O Mundo de Sombras e Ratos Brasileira

Autor(a): E. H. Antunes


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 19.5: Hitoshi*

LEIA COM ATENÇÃO:

Caro leitor,

Este é um capítulo especial e opcional. Não é necessário lê-lo para seguir a história principal. Esses capítulos extras têm como objetivo aprofundar determinados temas como: personagens, grupos ou eventos, e em alguns casos, exploram histórias que não são cruciais para a trama central.

Neste capítulo (Capítulo 19*), você acompanhará a formação dos primeiros Flechas Fantasma, como o arco se tornou mágico, e enfim a história de Hitoshi e do próprio Takashi.

  • 1 - Sigmund
  • 2 - Hildegard
  • 3 - Rudolf
  • 4 - Doctrina Hereditas
  • 5 - Hitoshi
  • 6 - Líder
  • 7 - Kuroda
  • 8 - Takashi

5 - Hitoshi

Hitoshi cresceu em um vilarejo simples, um lugar onde o trabalho duro era comum e a vida era marcada por uma rotina imutável. Ele era o filho único de um pai amoroso e dedicado, que fazia o possível para criar seu filho em um ambiente seguro, mesmo que isso significasse sacrificar suas próprias ambições.

O pai de Hitoshi era um homem respeitado na aldeia, conhecido não apenas por sua força, mas também por seu coração gentil. Ele contava histórias fascinantes sobre a vida, o mundo e a importância de sempre ser justo e bondoso.

Os dois formavam uma dupla contagiante, acordando antes do sol e trabalhando juntos até o anoitecer. Hitoshi frequentemente ajudava seu pai nas tarefas do dia a dia, rindo e aprendendo enquanto se dedicavam a cultivar a terra e cuidar dos animais.

O pai de Hitoshi ensinou-lhe não apenas a trabalhar duro, mas também a sonhar grande. Ele sempre dizia:

— Hitoshi, não importa o quão difícil a vida se torne, sempre mantenha a esperança em seu coração. Você pode ser tudo o que desejar.

Esses momentos construíram uma ligação profunda entre pai e filho, e Hitoshi não poderia imaginar a vida sem o apoio inabalável de seu pai. Ele se sentia seguro e amado, mesmo nas adversidades da vida.

Mas, em uma noite fatídica, tudo isso mudaria.

Enquanto o vilarejo se preparava para dormir, Hitoshi avistou um brilho forte no céu, algo que parecia um cometa púrpuro. Animado, ele chamou seu pai, mas, para sua surpresa, seu pai não viu nada.

— O que você está dizendo, Hitoshi? — perguntou seu pai, confuso.

— Um cometa! Um brilho tão intenso, deve ter iluminado toda a aldeia!

— Hitoshi, não estou entendendo. Vamos, é hora de descansar.

Desapontado e intrigado, Hitoshi foi para a cama, mas a imagem do brilho ficou gravada em sua mente. Ele se perguntou como poderia ser possível que ninguém mais tivesse visto tal fenômeno astrológico. A curiosidade virou uma inquietação, mas ele logo adormeceu.

Na manhã seguinte, Hitoshi acordou com uma sensação de estranheza no ar. O sol já havia nascido, mas algo não estava certo. Quando ele entrou na sala, o cenário que encontrou foi um pesadelo: seu pai estava caído no chão, morto, com o pescoço cortado.

O mundo ao seu redor desabou em um instante. O coração de Hitoshi se partiu em mil pedaços. Ao lado do corpo de seu pai, uma figura sombria e encapuzada se erguia, e toda a sua felicidade se transformou em horror.

Paralisado, Hitoshi deu um passo para trás, tentando entender o que estava acontecendo. O assassino virou-se, e, ao ver o jovem, avançou com uma velocidade sobrenatural. Hitoshi fechou os olhos, aceitando a ideia de que sua vida acabaria ali.

Hitoshi foi nocauteado.

***

Hitoshi então acordou no meio de uma floresta, com uma leve dor de cabeça. Não reconhecia onde estava; com certeza, não era uma floresta próxima ao vilarejo. Ele estava com as mãos amarradas por uma corda, com um nó simples e eficaz.

Havia um pequeno rio ao seu lado com uma quantidade significativa de peixes, capazes de alimentar alguém durante meses. Percebendo as marcas no chão e a estrutura do acampamento onde estava, percebera que tudo dali era muito mais antigo do que aparentava.

