Volume 1 – Arco 4

Capítulo 26

Kenshiro e Sebastian se dirigiram diretamente para a maior loja de suprimentos da cidade. Era um estabelecimento colossal, com prateleiras que pareciam se estender infinitamente, repletas de mercadorias de todos os tipos, de mantimentos básicos a armaduras ornamentadas e artefatos mágicos. O brilho dos adornos encantados atraía os olhares, e por um momento, a dupla se imaginou utilizando-os em batalhas futuras. No entanto, um rápido olhar aos preços bastou para que sentissem o peso da realidade.

— Esse preço é... desumano — murmurou Kenshiro, franzindo o cenho.

— Desumano, mas preciso — comentou Sebastian, com um meio sorriso. Ele tinha uma postura relaxada, mas estava atento a tudo ao redor.

Ao saírem da loja, caminharam pelas ruas abarrotadas de Eldoria. O sol se movia lentamente pelo alto do céu, sendo o ápice do dia, e as vitrines das lojas ainda iluminavam as calçadas com luzes encantadas, trazendo muito dourado aos olhos. Os preços de cada item exibido, fosse um modesto pão ou uma reluzente espada, pareciam aumentar a cada quarteirão que percorriam.

— Cada preço abusivo é como uma facada invisível — comentou Kenshiro, ainda perturbado —, gritando "pobres!" em nossas caras.

Sebastian soltou uma risada baixa e elegante.

— Ah, a doce ironia de uma cidade que prospera na miséria. Este lugar atingiu um ponto de inflexão que poucas sociedades conseguem sustentar.

Enquanto recuperavam-se mentalmente da humilhação, Kenshiro avistou dois guardas patrulhando a rua com brutalidade. Eles expulsavam alguns pedintes que haviam se instalado em um canto, tratando-os com total desprezo.

Desconfiado, Kenshiro trocou um olhar com Sebastian e ambos começaram a seguir os guardas à distância, observando-os.

Os pedintes foram arrastados, literalmente jogados para fora das ruas movimentadas e conduzidos a uma caverna, onde foram abandonados.

— Parece que os guardas são instruídos a fazer uma “limpeza” — comentou Kenshiro, cruzando os braços. — Espero que a Erina tenha tido mais sorte do que nós.

— Eu duvido muito. — A resposta de Sebastian veio carregada de sarcasmo, sua voz carregando o peso da experiência.

— Por quê? — Kenshiro perguntou, genuinamente intrigado.

Sebastian ajustou sua capa, preparando-se para uma explicação mais longa, a qual ele claramente apreciava dar.

— Até onde posso ver, Eldoria atingiu o ápice de seu modelo econômico. A cidade é um reflexo perfeito do ciclo de opressão mascarado de prosperidade. O que vemos aqui não é o resultado de uma política falha recente. Não importa onde procuremos, os preços que encontramos são o reflexo de algo muito mais profundo e estruturado.

Kenshiro continuou a caminhar ao lado de Sebastian, absorvendo as palavras do vampiro. Eles passavam por ruelas escuras e mal iluminadas, enquanto o murmúrio das vozes nas tavernas próximas ecoava. O ambiente ao redor era uma mistura de luxo e decadência, tão contrastante quanto a própria cidade. Kenshiro sabia que havia algo terrivelmente errado em Eldoria, mas não compreendia os meandros por trás disso.

— Como isso aconteceu? — indagou Kenshiro.

Sebastian sorriu de lado, seus olhos brilhando com a oportunidade de compartilhar seu conhecimento milenar.

— Primeiro, precisamos ir para o início de tudo... Vamos dividir as pessoas em duas categorias: os ricos e os trabalhadores — começou ele. — No princípio, o conceito de trabalho era simples. As sociedades funcionavam com base na divisão de funções, onde apenas os aptos realizavam tarefas essenciais. Mas logo, os trabalhadores perceberam que seus esforços eram desvalorizados.

Ele continuou sua explicação, detalhando como as primeiras cidades começaram a se formar.

Os trabalhadores, sentindo-se injustiçados por não receberem o devido reconhecimento, começaram a exigir mais, melhores condições, mais conforto, mais poder. Assim, surgiu o dinheiro, um meio de troca que permitia recompensar os esforços daqueles que se dedicavam às tarefas mais árduas. No entanto, algumas pessoas começaram a acumular esse dinheiro, concentrando um alto poder em suas mãos.

