e o brilho das chamas da forja iluminava o local com uma luz vibrante. A grande torre negra de Eldoria, com sua forja eterna alimentada por gases inflamáveis, era uma obra imponente.

— Eu queria me desculpar pelo que aconteceu mais cedo... — começou ele, nervoso, até que seus olhos se arregalaram quando viu algo se manifestando na forja. — Eu... O QUE É ESSA COISA?!

Ele apontou para Kaji, o elemental de fogo, com uma expressão de puro pânico. Sem conseguir se conter, Gurok deu um passo para trás e caiu da cadeira com um baque pesado.

O grupo não conseguiu conter o riso. Kenshiro deixou escapar um sorriso discreto, enquanto Erina e Sebastian gargalhavam abertamente. Até Xin, que normalmente era mais discreta em suas emoções, não conseguiu evitar um sorriso.

Qualquer tipo de tensão que poderia existir no ambiente, acabou por desaparecer naquele instante.

Lois, entretanto, não estava nada satisfeita. Ela marchou até o orc, puxando-o pela orelha com toda a força que seu pequeno corpo permitia.

— Você pode, por favor, parar de me fazer passar vergonha?! — disse ela, quase rosnando.

Ainda tentando entender o que estava acontecendo e claramente desconfortável com a presença flamejante de Kaji, Gurok finalmente conseguiu voltar à sua cadeira, massageando a orelha dolorida e tentando evitar outro incidente.

Um silêncio esquisito tomou conta da sala por alguns segundos, com apenas o som das chamas da forja e o chiado da carne assando no fogo quebrando o clima. Finalmente, ele respirou fundo e perguntou:

— O que foi que aconteceu? Como Lois sobreviveu?

Erina sorriu e começou a explicar os eventos que Gurok não havia presenciado, enquanto Lois revirava os olhos, ainda resmungando sobre o orc.

***

— "Se uma autoridade é atacada, a mesma tem o direito de se defender com o que achar mais apropriado!" — a voz de Infelix ecoou pela praça, carregada de frieza. — E já que me atacou com toda a sua força... Eu farei o mesmo!

O coração de Kenshiro pulsava forte em seu peito. Ele conhecia bem Erina, sua esposa. Cada mínimo gesto, cada suspiro sutil. Ele sabia o que viria antes que as palavras saíssem de sua boca.

— Kenshiro, vá agora! — ordenou Erina, com a voz firme, mas o olhar aflito.

Sem questionar, ele reagiu no mesmo instante, o corpo movendo-se por instinto. Kenshiro era um espadachim veloz, alguém que treinara sua vida inteira para momentos como aquele. Seguir ordens cegamente, confiar na intuição e não perder tempo.

O clarão do golpe de Infelix ofuscou os sentidos de todos, mas Kenshiro já estava em movimento. Seus pés praticamente flutuavam sobre o chão. A adrenalina queimava em suas veias, e cada passo parecia mais rápido que o anterior. Ele não podia falhar. Não naquele momento. Se errasse, Lois morreria.

Enquanto o som de estática tomava conta do ar, Kenshiro vislumbrou Lois no palco, pequena e indefesa diante de Infelix. Ela nem sequer percebeu o que estava prestes a acontecer, perdida em meio ao caos. Mas ele viu. Viu cada detalhe da cena se desenrolando em câmera lenta diante dos seus olhos. Ele tinha que chegar lá.

Um trovão retumbou logo em seguida. Quando as pessoas conseguiram abrir os olhos novamente, Lois havia desaparecido do palco.

Kenshiro estava ofegante, com Lois agora segura em seus braços. Em um único instante, ele havia atravessado a multidão, pegado Lois e se escondido atrás do gigantesco escudo de Erina. Ninguém viu ou sentiu sua presença. Foi rápido demais. Tão rápido que nem o próprio Kenshiro tinha noção da velocidade que alcançara.

Mas o preço veio rápido.

