O Mundo de Sombras e Ratos Brasileira

Autor(a): E. H. Antunes


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 19.7: Kuroda*

LEIA COM ATENÇÃO:

Caro leitor,

Este é um capítulo especial e opcional. Não é necessário lê-lo para seguir a história principal. Esses capítulos extras têm como objetivo aprofundar determinados temas como: personagens, grupos ou eventos, e em alguns casos, exploram histórias que não são cruciais para a trama central.

Neste capítulo (Capítulo 19*), você acompanhará a formação dos primeiros Flechas Fantasma, como o arco se tornou mágico, e enfim a história de Hitoshi e do próprio Takashi.

  • 1 - Sigmund
  • 2 - Hildegard
  • 3 - Rudolf
  • 4 - Doctrina Hereditas
  • 5 - Hitoshi
  • 6 - Líder
  • 7 - Kuroda
  • 8 - Takashi

7 - Kuroda

Mihai estava sentado em seu quarto, o silêncio da noite quebrado apenas pelo farfalhar de papéis espalhados sobre a mesa. O lampião ao lado projetava sombras em seu rosto marcado pelo tempo e pelas batalhas, e seus olhos se fixaram em um contrato específico:

Alvo: Homem Nobre
Localização: Nexoria
Descrição: Homem robusto, calvo, com aproximadamente 50 anos. Usa roupas caras, geralmente marrons, e uma bengala adornada com uma esmeralda no punho.
Obs.: O alvo frequenta um bar na periferia. Movimentação incomum para um nobre. Investigue e denuncie seus segredos. (Eliminação não recomendada.)

Poucos contratos chegavam com a ressalva de "eliminação não recomendada". A maioria das missões exigia sangue, morte e silêncio eterno. Desconfiado de uma armadilha ou de um jogo mais perigoso por trás desse pedido, Mihai decidiu que ele mesmo se encarregaria do contrato.

***

A viagem até Nexoria foi pesada e longa.

Ao se aproximar da cidade, uma névoa cinzenta encobria o horizonte. O cheiro pútrido de esgoto misturado à chuva tóxica era quase insuportável. Nexoria, outrora uma das principais cidades imperiais, agora era um retrato da decadência absoluta.

As ruas estavam cobertas de lama, lixo e excrementos. Animais doentes vagavam sem rumo, e a população, magra e maltrapilha, olhava para o chão, com medo de encarar qualquer autoridade.

A infraestrutura estava em colapso; o esgoto corria a céu aberto, se misturando com a chuva ácida que caía sem cessar. Os rios, antes cristalinos, agora eram poços de água tóxica. Nenhum sinal de vida saudável resistia ali. O ar carregava a morte, as plantas estavam secas, as árvores haviam sido derrubadas e o verde era uma lembrança distante.

A miséria era explícita, mas o que perturbava Mihai era a normalidade daquilo. Nexoria parecia ter aceitado seu destino.

Prostitutas e agiotas dominavam as esquinas, crianças corriam nas ruas brincando com ossos de animais como se fosse o único brinquedo disponível, e a morte pairava no ar como uma sombra familiar. Ao passar por um grupo de crianças, ele viu uma delas chutando o crânio de um gato. O som oco fez Mihai estremecer, mas ele se manteve impassível. Seu foco era outro.

Logo, ele avistou o alvo descrito no contrato. O homem era robusto, de roupas caras e impecavelmente limpas, contrastando violentamente com o cenário ao redor. A bengala, adornada com uma esmeralda brilhante, parecia simbolizar o poder que ele exercia sobre a cidade decadente.

Mihai observou como os habitantes o reverenciavam, dobrando-se e desviando o olhar sempre que ele passava. Era evidente que aquele homem tinha mais influência do que muitos nobres imperiais.

“Ele controla esta cidade”, Mihai pensou. “Um político local, talvez mais poderoso do que o próprio governador...”

O homem entrou em um bar clandestino na periferia da cidade. Mihai, com a precisão de um predador, aguardou alguns minutos, observando o movimento ao redor. Quando o momento parecia propício, ele entrou.

O bar era um lugar decrépito e sem vida. As tábuas do chão rangiam sob seus pés, e o cheiro azedo de bebida ruim e suor impregnava o ambiente. O único homem presente era o barman, uma figura suja e desgrenhada do local. Ele olhou para Mihai com desdém, como se pudesse cheirar que ele não pertencia àquele lugar.

— O que procura em nossa humilde cidade? — perguntou o barman, com um sorriso que não chegou aos olhos.

— O que você tem para beber? — Mihai perguntou, sentando-se no balcão, sua voz baixa e ameaçadora.

— Hoje só temos mijos — respondeu o barman, casualmente.

Mihai arqueou a sobrancelha, desconfiado.

— Perdão?

— Mijo de porco, cavalo, ovelha... e, se estiver com sorte, temos de nobres também. — O barman inclinou-se para Mihai, com um sorriso repulsivo no rosto. — Está interessado?