— E então, surgiram os nobres — explicou Sebastian. — Famílias abastadas que não precisavam mais trabalhar, pois suas riquezas durariam por gerações. Eles criaram as cidades muradas, controlando quem poderia entrar e sair, enquanto cobravam impostos exorbitantes dos vilarejos em troca de proteção. Ou seja, os ricos começaram a enriquecer cada vez mais, utilizando do imposto de proteção e morádias. No caso de Eldoria, aparenta que os ricos também controlam os meios de produção da cidade.

Kenshiro assentiu, pensativo. Ele lembrava das cidades imperiais pelas quais passara, onde a divisão de classes era palpável, mas nada comparado ao que Eldoria apresentava. Aqui, a desigualdade havia se tornado uma arte cruel.

— E o governador? — Kenshiro perguntou, lembrando-se de um detalhe importante. — Qual é o papel dele em tudo isso?

Sebastian fez uma pausa antes de responder, como se estivesse escolhendo suas palavras com cuidado.

— O governador deveria ser o representante da população, alguém que equilibra as demandas dos nobres, guardas e cidadãos. Mas, como sempre, a corrupção encontra seu caminho. Governadores são constantemente derrubados, mortos ou removidos do poder se não satisfazem os interesses daqueles que realmente controlam a cidade. E, claro, com o tempo, a posição passou a ser mais simbólica do que funcional.

Kenshiro franziu o cenho, pensativo.

— Ainda assim, os nobres são uma minoria. Como não houve uma revolta?

— Ah, meu caro Kenshiro, essa é a verdadeira genialidade do sistema de Eldoria — respondeu Sebastian, com um sorriso satisfeito. — Mesmo em estado de miséria, a população está confortável. Eles foram condicionados a acreditar que sua situação atual é o melhor que podem ter.

Kenshiro ficou surpreso.

— Como isso é possível?

— Existem muitos métodos — respondeu Sebastian. — Controle de informações, propaganda, repressão, violência, alienação através do entretenimento e educação limitada. Eldoria dominou o conceito de controle econômico. Eles aprisionam as pessoas em suas próprias necessidades. Elas são tão dependentes do sistema que não podem imaginar um futuro diferente. Sem o apoio dos guardas e dos nobres, qualquer revolta seria esmagada antes mesmo de começar.

Kenshiro refletiu sobre as palavras de Sebastian. Embora ele sempre tivesse lutado por justiça, percebia agora o quanto sistemas complexos como o de Eldoria dificultavam qualquer mudança.

"E se esse modelo fosse apenas o estágio final de algo que vinha acontecendo há gerações, o que impediria outras cidades de seguir o mesmo caminho?"

***

Enquanto Kenshiro observava a movimentação frenética em direção a uma caverna iluminada ao longe, ele notou algo incomum: os nobres da cidade, geralmente tão refinados e controlados, estavam se empurrando e atropelando uns aos outros para entrar. Como predadores famintos, disputavam por um bom lugar, como se a própria vida dependesse disso.

Ao se aproximarem, a verdade se revelou: uma rinha de luta clandestina. Dentro da caverna, gritos e risadas ecoavam pelas paredes enquanto o público se acotovelava em volta de um buraco no chão, onde os combatentes lutavam brutalmente. Um aroma metálico de sangue fresco se misturava ao cheiro de suor. Kenshiro e Sebastian se infiltraram discretamente, tentando entender o que estava acontecendo.

No centro da arena, o mestre de cerimônias bradou:

— Senhoras e senhores, chegamos à grande final! De um lado, o colosso Maximus, o Gladiador! Do outro, o misterioso Fera Encapuzada!

Maximus era gigantesco, com músculos tão exagerados que parecia um monstro feito de carne e pedra. Seus três metros de altura e cicatrizes em todo o corpo indicavam um guerreiro forjado em batalhas intermináveis.

Já o Fera Encapuzada, que logo chamou a atenção de Kenshiro, tinha algo de oculto. Seus dois metros de altura e a pele esverdeada, parcialmente visível sob o manto, indicavam que ele não era alguém comum.

— Eu quero fazer uma aposta! — disse Kenshiro, procurando uma maneira de fazer dinheiro fácil.

— Excelente, meu caro turista! Mas a aposta inicial é de 100.000! Você teria essa quantia com você?

— Não...

— Então... Se manda, pobretão!

