Volume 1 – Arco 4

Capítulo 25

No dia seguinte, Kenshiro explicou para Erina tudo que tinha acontecido na noite anterior com Sebastian. Agora o vampiro era considerado o membro mais fiel do grupo, não por mérito, mas por que agora Kenshiro saberia identificar quando o mesmo pudesse traí-los, podendo incapacitá-lo quando percebesse.

Sabendo do tempo curto que tinham para cumprir a jornada, Sebastian ficou encarregado de tentar marcar os dias em que forem passando; apesar de terem por volta de 4 anos e 6 meses, os três concordaram em considerar apenas um prazo de 4 anos, por segurança.

Embora parecesse uma tarefa simples, muitos já haviam tentado e falhado; bastava esquecer de marcar um único dia, que uma grande confusão poderia acontecer e todo o cronograma que havia sido marcado seria desperdiçado.

Xin e Takashi se sentiram um pouco isolados ao verem o casal conversando em particular com o vampiro, o mais novo membro do grupo.

***

Não muito distantes de seu destino, eles partiram cedo e, em pouco menos de uma hora, as grandes muralhas de Eldoria já podiam ser vistas.

Eldoria era mundialmente conhecida como a cidade mais rica do continente, e seus ferreiros e artesões eram constantemente reverenciados e requisitados. O próprio Império tinha interesses em adquirir a cidade ou formar uma aliança com ela, pois a Grande Campanha esgotou muitos dos seus recursos e Eldoria possuía a riqueza necessária para recuperá-los e até multiplicá-los.

Os governadores de Eldoria eram conhecidos por suas crenças inflexíveis. A cidade podia mudar drasticamente com a chegada de um novo governador, mas eram raros os casos em que tais mudanças eram para o bem do povo.

As muralhas da cidade eram gigantescas e douradas, refletindo a característica principal da cidade. Dificilmente perderiam alguma guerra estando na defensiva.

— Isso que eu chamo de muralha! — disse Sebastian.

— Não parece ser algo que os humanos tenham criado. Muito menos elfos... — disse Takashi, sentindo-se pequeno.

Xin também estava impressionada, suas mãos tremiam enquanto falava.

— Acalmem-se todos. Vamos primeiro ver como é a cidade por dentro — disse Erina.

Ao se aproximarem do gigantesco portão, uma sentinela no alto dos muros apareceu.

— O que querem fazer em Eldoria?! — perguntou o guarda. Ele estava tão distante que precisava gritar para ser ouvido.

Desinteressada em gastar sua voz, Erina olhou para Kenshiro, que rapidamente entendeu o recado, mesmo não gostando. Ele tossiu um pouco, preparando-se para perder as cordas vocais.

— Estamos apenas visitando! Queremos comprar suprimentos e contratar um ferreiro!

A sentinela saiu da muralha, demorando para voltar. Kenshiro se concentrou para tentar escutar o melhor que podia.

— Deixe-os entrar. Vão ter que deixar a carruagem para sair da cidade. Eu quero ver eles voltando o caminho todo a pé! — disse outro guarda.

O portão começou a se abrir lentamente. Seus mecanismos eram tão antigos que seu barulho era incômodo. O guarda anterior voltou, desejando boa sorte para o grupo, com um tom de um canalha.

Kenshiro olhou para Erina, demonstrando estar desconfortável. Percebendo, Erina cogitou em retornar, mas a próxima cidade seria Shenxi, onde se encontrariam com um Herói e o destino de Xin seria decidido; seria desgostoso estarem com poucos suprimentos.

O grupo passou pelo portão, que se fechou atrás deles.

Dentro dos muros era possível ver como a cidade havia sido construída.

As primeiras das construções foram feitas na encosta da montanha. Desde os prédios governamentais até as principais moradias e comércios da cidade. Tais edificações eram tão antigas quanto as muralhas, onde a pedra com que foram construídas já perderam o brilho dourado, ficando completamente escura.

Quando a cidade cresceu demais, e não havia mais onde construir na encosta da montanha, tiveram de construir as demais casas abaixo dela. Mas antes, retiraram toda a terra do local e substituíram por pedras similares às muralhas.

