Volume 1 – Arco 4

Capítulo 25: Mercados e Segredos.

A Cidade-Livre de Altunet possuía uma arquitetura distinta das habituais cidades imperiais.  Bastava cruzar seus portões dourados para que qualquer viajante sentisse isso nos próprios pés. 

O chão era formado por pedras polidas de tonalidade dourada, semelhantes às do próprio portão que haviam atravessado. Porém, não se tratava de simples pavimento: cada pedra era entalhada com precisão e posicionada com tamanha exatidão que, vista do alto, revelaria um gigantesco desenho oculto. A imagem, recoberta hoje por barracas, pessoas e construções modernas, era o símbolo primordial da cidade — um grande sol flamejante. Como se Altunet, em sua origem, tivesse nascido para brilhar sobre todas as demais. 

O comércio era o coração palpitante da cidade. Espalhava-se por uma vasta área que ocupava quase metade de todo o território urbano. Ali, centenas de barracas de diferentes tamanhos, cores e estilos disputavam espaço e atenção.

Eram improvisadas, erguidas sobre estacas bambas ou estruturas reforçadas com metal leve. Tecidos coloridos tremulavam com a brisa entre gritos, sinos e assovios — sons que preenchiam o ar como o zumbido constante de uma colmeia viva. 

Havia mercadores de todas as partes do Continente. Rostos, trajes e culturas se misturavam com naturalidade: um ancião de barba trançada vendia esculturas feitas de ossos polidos, enquanto um jovem de pele dourada negociava temperos aromáticos que perfumavam o ar a metros de distância. Um trio de gêmeas vendia vidros coloridos que refletiam o sol em formas hipnóticas. Todos com suas mercadorias, todos competindo. 

Apesar do comércio ser a principal atividade da cidade, nenhuma de suas lojas ou barracas se destacava tanto quanto as construções fixas feitas do mesmo material dourado das ruas. Edifícios baixos, porém imponentes, com colunas geométricas e tetos em forma de abóbadas, reluziam sob o sol como palácios simplificados. Eram casas de câmbio, depósitos de mercadorias valiosas e guildas de negociantes — as verdadeiras fortalezas econômicas de Altunet. 

Contudo, por mais opulência que houvesse, nenhuma construção chamava tanta atenção quanto a grande torre negra. 

Erguia-se no centro da cidade como um dedo apontado ao céu. Sua superfície era feita de um material escurecido, sem brilho, que absorvia a luz ao redor e a devolvia em sombras. No topo, uma enorme chama brilhava com um fulgor dourado e constante, semelhante a um farol. Mas Altunet não era um porto, nem a luz oscilava com a função de guiar viajantes. 

Aquela estrutura não parecia ter propósito visível.

Talvez por isso, era a mais inquietante. 

Xin perguntou se a razão da torre escura fosse a de iluminar a cidade à noite. 

Takashi respondeu com um encolher de ombros. 

— Parece ser... mas é estranho. 

Sebastian, mais atento aos detalhes, estreitou os olhos. 

— Olhem ao redor — disse. — A torre não projeta sombra alguma. Nenhuma estrutura próxima a ela parece incomodada por sua presença. Ninguém comenta sobre ela. 

E era verdade. A torre parecia ignorada por todos, como se fosse apenas parte da paisagem. Contudo, quanto mais a observavam, mais notavam sua estranheza. Havia algo ali que não se encaixava. 

Ao olharem com mais atenção para as montanhas ao redor da cidade, outro detalhe inquietante se revelava. Nas encostas, discretamente encobertas pelas sombras naturais e pela própria cor do material, existiam outras construções semelhantes à torre: prédios menores, construídos do mesmo material negro, quase imperceptíveis à distância. Como vultos presos na pedra, moldando uma cidade paralela acima da cidade comercial. 

— Aquelas devem ser as moradias da elite local — comentou Sebastian. — Ou talvez, o verdadeiro governo de Altunet. 

Zudao coçou o queixo, desconfiado. 

— Só porque algo brilha não quer dizer que é nobre... e só porque algo se esconde não quer dizer que é humilde. 

Erina, calada até então, mantinha os olhos fixos na torre. Havia algo naquela cidade que a intrigava. Não era só a opulência ou a arquitetura incomum. Era a sensação, um arrepio no ar, de que estavam sendo observados. 