O responsável, com ajuda de seus empregados, retirou Kenshiro e Sebastian do bar. Como a dupla não queria nenhuma briga, não se queixaram.

— Eu queria ver mais da luta... — resmungou Kenshiro.

— Então vamos ver mais de perto — disse Sebastian. — Essas cavernas devem ser interligadas, podemos acabar encontrando o local onde estão lutando.

Voltando para a caverna onde viram os guardas expulsando os pedintes, eles seguiram tentando localizar a briga pelos sons e a vibração dos impactos dos golpes.

No caminho, Kenshiro não pôde deixar de notar a quantidade de pessoas em estado de miséria. Conseguindo perceber até alguns cadáveres atirado ao chão, sem ninguém para dar um funeral digno ou para simplesmente retirá-los.

Não havia nada que pudesse fazer naquele momento, por isso ignorou.

Chegando ao local, empregados do evento estavam bloqueando o caminho. Sebastian então, segurou Kenshiro pela cintura e o carregou enquanto caminhava pelas paredes até chegar ao teto.

— Uma das histórias dos vampiros era verdade...

— Acredite, nem eu sei como esses poderes funcionam — disse Sebastian.

Enquanto eles se moviam pelo teto, Kenshiro observou a luta abaixo. A multidão urrava com os golpes brutais. Maximus havia encurralado a Fera Encapuzada, pressionando seu enorme antebraço contra o pescoço do oponente. O chão tremia sob seus pés enquanto ele tentava esmagar seu adversário contra as paredes de pedra.

— Estou curioso, em quem você iria apostar? — perguntou Sebastian.

— Eu apostaria no orc... — respondeu Kenshiro, com um sorriso.

Como se ouvisse, a Fera Encapuzada reagiu. Seus músculos verdes e robustos incharam sob o manto, e ele agarrou os braços de Maximus com força sobrenatural. Num movimento seco, o som de ossos estalando ecoou pela arena. Maximus gritou, mas foi tarde demais. Seu braço estava quebrado.

A multidão, em silêncio mortal, assistia em choque enquanto o orc continuava. Maximus, mesmo com a dor, tentou uma joelhada poderosa contra o crânio do adversário, o orc não reagiu, recebendo o golpe em cheio. Com um movimento feroz, ele agarrou a perna de Maximus e, num som grotesco, arrancou sua patela com os dentes, cuspindo o osso à frente.

Maximus gritou de agonia, desabando no chão.

— Eu desisto! — ele rugiu, mas o orc não parou.

Sebastian, com os olhos afiados, observava o desenrolar com atenção quase mórbida.

— Eles realmente vão deixar isso acontecer? — perguntou Kenshiro, tenso.

— Essas lutas são até a morte, não há misericórdia aqui — respondeu Sebastian calmamente.

O orc avançou, pisando no pé de Maximus com força, esmagando os ossos sob seu peso brutal. Cada passo parecia uma execução calculada. Ele subiu no peito de Maximus e, em um último golpe, esmagou seu crânio com a patela que havia sido arrancada, como um troféu.

A caverna mergulhou em um silêncio horrível. Os nobres, que haviam apostado contra a Fera Encapuzada, estavam petrificados.

***

Sebastian e Kenshiro esperaram pacientemente até que o barulho na caverna se dissipasse. Os nobres e espectadores, chocados com a brutalidade da luta, haviam finalmente partido, deixando o local em um silêncio pesado, quebrado apenas pelo eco de passos distantes.

Gurok, o orc vitorioso, agora estava sozinho, com os músculos relaxados, mas ainda vigiando atentamente o ambiente ao seu redor. Ele havia ganhado uma fortuna naquela noite, talvez o suficiente para se tornar um dos mais ricos da cidade. No entanto, em vez de recolher seu prêmio imediatamente, ele pediu ao organizador para que levasse o dinheiro a outro local.

Aproveitando a solidão do lutador, Kenshiro se adiantou.

— Aquela foi uma luta esplêndida! — disse Kenshiro, com um leve sorriso. — Pena que não pude apostar.

Gurok se virou abruptamente, os olhos arregalados. Levantou os punhos com a mesma velocidade que havia mostrado na arena, pronto para o combate.

— Quem são vocês?! O que querem?!— Sua voz carregava um tom paranoico, algo que contrastava com sua enorme confiança durante a luta.

Os músculos de Gurok estavam tensos, prontos para o confronto. Ele encarava Kenshiro e Sebastian com desconfiança, sua respiração pesada ecoando pelas paredes da caverna.