Assim, as muralhas, o piso e as casas abaixo da montanha mostravam “a cidade dourada”, enquanto as edificações antigas, e negras, acabaram ficando escondidas na encostada da montanha por sua aparência enegrecida.

Havia uma edificação que se destacava na cidade, uma torre escura que chegava próxima à altura da montanha. Perto do topo, era possível ver uma luz proveniente do fogo, lembrando até um farol. Por sua aparência e cor, mostrava ser tão antiga quanto a cidade em si.

No centro da cidade, um grande pátio era recheado de cabanas, barracas e tendas de comerciantes. Aquele seria o comércio dos pobres da cidade. Enquanto os ricos permaneciam na encosta da montanha com seus comércios estabelecidos.

O grupo desceu da carruagem, deixando-a perto do portão por onde vieram. Decidiram se separar para vasculhar a cidade. Erina, Xin e Takashi iriam dar uma olhada no comércio abaixo da montanha, enquanto Kenshiro e Sebastian olhariam as construções na área rica.

***

 Erina caminhava tranquilamente pelo comércio de barracas quando um comerciante lhe chamou a atenção.

— Mercenários, aventureiros, soldados? Não importa! Na minha barraca encontrará tudo que precisa para uma viagem árdua, missões especiais e batalhas mortíferas!

Feliz por ter encontrado o que precisava tão depressa, Erina quase caiu ao ver o preço.

— Como é?! 500 moedas por cada centímetro de corda?! Está querendo me roubar?

— Desculpe-me senhorita! Mas confie em mim... não encontrará preço melhor na cidade inteira!

Não dando ouvidos ao comerciante, Erina e seu grupo partiram em busca de uma oferta melhor, observando as demais barracas.

O comerciante não estava mentindo, o preço abusivo de todas as barracas tornava impossível a comprar de qualquer produto.

Xin comentou que, mesmo com toda a riqueza de seu senhor, Zudao, ele seria talvez o mendigo mais miserável daquela cidade.

— Será possível que as moedas desvalorizaram tanto? E agora esse é o preço normal? — disse Takashi, desacreditado com aquela realidade.

— Quem dera, meu jovem... — respondeu um comerciante abatido.

O comerciante parecia ser um caçador, vendendo carnes e peles dos poucos animais que existiam nos arredores da cidade; todos de pequeno porte.

— O que o senhor sabe? — perguntou Erina.

— Vocês vieram visitar? Ou caíram na propaganda do governador? Bem, não importa. Só conseguirão sair daqui depois que a cidade sugar até a última moeda que vocês têm.

— Não queremos ficar muito tempo, podemos sair e comprar nossos suprimentos em outra cidade.

— Tarde demais. Agora que entraram, terão de pagar a Taxa de Saída. “Toda e qualquer pessoa que adentrar a cidade precisa pagar uma taxa equivalente a 110% de tudo que trouxe.” Só pra constar, isso inclui suas vestimentas e meio de transporte.

Xin questionou o comerciante como seria possível alguém conseguir pagar por isso.

— É simplesmente impossível. Estou preso nessa cidade há mais de dez anos e ainda não estou nem perto de pagar a minha taxa. Mês passado recebi uma carta... Minha mulher me deixou, acreditando que eu me afastei dela para viver na riqueza dessa cidade...

— Eu sinto muito — disse Erina. —Então teremos que forçar nossa saída daqui.

— Se fosse fácil assim, eu já teria fugido a muito tempo. Qualquer um pode se esconder dos guardas ou até escalar a gigantesca muralha, mas nunca escaparão dele.

— Quem?

— Ele é...! Que?! Ladrão! Alguém pare ele! Ele roubou um dos meus produtos!

Durante a conversa, uma pessoa encapuzada roubou um pedaço de carne do comerciante. Ao ser notado, começou a correr entre as barracas, tentando fugir.

Os gritos do comerciante alarmaram todos os demais. Os guardas estavam prontos para interceptá-lo quando um relâmpago atingiu o ladrão.

Do relâmpago, surgiu um homem alto em uma armadura dourada. O cavaleiro segurava o ladrão pela sua medula espinhal, deixando apenas sua cabeça intacta; o restante de seu corpo havia explodido.