Uma dor insuportável perfurou o peito de Kenshiro. Seus pulmões arderam, o ar que tentava puxar não parecia existir. Em questão de segundos, ele cuspiu litros de sangue, suas pernas fraquejando. Kenshiro sabia que a manobra havia sido um sucesso, mas ele também sabia que seus pulmões explodiram no processo. Cada respiração agora era um esforço agonizante.

Lois, ainda atordoada, olhou para Kenshiro com uma expressão confusa e agradecida. Ele queria sorrir, dizer que estava tudo bem, mas não conseguia falar. O esforço foi tanto que sua visão estava ficando embaçada, o sangue ainda pingando de seus lábios.

A magia de Erina, que antes estava garantindo que Kenshiro não morresse, agora estava o curando efetivamente. Kenshiro suspirou, exausto, o gosto metálico do sangue ainda presente em sua boca. Ele viveria mais um dia, mas sabia que o sacrifício de suas habilidades cobraria um preço eventualmente.

— SEU... DESGRAÇADO! — rugiu Gurok, em sua fúria.

Infelix abriu os braços, um sorriso sádico no rosto, provocando Gurok como quem espera ser atacado.

— Não deixem que ele encoste em Infelix! — implorou Lois, vendo a situação se agravar rapidamente.

Erina e os outros reagiram de imediato. Ela correu em direção a Gurok, agarrando-o por trás antes que ele pudesse cair na armadilha de Infelix. Kenshiro, ainda sem forças para se levantar, apenas observava, confiante que Erina lidaria com a situação.

Xin e Takashi, rápidos e ágeis, protegeram Lois enquanto Gurok começava a perder o controle. Kenshiro sentia o mundo girar ao seu redor, cada segundo um esforço para manter a consciência. Ele sabia que seu papel ali havia acabado.

— Gurok vai entrar em modo berserker... Precisamos levá-lo até a antiga torre antes que ele mate alguém! — disse Lois, lutando para se manter calma.

Xin explicou rapidamente o plano para Erina, suas mãos gesticulando com uma precisão perfeita, as palavras seriam inúteis em meio ao barulho da multidão.

Erina agiu sem hesitar, concluindo o plano com eficácia. Gurok, em sua fúria, tropeçou e quebrou o pé, caindo ao chão com um estrondo. Antes que pudesse se levantar, foi nocauteado por Erina.

***

Agora, ciente de tudo que havia ocorrido, Gurok finalmente se acalmou. Ele estava aliviado por não ter matado ninguém, igual a última vez que havi surtado.

Ele tentou pegar um pedaço de carne que lhe parecia suculento, mas a dor no pé quebrado impedia movimentos ágeis. Observando isso, Kaji, o elemental de fogo, gentilmente se aproximou e ofereceu o pedaço gorduroso ao orc.

— Obrigado, elemental, — disse Gurok, com uma voz mais tranquila, aceitando o gesto.

Kaji então se voltou para Erina e Kenshiro, esperando pela permissão deles antes de se apresentar formalmente. Erina assentiu, e Kenshiro manteve seu olhar sério, como de costume.

— Eu me chamo Kaji, é um prazer conhecê-los, Gurok e Lois, — disse ele, com um sorriso cordial.

A atmosfera relaxou um pouco enquanto todos se entregavam ao churrasco, compartilhando histórias curtas e descontraídas. Era um raro momento de paz em meio ao caos que haviam passado.

— E o que farão agora? — perguntou Kenshiro, quebrando o silêncio. — Tentarão novamente as eleições?

Lois suspirou, seu olhar refletindo a frustração de uma derrota difícil de engolir.

— Não. Aquela era a única chance que tínhamos... — respondeu Lois, com amargura na voz.

O comentário fez o grupo cair em um breve silêncio. Erina, já se preparando mentalmente para os desafios futuros. Com uma expressão endurecida, falou:

— Eu não queria começar uma guerra contra uma cidade logo de início, mas não vejo outra alternativa.