Com o panorama delineado, era hora de explorá-la. 

Deixaram a torre para trás e voltaram sua atenção ao que era imediato: onde estacionar a carruagem. 

Foi então que dois guardas passaram diante deles, caminhando de forma displicente. Ambos vestiam armaduras de couro envernizado e traziam lanças curtas presas às costas. Tinham a postura de quem se considerava acima dos problemas cotidianos. 

— Com licença, guardas — chamou Sebastian com um tom educado, erguendo a mão. — Onde podemos deixar nossa carruagem? Não queremos causar probl... 

— Deixem em qualquer lugar! — cortou um deles, sem sequer parar ou olhar diretamente para eles. 

A resposta veio seca, entredentes, como se tivessem interrompido algo mais importante. Um dos guardas cuspiu no chão logo depois, antes de desaparecer na multidão. A grosseria ficou pendurada no ar como um mau cheiro. 

Erina cerrou os olhos. Esse tipo de recepção teria sido motivo suficiente para dar meia-volta e sair da cidade com a cabeça erguida. Mas os portões haviam se fechado atrás deles, e sair tão cedo seria vergonhoso. Não diante de seus próprios homens. 

— Estacionem aqui mesmo — decidiu, apontando para um espaço próximo ao portão. 

Kaji relinchou com leveza, como se entendesse que ali ficaria de guarda.

— Escutem-me com atenção agora — disse Erina, saltando da carruagem com um leve estalo de suas botas ao tocar as pedras douradas. O tom de sua voz trouxe silêncio imediato. — Vamos nos dividir em dois grupos. Kenshiro, Zudao e Sebastian irão explorar os prédios nas encostas das montanhas. Takashi, Xin e eu cuidaremos do comércio local. 

— O que exatamente procuramos? — quis saber Takashi, ajustando os ombros como se se preparasse para uma marcha longa. 

Xin já havia começado a perguntar com gestos se era uma missão de busca ou apenas reconhecimento, mas Erina respondeu antes dela terminar. 

— Vocês? Nada — disse ela. — Kenshiro e eu cuidaremos dos suprimentos. A divisão é para cobrir mais terreno. Mas não quero que ninguém se disperse além do grupo designado. 

Erina desceu um pouco mais o tom, puxando o ar como quem se preparava para uma revelação importante. 

— Agora, quem de vocês tem dinheiro? 

Takashi e Xin se entreolharam. O jovem deu de ombros; Xin apenas balançou a cabeça, com um leve encolher de ombros. Nenhum dos dois carregava sequer uma moeda. Sebastian, como era de se esperar, retirou de um bolso interno uma pequena bolsa surrada. 

— Tenho uma reserva simples — admitiu, abrindo o fecho de couro. — Cerca de 180 moedas, para emergências. 

Zudao, ao contrário, inflou o peito com orgulho e puxou uma sacola volumosa de dentro da túnica. O tilintar metálico ecoou com força exagerada. 

— Dez mil! — anunciou como um vendedor em um leilão, balançando a bolsa com satisfação infantil. 

Erina suspirou com pesar. 

— Só isso? 

Sem esperar resposta, ela se virou, inclinou-se para dentro da carruagem e emergiu com cinco bolsas de couro robustas, cada uma abarrotada. Entregou-as uma a uma, sem pressa. A cada nova bolsa entregue, os olhos de seus subordinados se arregalavam um pouco mais. Menos Zudao — que passou a olhar nervoso para a própria bolsa. 

— Cada um de vocês agora tem dez mil — explicou. — Para gastar como quiserem. Eu e Kenshiro ficaremos com vinte e cinco mil cada. Precisamos comprar os mantimentos. 

Sebastian e Zudao trocaram olhares espantados. Takashi ficou estático, sem saber se podia sequer tocar o dinheiro. Xin ergueu a bolsa com ambas as mãos, como se temesse que fosse se desintegrar em seus dedos. Depois fez alguns sinais calmos, perguntando se aquilo era um teste. 

— Não é provisória — disse Kenshiro, com um meio sorriso. — Também não se acostumem. 