Com uma visão tão grotesca, Erina supôs que aquele era o homem que o comerciante havia mencionado. Imaginando o quão terrível era seu tratamento, ela ficou impressionada ao ver todos os comerciantes, guardas e os cidadãos aplaudirem-no.

O cavaleiro abaixou seu elmo, que era retrátil, semelhante ao de Erina; mas não precisava de qualquer movimento para vesti-lo ou despi-lo. O homem era terrivelmente belo, com um cabelo curto loiro, olhos azuis, nariz pequeno, sendo um exemplo perfeito do que era um “deus da beleza”.

— De quem esse ladrão roubou? Não se preocupe, apenas quero vê-lo — disse o cavaleiro, com uma voz sublime e ameaçadora.

O comerciante e caçador apareceu, amedrontado, e se ajoelhou perante o cavaleiro.

— Fui eu, senhor Juiz. Eu que fui roubado.

— Certo. Como ladrões são uma falha da administração da cidade e não da população, você será recompensado pelo seu produto roubado e pelos danos causados.

— S-senhor? — perguntou o comerciante desacreditado.

— Você será indenizado e terá o direito de se acomodar na parte rica da cidade!

— Obrigado! Obrigado, obrigado...

O comerciante rastejava-se e beijava os pés do Juiz.

O Juiz estendeu os braços em vitória e proclamou:

— A justiça foi feita!

Toda a população gritou e comemorou o ocorrido. Apenas Erina, Takashi e Xin olhavam desconfortáveis e confusos para o que havia acontecido.

— O comerciante que antes era tão lamentoso pela sua situação, agora se sente abençoado... — disse Takashi.

— Não são mais pessoas... Viraram gado... — disse Erina.

***

Tirando o foco da dupla, Xin avisou à Erina que aquele sujeito havia sido apenas uma isca. O verdadeiro ladrão havia roubado mais de 19 produtos diferentes e logo iria deixar o local.

Impressionada com a atenção de Xin, Erina agradeceu em Signês e começou a perseguir o outro ladrão. Xin não entendia o motivo, mas havia ficado um pouco envergonhada ao ser reconhecida.

Seguindo o ladrão encapuzado, ele rapidamente percebeu que estava sendo perseguido. Invadindo algumas barracas, ele trocou sua manta algumas vezes, aproveitando para roubar outros produtos no caminho.

Inevitavelmente, os três perderam o gatuno de vista.

Takashi ficou decepcionado consigo mesmo, acreditava que era sua fusão ter os “olhos perfeitos.” Em sua própria lamentação, viu seu arco brilhar em roxo. Quando foi vê-lo mais de perto, teve uma visão de seu próprio passado à momentos atrás.

Enquanto olhava para sua própria visão atrasada, o mundo havia se tornado mais cinza, porém, o salafrário que perseguiam estava destacado em uma coloração púrpura. Foi nesse momento que ele percebeu que o indivíduo havia os enganado trocando de roupa ao mesmo tempo que colocava sua antiga em outro cidadão, despistando-os.

Sua visão voltou para o presente, e subindo em uma das barracas de comércio, Takashi começou a procurar por seu alvo, agora sabendo qual sua verdadeira vestimenta.

Quando o avistou, pôde vê-lo indo em direção a uma caverna.O grupo rapidamente foi até tal caverna, temendo que a mesma pudesse ter diversas ramificações que o ladrão pudesse utilizar para escapar de vez.

Os três foram submetidos a um forte cheiro podre.

— Isso é o esgoto? — perguntou Takashi.

Xin disse que não poderia ser possível aquilo, pelo menos, não tão perto da área comercial da cidade, pois iria contra a reputação da cidade.

Não demorou muito para eles descobrirem a causa daquele mal odor.

A quantidade tão grande de pessoas sem a higiene adequada, atrelada aos cadáveres, que mal podiam ser diferenciados dos vivos, causava aquele cheiro tão desagradável, agora atrelado a uma visão de embrulhar o estômago.

Mesmo assim, o grupo se forçou a adentrar aquela caverna, até avistarem novamente o ladrão.

O ladrão foi recebido por algumas dezenas de crianças.

