Volume 1 – Arco 4

Capítulo 26: Taxas de Sangue.

O comerciante falara a verdade. 

Não importava a barraca — fosse distante ou no centro comercial, vendendo produtos refinados ou quinquilharias suspeitas, fosse material de construção ou ingredientes de cozinha — tudo era exorbitantemente salgado. Um tipo de sal que não se usa para temperar, mas para conservar cadáveres.  

Preços que desafiavam a lógica, como se ouro fosse mais barato que farinha. 

— O que há de errado com essa cidade? — murmurou Erina, os olhos cerrados contra a luz dourada, como se o céu pudesse lhe oferecer uma resposta mais honesta que os rostos ao seu redor. 

Respirava fundo, exausta, após vasculhar dezenas de barracas. Em seu rosto, uma frustração que beirava o ultraje. 

— Talvez sejamos pobres demais pra essa cidade? — arriscou Takashi, passando a mão pelos cabelos, tentando manter o bom humor mesmo diante da ruína econômica. 

Foi então que uma voz seca e irônica se levantou das sombras de uma barraca quase desmontada. 

— “Pobres”, hein? Bem-vindos a Altunet, companheiros. 

O homem que falara estava sentado sobre uma caixa de madeira lascada. Sua “barraca” era uma estrutura mínima, mais parecida com entulho do que com comércio. Tecidos puídos pendiam como trapos, o pano da cobertura manchado de ferrugem e gordura. A sujeira acumulada no chão parecia ter mais história que qualquer produto à venda. Metade da altura dos estandes vizinhos, o dobro da desorganização. 

O grupo sequer o notara ao passar. Xin chegou a comentar, por meio de gestos rápidos, que o sujeito parecia mais um bêbado iludido do que um vendedor. 

O homem gargalhou, uma risada seca que terminava em tosse. 

Ei! Se vai me chamar assim, pelo menos compre uma bebida! — disse ele, ainda sorrindo. — Ah, é mesmo... vocês não podem. Hahahaha! 

Apesar da zombaria, havia algo em sua presença que chamou atenção. Ele compreendia Signês, a linguagem de sinais utilizada por Xin, com fluidez. Isso, ao menos, revelava algo sobre ele. 

— Há quanto tempo está aqui? — perguntou Erina, já mais séria, entregando-lhe um cantil com água fresca. 

O homem aceitou como se fosse vinho raro. Bebeu longamente, como quem resgata a própria voz da secura da garganta. Quando falou de novo, havia gratidão em seu olhar — e uma tristeza que pesava mais que todas as mercadorias ao redor. 

— Cinco anos — disse, enxugando a boca com as costas da mão. — Vim como tantos outros. Iludido com as histórias. 

Contou que deixara a esposa grávida em sua terra natal, prometendo enviar parte dos lucros que faria na lendária cidade dourada. As lendas eram muitas: um lugar onde o dinheiro escorria pelos bolsos dos nobres como água de fonte, onde oportunidades cresciam nas calçadas e os pobres voltavam ricos. 

Mas mal cruzara os portões, sentiu o engano colá-lo à pele como uma segunda camada de suor. 

— Não há ouro ou fortuna — murmurou ele — ao menos, não para nós. 

— Devia ter partido quando percebeu a verdade — disse Erina, seca como o clima do deserto. 

Ele riu de novo, mas sem humor. Era um som sem cor. 

— Pobre mulher... Não percebeu? Em todas as cidades, os portões abrem pra fora. Pra evacuação, pra defesa. Mas os de Altunet... abrem pra dentro. 

Erina inclinou a cabeça ligeiramente, sem compreender de imediato.  

O homem continuou:  — Foi uma escolha arquitetônica, claro. É pra impedir que a população fuja. Ninguém sai daqui sem pagar a Taxa de Saída. Cem por cento do valor que entrou... mais dez. Cento e dez por cento. Não só moedas. Tudo. Seus pertences, equipamentos, roupas, até as meias. E se não puder pagar... 