— Essa bolsa é tudo o que vocês vão receber para essa jornada — esclareceu Erina. — Terão comida e água. Mas qualquer item pessoal, roupas, amuletos, armas, livros, terá de sair dessa reserva. E os espólios do que encontrarmos serão divididos igualmente. 

A explicação fez a realidade pesar sobre o grupo. O brilho inicial da riqueza se tornou responsabilidade. 

Xin fez novos gestos, desta vez mais inquisitivos. Queria saber como haviam reunido tanto dinheiro. 

Antes que alguém pudesse responder, foi Kaji quem o fez, com sua voz metálica e quase impessoal: 

— Reiji e Kenzou Torison realizaram diversas missões para o Império. O dinheiro que adquiriram foi guardado para essa jornada. Um valor total de 534.277 moedas está reservado. 

Um silêncio estranho caiu sobre o grupo. A magnitude daquela quantia era difícil de assimilar. 

— Se isso for verdade... — murmurou Zudao, com olhos arregalados — então eu quero carregar um valor equivalente! 

Kenshiro o encarou com descrença, Erina ergueu uma sobrancelha. O casal parecia prestes a repreendê-lo, mas antes que qualquer palavra dura fosse dita, outros se manifestaram. 

— Neste caso, eu gostaria de carregar apenas 500 comigo — disse Takashi, devolvendo sua bolsa sem hesitação. 

— Minhas economias bastarão por agora — acrescentou Sebastian, fechando a sua e guardando de volta na bolsa interna. 

Xin hesitou, depois sinalizou que gostaria de levar apenas uma centena. Seus olhos demonstravam uma mistura de humildade e prudência. 

Diante daquela súbita demonstração de disciplina, Zudao encolheu-se como uma criança flagrada com a mão no pote de doces. Murmurou algo sobre segurança e preferiu não insistir mais. 

O casal, apesar de não demonstrar externamente, ficou impressionado com a maturidade de seus subordinados. Talvez aquela jornada, afinal, tivesse começado melhor do que esperavam. 

***

Erina, Xin e Takashi seguiram pelas ruas centrais com passos firmes. 

Não demorou mais do que alguns minutos até serem abordados por uma verdadeira muralha de comerciantes. 

— Tragam seus olhos, aventureiros! Peças únicas do Deserto de Kermet! — gritava um homem alto, com turbante azul e dentes dourados. 

— Joias das Quatro Casas Élficas! Raras, raríssimas! — chamava outra voz, feminina, de dentro de uma barraca coberta de tecidos esvoaçantes. 

— Armas encantadas! Direto das forjas de Akaroz! Toquem, sintam, testem! 

Os vendedores quase pulavam para fora de seus estandes. As mãos estendidas, os olhos famintos, a boca sempre em movimento. O trio teve de se esquivar, dobrar esquinas, afastar panos e sacudir moedas invisíveis para se livrar das insistências mais agressivas. 

Erina manteve-se imperturbável, os olhos à frente como quem marchava em campo inimigo. Ao passar por uma barraca onde perfumes raros eram borrifados no ar, ela murmurou com firmeza: — Podem comprar o que quiserem, mas não saiam do meu campo de visão. 

Xin assentiu com um gesto rápido. Seus olhos estavam acesos de curiosidade, mas obedecia. Takashi andava ao lado, atento tanto ao ambiente quanto à companheira, protegendo-a como um guarda-costas silencioso. 

Até que aconteceu.

No instante em que passaram por uma rua lateral mais estreita, Xin estremeceu. Seu corpo deu um leve solavanco, quase imperceptível a olhos desatentos, mas Takashi percebeu de imediato. Ela cambaleou por um instante, como se tivesse pisado em falso. O brilho em seus olhos mudou, e sua respiração se tornou leve como o suspiro de um pássaro. 

— Está tudo bem? — perguntou Takashi, parando imediatamente e colocando uma mão firme no ombro dela. 

Xin levou alguns segundos para se recompor. Então, com os olhos brilhando como se houvesse saído de uma prisão invisível, ela começou a gesticular com entusiasmo. Disse que se sentia como se uma corrente pesada tivesse sido retirada de seus pés. Era como respirar fundo pela primeira vez depois de muito tempo. 