— A Lois voltou! — comemoraram algumas crianças.

Ao retirar sua manta, o ladrão revelou ser uma mulher.

Seu corpo era magro, mas era apenas sua característica comum; não estava passando desnutrição ou fome. Seu cabelo preto liso era amarrado em um rabo de cavalo. Abaixo da manta estava apenas com as roupas íntimas. Sua pele era escura, diferente de Xin que tinha a pele bronzeada.

A mulher estava entregando os produtos que havia roubado para as crianças: pão, verduras, legumes e sacos de grãos.

Cada criança foi educada, esperando pacientemente pela sua parte.  Conforme as crianças pegavam os alimentos, elas partiam para suas famílias, até sobrar uma última criança. Uma menina simples, de Maria Chiquinha.

— Senhorita Lois... Quando o papai vai chegar?

As mãos de Lois tremeram ao pegar o último produto que havia roubado.

— Ele já vem... Por favor, pegue isso e leva para sua vó.

Lois havia entregue à criança um pedaço modesto de carne.

Os olhos da criança brilharam de emoção.

— Nossa! Eu vou dividir com os meus amigos!

— Não! Quero dizer... entregue primeiro para sua vó. Ela deve estar faminta...

— Tudo bem! Eu vou entregar para vovó, e a minha porção eu divido!

A criança saiu saltitando. Lois olhava com tristeza, socando a parede da caverna em frustração.

— O outro ladrão era o pai daquela criança, não era? — perguntou Erina.

Lois virou-se rapidamente e puxou uma adaga de sua manta. Dobrando os joelhos, ela assumiu uma posição que um assassino ou ladino normalmente assumiria.

— Quem são vocês? O que querem?!

— Acalme-se. Acabamos de chegar. Estamos apenas querendo saber o que está acontecendo com essa cidade.

Lois forçou-se a acalmar. Ela sabia que seus inimigos não precisavam de informações, e se tivesse chegado até ela, já a teriam incapacitado.

— Sim. Aquele idiota... ele queria tanto que sua filha experimentasse o gosto de carne que se permitiu ser morto pelo Infelix. Como podem ver... a nossa situação não é das melhores.

— Como que a cidade mais rica do mundo chegou a esse ponto?

— Não estou aqui para dar lições de história. O que querem?

Percebendo que não conseguiria saber o contexto da cidade, Erina decidiu saber apenas o necessário para ela e seu grupo.

— Soubemos sobre uma “Taxa de Saída.” Existe alguma forma de burlá-la para que possamos sair?

— Existem algumas formas... A primeira, e suicida, é partirem sem pagar; onde terão que enfrentar Infelix, mas é uma boa maneira terem um fim rápido se não quiserem morrer de fome...

Ratos estavam se alimentando do cadáver de um idoso recém morto. A família dele não fazia nada, na realidade, estavam esperando que os ratos engordassem para que pudessem comê-los depois.

— A segunda — continuou Lois —, é conversarem com o Governador, mas toda e qualquer visita está proibida para os próximos dias.

— Por que? — perguntou Erina.

— Por conta da terceira alternativa. A eleição para o próximo governador acontecerá em breve, e se tivermos sorte, o próximo governador irá retirar a “Taxa de Saída.”

— E quando sai o resultado?

— A eleição começa hoje de tarde e o resultado sai em dois dias.

Erina não queria começar uma guerra contra uma cidade ou sua autoridade, mas caso não existisse outras alternativas, ela o faria. Ela refletiu o melhor que pôde, mas era uma decisão muito grande para ela tomar sozinha.

— Irei falar com o restante do meu grupo e decidirei. Existe algo que eu possa fazer para ajudar vocês?

Lois se impressionou com a gentileza de Erina, pensava que ela quisesse apenas informações, mas a cavaleira possuía um coração gentil. Talvez não tivesse que ter sido tão grosseira com ela.

— Não. Esse pessoal aguenta mais dois dias. Poupem seus suprimentos.

As duas se encararam. Eram duas líderes fortes e independentes. Se o destino fosse justo, poderiam trabalhar juntas para cumprir seus objetivos, mas as estrelas não pareciam estar alinhadas ainda.

Erina partiu.



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