Kenshiro percebeu a ameaça e, sem hesitar, jogou todas as suas armas no chão, levantando as mãos em um gesto de paz.

— Desculpe-nos, senhor. Não queríamos alarmá-lo — disse Kenshiro, sua voz calma e controlada, mas com uma tensão subjacente. — Só estamos procurando algumas informações... nada mais. Não temos intenção de causar nenhum mal.

Sebastian, que nunca carregava armas visíveis, seguiu o gesto de Kenshiro, jogando sua bolsa ao chão para mostrar que não era uma ameaça. Mesmo assim, o vampiro mantinha seus sentidos em alerta máximo, pronto para reagir a qualquer sinal de perigo.

Gurok franziu a testa, ainda desconfiado, seus punhos se abaixaram gradualmente. Ele soltou uma gargalhada seca, quase sem humor.

— "Senhor?" — Gurok repetiu, com ironia. — Vocês certamente não são daqui. Me chamem de Gurok. Aposto que acabaram de chegar a essa cidade miserável, não é?

Kenshiro acenou com a cabeça, dando um pequeno sorriso.

— Sim, estamos aqui há pouco tempo. A cidade... nos intrigou.

Gurok bufou, cruzando os braços.

— Intrigou? Vocês logo entenderão. Eldoria é uma armadilha. Turistas e comerciantes vêm aqui com sonhos de riquezas, mas só encontram dívidas e morte. Aquela "Taxa de Saída"... — ele cuspiu no chão. — É só mais uma forma de manter todos presos aqui, sugando cada moeda que têm. O governo e os nobres estão todos em um complô. Eles fazem de tudo para encher os próprios bolsos e não se importam com as vidas destruídas no processo. Trabalhadores, mercadores, famílias inteiras... tudo descartável para eles.

A intensidade nas palavras de Gurok mostrava o quanto ele desprezava o sistema, mas também revelava um pragmatismo sombrio. Kenshiro e Sebastian trocaram olhares. A realidade da cidade era tão proposital quanto uma sequela ao sistema econômico adotado por gerações.

Sebastian, com sua habitual calma, sugeriu:

— Talvez seja melhor partirmos à noite.

Gurok balançou a cabeça, sua expressão tornando-se mais séria.

— Fuga? Não será tão simples. Vocês já ouviram falar no Juiz Infelix?

Os dois ficaram em silêncio, aguardando a explicação.

— Infelix... — continuou Gurok, com um brilho de medo nos olhos — ...é o carrasco de Eldoria. Ele tem habilidades além da compreensão. Ninguém escapa dele. Se tentarem sair à força, ele virá atrás de vocês, e então... não haverá fuga. Já vi o que acontece com aqueles que cruzam o caminho dele. É melhor vocês ficarem longe disso.

Kenshiro ponderou por um momento, sentindo o peso da decisão sobre seus ombros. Ele sabia que não era ele quem tomaria as decisões finais, essa responsabilidade era de Erina. Mas, com essas novas informações, ele entendia que deixar a cidade sem um plano bem elaborado seria suicídio.

— Precisamos de mais tempo para decidir — murmurou Kenshiro para Sebastian. E então, olhando para Gurok, fez sua última pergunta. — Há algum ferreiro por aqui que possamos contratar? Precisamos de bons equipamentos para nossa viagem.

Gurok deu um sorriso amargo e balançou a cabeça.

— Todos os ferreiros da cidade respondem ao governo. Não vão arriscar suas vidas para ajudar forasteiros. Se estão procurando ajuda, terão que encontrar em outro lugar.

Havia uma frustração palpável no ar, mas Kenshiro e Sebastian sabiam que não poderiam forçar a situação. Kenshiro abaixou a cabeça em agradecimento.

— Agradecemos a sua ajuda, Gurok. Faremos o possível para sair daqui com vida.

O orc, claramente surpreso pelo tratamento respeitoso, hesitou antes de responder.

— Huh... Boa sorte. Vão precisar dela.

Ele os observou partir com um olhar quase melancólico, refletindo sobre como aqueles dois forasteiros, desconhecidos e potencialmente perigosos, o trataram com mais respeito do que qualquer um naquela cidade. Enquanto os dois desapareciam nas sombras da caverna, Gurok se pegou torcendo silenciosamente para que eles conseguissem o impossível: escapar de Eldoria.



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