Xin sinalizou, confusa, como alguém conseguiria pagar mais do que trouxe consigo. 

— A ideia — respondeu o homem, com ironia amarga — era que qualquer um que entrasse aqui ficaria rico. Que a Taxa de Saída só serviria pra lembrar o quanto ganhou. Mas ninguém fica rico. Ninguém. 

— Então o excesso de comerciantes elevou o preço dos produtos? — perguntou Takashi, tentando entender o ciclo. 

O homem soltou um grunhido. 

— Quem dera fosse só isso, jovem. A Taxa de Saída é só a armadilha maior. Existem outras. Taxa de Circulação, Taxa de Terreno, Taxa de Sombreamento; isso mesmo, paga-se pelo espaço de sombra da sua barraca! Taxa de Conversa, Taxa de Inspeção, Taxa de Existência, pelo amor dos deuses! — cuspiu no chão. — Nem consigo listar todas. Mesmo se eu vendesse tudo o que tenho hoje, ainda estaria devendo ao Governador. E ao Juiz. 

— “Juiz”? — repetiu Erina, cruzando os braços. — Não reconheço esse cargo. 

— O Juiz é... EI! LADRÃO! ALGUÉM ME AJUDA! 

Takashi já havia sacado o arco. Seus olhos, afiados como os de um falcão, acompanhavam o ladrão enquanto ele serpenteava por entre a multidão. O homem, adulto, esquelético, roupas em farrapos, se movia com agilidade desesperada. Não era destreza treinada, mas o impulso bruto de quem já fugira muitas vezes da fome. 

O arqueiro encontrou a brecha. Um espaço limpo entre os corpos, nenhum civil ao redor. Respirou fundo, prendeu o ar... 

Erina surgiu ao seu lado, como um muro entre ele e a ação. Segurou-lhe o braço com firmeza. 

— O que está fazendo? Ele estava na mira! — protestou o comerciante, com a voz embargada de raiva e frustração. 

Erina o fitou, fria. 

— Não matarei um homem faminto por roubar comida — declarou. Era uma sentença. Sem espaço para debate. 

O comerciante recuou, ofendido, mas intimidado. Suas palavras seguintes vieram em gritos amargos, lançados como pedras enquanto corria atrás do ladrão: — Inúteis! Desgraçados! 

O trio permaneceu imóvel por alguns segundos. Os olhares se cruzaram. Era hora de decidir os próximos passos. 

— O que faremos então? — perguntou Takashi, embainhando a flecha com relutância. 

Erina manteve os olhos na multidão, mas respondeu:  — Precisamos encontrar os outros. Não podemos nos manter separados por muito mais tempo. Embora tenhamos bastante ouro guardado com Kaji... se formos obrigados a explicar sua origem, estaremos encrencados. 

Xin fez sinais rápidos. A ideia era direta: forçar uma fuga. Sair da cidade antes que ela os engolisse por completo. 

Erina refletiu. A proposta fazia sentido, era simples. Mas... 

— Estou com um pressentimento ruim — confessou, apertando levemente os punhos. 

— Sobre o quê? 

— Se Altunet é mesmo tão opressora, já deveria ter havido uma revolta. Mas tudo aqui é limpo demais. Calmo demais. Parece... encenado. 

— Talvez tenha havido — ponderou Takashi. — E tenha sido esmagada. Sem sobreviventes pra contar. 

— Pode ser. Ainda assim... há poucos guardas. Nenhuma milícia visível. E mesmo assim, todos obedecem. Aposto que o tal “Juiz” é mais que um símbolo. Pode ser a causa do medo. 

Foi quando aconteceu. 

KRA-KOOM! Um trovão cortou os céus.

Apesar do céu limpo, sem nuvens. Um raio desceu como um martelo dos deuses, atingindo com violência o centro comercial. 

O chão tremeu. 