Lois, inquieta, franziu o cenho, claramente refletindo sobre o que Erina disse. Seus pensamentos pareciam emaranhados até que algo estalou em sua mente. Uma ideia perigosa, tomou forma.

— E se... — começou Lois, chamando a atenção de todos, sua voz hesitante, mas decidida. — Ao invés de vocês declararem inimizade contra Eldoria, vocês me ajudarem a iniciar uma guerra civil?

— O QUÊ?! — exclamaram todos em conjunto, chocados.

Os olhos de Lois brilharam com uma intensidade nova.

— Eu sei que parece loucura... — Lois admitiu, erguendo as mãos para acalmar a reação do grupo. — É loucura. Mas é a única forma de atingirmos nossos objetivos juntos.

Erina estreitou os olhos, desconfiada.

— Certo, consigo entender como isso ajudaria vocês... mas e nós? Como ficamos? — perguntou ela, com a voz fria.

— Se vocês me ajudarem, não só darei a vocês mantimentos para a jornada, como também o melhor ferreiro desta cidade! — prometeu Lois, a confiança emanando de sua voz.

O grupo de Erina ficou em silêncio, cada um ponderando sobre a oferta. A promessa de mantimentos era tentadora, mas o ferreiro... isso era algo que podia mudar o rumo de sua jornada. Erina sabia que suas armas e armaduras precisariam ser reforçadas para o que estava por vir.

Enquanto o silêncio pairava, Lois retomou a fala com mais seriedade:

— Golpes ou revoluções precisam do apoio da população. Se não tivermos a maioria, será ilegal — explicou ela. — Nenhuma cidade externa pode intervir, pois isso seria uma questão democrática; exceto no caso de cidades imperiais. Qualquer tentativa de revolução contra o Império é uma declaração de guerra contra ele.

Erina cruzou os braços, meditando sobre as palavras de Lois. O governador tinha interesses de tornar Eldoria uma cidade imperial, por isso adiou as eleições. O tempo era curto e margem para erros, menor ainda.

— Independentemente do que acontecer, não podemos ser relacionados com essa revolução. — disse Erina, firme.

— A identidade de vocês permanecerá em segredo — garantiu Lois, sem hesitar.

Enquanto isso, Gurok, ainda lidando com a dor no pé, balançou a cabeça em desaprovação.

— Lois, acho que você está sendo imprudente. Está querendo algo grande demais! — disse ele, desconfortável com o rumo da conversa.

Lois, tomada por uma raiva súbita, deu um soco no pé quebrado de Gurok, fazendo o orc rugir de dor.

— ESCUTE AQUI, GUROK! — gritou Lois, sua voz fervendo de frustração. — Ficamos mais de 10 anos esperando a oportunidade perfeita para mudar essa cidade! Tentamos seguir as regras deles, e eles cuspiram na nossa cara! Agora vamos fazer essas mudanças à força, e temos que começar esta noite!

Gurok, segurando o pé, olhou para ela, surpreso com a intensidade de sua resposta.

— E como quer que comecemos com meu pé quebrado?! — resmungou ele, irritado.

Antes que alguém pudesse responder, uma aura esverdeada brilhou ao redor do pé de Gurok, e em instantes, ele estava curado. O orc olhou ao redor, chocado.

Todos apontaram para Erina.

— Foi a Lois que pediu para não curá-lo, — disse Erina, cruzando os braços.

Com um suspiro profundo, Erina finalmente cedeu. Havia risco no plano de Lois, mas também uma oportunidade única.

— Estamos dentro — anunciou ela.

Lois, aliviada, começou a detalhar o plano. Cada tarefa precisaria ser executada com perfeição. Não havia espaço para erros. Eles tinham uma chance de mudar o destino de Eldoria e, ao mesmo tempo, alcançar os recursos de que tanto precisavam.



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