Takashi sorriu, mas não conseguiu deixar de sentir um calafrio. Ela estava falando do feitiço de servidão, e aquilo significava que Zudao estava suficientemente distante. 

Erina também percebeu. Seu olhar breve para Xin foi de reconhecimento silencioso. Mas nenhum dos três comentou. Era cedo demais para enfrentar aquela conversa. 

Na empolgação daquele momento, nenhum deles notou o detalhe mais cruel daquela cidade mercante. Uma peculiaridade nos preços que expunha uma verdade feia por trás da beleza dourada. 

(...) 

Enquanto caminhavam, os três acabaram por encontrar aquilo que os atraía. 

Takashi foi o primeiro. Seus olhos haviam se habituado a procurar materiais: fibras resistentes, madeira seca, placas de ferro, penas bem preservadas. Ele precisava de matéria-prima para confeccionar suas flechas, como Flecha Fantasma, fazia questão de nunca depender de munições compradas. Era uma questão de honra. 

Xin, por sua vez, parecia guiada por outra lógica. Seus olhos saltavam de barraca em barraca, atraídos por tudo que fosse delicado e brilhante: pingentes com pedras iridescentes, espelhos de molduras esculpidas, tecidos com bordados feitos à mão. Ela tocava os objetos com cuidado, como se fossem peças de vidro prestes a se partir. A leveza infantil com que explorava o mercado contrastava com a dureza da cidade. 

Talvez tenha sido essa pureza que a impediu de perceber o óbvio. Um detalhe que se repetia de forma tão sutil que só um olhar treinado poderia detectar. 

Takashi percebeu na primeira barraca. 

Ele sorriu de canto de boca, mas sem humor, ao ouvir o preço de um pedaço de pano comum. Caminhou até Erina, que andava um pouco à frente, inspecionando uma estante de mantimentos com uma expressão impaciente. 

— Erina — chamou ele, com hesitação —, acho que tem algo de errado com os preços... 

Ela sequer se virou. 

— Imagino que seja a primeira vez que está lidando com dinheiro — respondeu, com frieza. 

Xin também tentou demonstrar seu desconforto. A jovem sinalizou, com um movimento rápido das mãos, que os números não faziam sentido. Algo estava inflado, forçado, artificial. 

— Vocês dois — disse Erina, com um suspiro —, se precisam de mais dinheiro, podemos voltar para o Kaji. Ah... finalmente. 

Ela parou diante de uma barraca de suprimentos diversos. O dono, um sujeito atarracado com um colar de dentes de lobo e um sorriso que parecia colado com cera quente, não perdeu tempo. 

— Aventureiros? Mercenários? Viajantes de sangue nobre? — bradou, espalhando os braços com teatralidade. — Não importa! Na minha loja, vocês encontrarão tudo que precisam para qualquer jornada ou missão suicida! 

Erina pousou os olhos sobre as prateleiras. Corda, anzóis, mapas, peles secas, facões, cera de vela, cantis reforçados. Era exatamente o tipo de estoque que procurava. 

Ela aproximou-se da bancada. 

— Quanto pela corda? 

— Uma barganha, cavaleira! Mil moedas por centímetro! — respondeu o vendedor, sem pestanejar. 

O silêncio durou um segundo. 

— É O QUÊ?! — explodiu Erina, com um grito que ecoou por todo o quarteirão. — MIL MOEDAS POR CENTÍMETRO DE CORDA?! ESTÁ DE SACANAGEM?! 

Cabeças se viraram. Comerciantes, fregueses, até alguns guardas ao longe. Mas não havia indignação nos rostos. Nenhuma surpresa. Apenas resignação. 

— Só trabalho com produtos de qualidade! — disse o homem, com orgulho. — E garanto: não encontrará preço melhor em outra barraca. 

— Tentaremos a sorte. Bom dia! — respondeu Erina, já se afastando, o nariz empinado em absoluto desprezo. 

Xin a seguiu, ainda com as mãos semi-erguidas, como se tivesse algo a dizer, mas naquele momento, nem sinais bastariam. 

Takashi, por sua vez, olhou para trás. Não para a corda, mas para os olhos do vendedor. E o que viu neles não foi ganância. 

Foi medo. 

 

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