O sangue de Mihai ferveu. Ele sentiu o impulso assassino subir, como uma fera presa que encontrava a oportunidade de se libertar.

— Você só pode estar brincando. Não tem nenhuma cerveja, rum, vinho, nem sequer água? — perguntou Mihai, tentando conter sua irritação.

— Até temos... mas não para pessoas da sua laia — disse o barman, agora desafiando-o abertamente. — Você não parece ter o direito de usufruir dessas bebidas finas. É algum político imperial? Um nobre da cidade? Não? Então só tem mijo para você.

As palavras saíram como um veneno. A resposta de Mihai foi imediata e letal. Em um movimento fluido, ele sacou sua adaga e cortou a garganta do barman com precisão. O sangue começou a jorrar, e antes que o homem pudesse cair, Mihai pegou uma caneca e a posicionou sob o fluxo, enchendo-a com o sangue quente.

O barman caiu no chão, agarrando-se à garganta, tentando inutilmente conter o fluxo de sangue que lhe tirava a vida. Seu olhar era de pânico e desespero.

Mihai se abaixou ao lado dele, segurando a caneca de sangue.

— Por que não toma essa bebida... feita exclusivamente para você? — disse ele, com frieza, forçando a boca do homem a se abrir e afogando-o em seu próprio sangue.

O barman se contorceu em agonia, mas logo seu corpo parou de lutar, e a vida o abandonou. Mihai, sem perder tempo, trancou a porta do bar e começou a vasculhar o lugar.

***

Logo, ele encontrou um alçapão escondido. Com a chave que pegou do corpo do barman, Mihai o abriu e desceu.

O que viu o fez sentir um calafrio na espinha: celas improvisadas, correntes enferrujadas, sangue seco nas paredes e instrumentos de tortura pendurados como troféus. Aquele bar era apenas fachada para um mercado de escravos, um dos mais cruéis que ele já havia encontrado.

Enquanto ele explorava o local, ouviu vozes. Reconheceu uma delas como a do nobre que ele seguia.

— Como foram as vendas de hoje? — perguntou o nobre.

— As vendas hoje foram excelentes, meu senhor. A maioria dos homens foi vendida para as fronteiras, como trabalhadores. As mulheres e crianças, vendidas pelo continente, sem perguntas. O pagamento foi generoso.

— E o garoto? — perguntou o nobre, impaciente.

— Ainda nada. Ninguém quer aquele menino. O que fazemos com ele?

A resposta veio fria e indiferente.

— Matem-no. Joguem o corpo no esgoto amanhã de manhã. Vamos culpar um imigrante. Quem sabe assim consigo fechar as portas dessa cidade maldita.

Foi nesse momento que Mihai agiu. Ele atacou o companheiro do nobre, arrancando seus olhos e mandíbula em um golpe rápido e brutal. Quando o nobre se virou, o corpo mutilado caiu aos seus pés, e ele viu Mihai emergir das sombras, coberto de sangue.

— Quem é você? O que você quer? — perguntou o nobre, sua voz tremendo.

— Eu sou sua sentença. — A voz de Mihai era gélida. — Agora me responda: o que é este lugar?

Desesperado, o nobre revelou tudo. Admitiu que o bar era apenas uma fachada para um mercado de escravos que ele próprio administrava. Nobres de todo o continente vinham a Nexoria para comprar "trabalhadores clandestinos", uma outra forma de chamar os escravos. Homens, mulheres, crianças. Todos eram mercadoria.

— Não perguntamos o motivo da compra! — exclamou o nobre, em uma tentativa patética de se justificar. — Mas se não fosse por nós, eles teriam um destino pior! Eles são inimigos do Império!

Mihai ouviu o suficiente. Em um movimento rápido e preciso, ele perfurou a garganta do nobre com sua adaga curvada. O grito do homem foi interrompido antes mesmo de começar, e ele caiu, gorgolejando em seu próprio sangue.

Enquanto limpava a lâmina, Mihai refletiu sobre a podridão do Império. Aquele lugar, aquela cidade, era apenas um reflexo do que estava acontecendo em toda a nação. Ele sentiu que seu plano de exterminar os políticos e nobres corruptos estava mais justificado do que nunca.

Mas então, um movimento nas sombras chamou sua atenção. Um garoto estava observando tudo. Era o menino sobre o qual o nobre e seu companheiro haviam discutido.

Ele era jovem, mas seu olhar era vazio, uma casca de alguém que havia sofrido mais do que poderia suportar. Havia um reconhecimento silencioso entre eles. Mihai viu naquele garoto algo de si mesmo, algo que não podia ignorar.

Sem dizer uma palavra, Mihai se aproximou do menino. O garoto não recuou, não demonstrou medo, o que o impressionou. Ele já estava quebrado demais para reagir como qualquer outra criança. Seus olhos, vazios e sem esperança, lembravam os de alguém que havia aceitado o sofrimento como parte natural de sua existência.