Pessoas pararam, deixaram cair suas compras, viraram os rostos para a origem da luz e correram. Não em pânico, mas em expectativa. Como quem assiste a um espetáculo. 

Erina lançou um olhar de alerta para os companheiros e seguiu o fluxo. 

Quando alcançaram o centro do tumulto, entenderam o motivo do alvoroço. 

Ali, em meio ao círculo de curiosos e fiéis, estava o ladrão. Ou o que restava dele. 

O corpo fora reduzido a uma grotesca lembrança de carne. Apenas o crânio e a medula espinhal ainda estavam intactos. O resto era cinza e vapor.

Um homem coberto por uma armadura dourada o segurava pelo topo da cabeça, como quem exibe uma presa derrotada. 

Não era um guarda. 

Não era um soldado. 

Era um monumento vivo. 

A armadura, reluzente, ostentava arabescos e gemas. Cada detalhe gritava status, autoridade e excesso. Ele não era apenas executor da justiça. Ele era a justiça.

Pelo menos ali. 

As pessoas começaram a aplaudir. Gritar. Reverenciar. 

— O Juiz Lucan apareceu! 

— A autoridade suprema de Altunet! 

— Que a Lei seja feita! 

Ao levantar a mão, o homem fez silêncio reinar absoluto. Como um mágico encerrando seu número. 

Respeito. Medo. Ou adoração? 

O elmo que cobria seu rosto começou a se desfazer, fragmentando-se em fumaça dourada que se fundia ao restante da armadura; um processo elegante, quase teatral. Lembrava o funcionamento do elmo de Erina, mas de forma mais rebuscada.

Seu rosto parecia esculpido em mármore celestial, tão perfeito que chegava a ser intimidante. Os cabelos — longos, lisos, de um loiro pálido que beirava o branco — caíam como fios de seda ao redor de um semblante impecável. Os olhos, de um dourado incandescente, ardiam com uma luz que oscilava entre o divino e o demoníaco, fitando o mundo como se cada coisa fosse insignificante sob seu julgo. As feições, angulosas e simetricamente perfeitas, evocavam tanto a beleza dos heróis imortais quanto a frieza de uma estátua esculpida para inspirar temor.

Havia algo nos lábios — ligeiramente curvados em um sorriso contido, quase desdenhoso — que sugeria uma soberba impossível de conter. Cada centímetro de seu rosto transpirava autoridade, como se ele fosse a personificação da justiça que representava. Ao fitá-lo, era impossível saber se se estava diante de um anjo vingador ou de uma divindade cruel.

— Quem é o dono do produto que fora roubado? — perguntou, em tom melodioso, teatral. Como um ator experiente em sua fala de abertura. 

O comerciante falido rastejou até ele. 

— Fui eu, meu bom senhor... 

Lucan ergueu a cabeça, dramaticamente. 

— Como ladrões são uma falha logística de nosso governo, você será devidamente recompensado por esse... infortúnio. 

— Recompensado...? — murmurou o homem, atônito. 

— Além de uma compensação financeira, receberá moradia permanente aos pés da Montanha Esmeralda. Sua barraca será reformada, e registrada oficialmente como ponto fixo de comércio autorizado. 

A multidão irrompeu em júbilo. Palmas, gritos, lágrimas. Um pequeno espetáculo de obediência e gratidão. 

O comerciante, agora em prantos, curvava-se, beijando as botas reluzentes do Juiz. 

Lucan sorriu, envaidecido, e ergueu os braços. 

— A justiça foi feita! — bradou, como se invocasse trovões com a voz. 

Takashi estreitou os olhos diante da cena. 

— Até esqueceu dos cinco anos de miséria... — murmurou, sarcástico. 

Erina, no entanto, permanecia calada. Seus olhos estavam fixos no chão, onde os restos do ladrão ainda fumegavam, ignorados pela multidão e pela justiça encenada. 

“Morto por um pedaço de pão... e desta forma. Isso é justiça?”, pensou. 

 

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