Mihai se agachou, ficando à altura do menino. A chuva tóxica escorria pelos escombros ao redor, criando um ambiente sufocante, quase asfixiante, mas ali, naquele momento, a frieza de Mihai encontrou um ponto de compaixão, embora seu rosto não mostrasse emoção. Ele não precisava falar; a criança sabia o que viria a seguir. Ou seria levada, ou seria deixada para morrer.

— Você não vai mais ficar aqui — murmurou Mihai, mais para si mesmo do que para o menino.

Sem mais palavras, ele o ergueu nos braços. O corpo magro e leve da criança era quase insignificante para Mihai, mas o peso das implicações de tê-lo consigo era imenso. A criança não protestou, não ofereceu resistência. Apenas se deixou levar.

Com o menino em seus braços, Mihai caminhou pelos corredores escuros e sujos, passando pelos corpos que ele mesmo havia deixado no chão. A fúria que antes pulsava dentro dele deu lugar a uma frieza calculada. Agora, seu objetivo era escapar daquele inferno e levar o menino com ele.

Quando alcançou as ruas sujas de Nexoria novamente, o cheiro de morte e decadência era mais forte do que nunca. O céu continuava nublado, e a chuva, agora ácida e implacável, caía sem piedade. Ele sentiu a pele do garoto se contrair debaixo da chuva, mas não havia escolha. Precisavam sair dali antes que os comparsas do nobre percebessem o que havia acontecido.

***

De volta ao esconderijo, a longa viagem até o refúgio dos assassinos deu a Mihai tempo para refletir sobre o que havia acontecido. Ele olhava para o menino de relance, tentando decifrá-lo, mas as respostas não vinham facilmente. O garoto não falava, apenas seguia com ele, como uma sombra sem vida. Havia uma tranquilidade assustadora nele, como se a alma do garoto já estivesse além do que qualquer pessoa pudesse alcançar.

Ao chegar, Mihai estava ansioso para apresentar o menino a Hitoshi. Em sua mente, ele se lembrou das descrições que Hitoshi fazia de seu futuro sucessor: alguém que pudesse entender o que significava viver à sombra da morte, que tivesse visto a escuridão e, mesmo assim, tivesse força para continuar. Talvez o garoto fosse essa pessoa, talvez.

Ao entrar no salão principal do esconderijo, porém, Mihai encontrou Hitoshi já envolvido em outra apresentação. Ele estava com Takashi, o jovem que ele havia escolhido como seu sucessor. O Flecha Fantasma havia finalmente encontrado quem iria carregar seu legado.

Mihai parou na entrada, o garoto ainda em seus braços, observando a cena com uma mistura de surpresa e uma leve decepção. Ele nunca havia se permitido criar grandes expectativas, mas, por um momento, acreditou que talvez tivesse encontrado aquele que continuaria a linhagem de Hitoshi.

— Mihai, vejo que voltou — disse Hitoshi, com um sorriso caloroso e nostálgico. — E vejo que também trouxe alguém.

Mihai ficou em silêncio por um segundo. Ele olhou para Takashi e depois para o garoto em seus braços. O contraste entre os dois era óbvio. Takashi tinha o olhar determinado e a postura de alguém que sabia o que queria. O menino, por outro lado, parecia perdido, à deriva em um mar de dor.

— Este é Kuroda — disse Mihai finalmente, colocando o garoto no chão. — Eu o encontrei em Nexoria. O destino dele seria a morte, mas achei que ele poderia ter um futuro... diferente aqui.

Hitoshi olhou para o menino com um ar de curiosidade, mas também de compreensão. Ele sabia que Mihai não o traria para aquele lugar sem motivo.

— Ele tem o mesmo olhar que eu vi em muitos outros antes — continuou Mihai. — Um olhar que já viu demais, que já sofreu o bastante. Achei que ele poderia ser o sucessor que você procurava, mas vejo que você já o encontrou.

Hitoshi assentiu, seu sorriso gentil nunca deixando seu rosto.

— Takashi será meu sucessor, isso é verdade. Mas isso não significa que Kuroda não tenha um lugar aqui. Se você acredita que ele merece uma chance, então ele terá.

Mihai ficou aliviado, mas, ao mesmo tempo, sentiu uma leve pontada de melancolia.

Ele olhou para o menino mais uma vez, o coração pesado com uma mistura de culpa e responsabilidade. Agora, Kuroda era sua responsabilidade, sua chance de criar algo diferente do caos que havia conhecido.

— Muito bem, então — disse Mihai, a voz firme. — Eu cuidarei dele. Como meu filho.

E, por trás do semblante frio de Mihai, talvez houvesse também um pequeno lampejo de redenção que ele nunca ousaria admitir.



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