Sentiu o cheiro de café, o mesmo tipo que seu pai fazia. Ao se virar na direção do odor, viu o assassino de costas, preparando sua refeição. Hitoshi ainda guardava mágoa e rancor do homem, e, mesmo assustado, estava determinado a acabar com a vida do assassino de seu pai.

Com todo o cuidado que possuía, ele se levantou e pegou a maior pedra que encontrou no chão. Aproximando-se lentamente, ele levantou a pedra o mais alto que pôde, e quando estava pronto para esmagar a cabeça daquele homem, o aroma familiar do café trouxe lembranças do calor do lar que perdera, aumentando sua raiva e sua determinação para se vingar.

— Eu não faria isso, se fosse você... 

A voz do sequestrador ecoou, atingindo a alma de Hitoshi, o paralisando. O que deveria ser um momento de justiça logo se transformou em confusão. Assustado e em pânico, Hitoshi soltou a pedra, a raiva se misturou com um profundo medo por sua vida.

Ele deu as costas ao assassino e começou a correr pela floresta, seu coração batendo forte.

A vegetação densa parecia se fechar ao seu redor, arbustos e galhos cortantes arranhando sua pele exposta. Ele tropeçou em raízes invisíveis, caindo no chão com um baque surdo, a sujeira da terra manchando suas roupas e a humilhação de sua queda pesando em seu espírito.

Ele não parou para pensar nos ferimentos; a única coisa em sua mente era escapar. Com as mãos amarradas, não havia nada que pudesse fazer para evitar suas quedas, e a frustração o acompanhava a cada passo desajeitado. Depois de correr por um tempo que pareceu eterno, finalmente parou no topo de um precipício, ofegante.

Ao olhar para baixo, a realidade da altura o fez sentir uma onda de desespero. Ele estava em uma grande montanha, cercado pela vastidão da floresta, sem qualquer caminho aparente para a segurança.

Virando-se lentamente, seu olhar se encontrou com o do homem que havia tirado tudo o que ele amava. O sequestrador estava ali, indiferente, a figura encapuzada quase etérea em meio ao cenário ameaçador.

O susto fez Hitoshi dar um passo para trás, mas, para seu horror, ele já havia chegado ao limite do chão sólido. Com um grito silencioso, ele caiu, a sensação de queda se arrastando por um segundo interminável até que, de repente, algo o segurou pela gola da camisa.

— É assim que quer encontrar com seu pai? — perguntou o homem, a voz tranquila e quase provocativa.

Hitoshi lutou contra as lágrimas que ameaçavam escorregar por seu rosto, a raiva fervendo dentro dele.

— O que importa! Você vai me matar de qualquer jeito... — sua voz estava carregada de dor e indignação.

— Acha mesmo que, se eu quisesse você morto, eu já não teria o matado? Use esse seu cérebro e raciocine um pouco.

— Cala a boca! Eu te odeio! Prefiro morrer a ser salvo por você!

O sequestrador arqueou uma sobrancelha, surpreendido pela intensidade do ódio do jovem.

— Você me odeia? — perguntou ele, quase como se se divertisse com a situação. Ao ver a resposta contida no rosto de Hitoshi, ele o jogou de volta para o chão, em solo seguro, como um pai que coloca seu filho de volta no caminho após uma travessura. — Ótimo. Vamos trabalhar com isso...

A adrenalina ainda pulsava em Hitoshi enquanto se recuperava do susto e da quase morte.

— Por que está fazendo isso? —perguntou Hitoshi, a dúvida misturada com raiva e confusão.

— Meu nome é Jango, jovem Hitoshi. E já que salvei sua vida, você me deve... — Jango jogou um arco velho e uma aljava no chão, como se estivesse lançando um desafio. — Vamos, tem muito do que eu lhe ensinar.

Com isso, Jango virou-se e começou a caminhar lentamente de volta para seu acampamento, ignorando Hitoshi.

Aproveitando a oportunidade, Hitoshi armou seu arco, a fúria em seu coração quase o forçando a disparar. Mas como poderia atirar naquele homem pelas costas? E se errasse? A hesitação o dominou; a diferença entre eles parecia um oceano, e, ao se dar conta disso, ele abaixou o arco. Seguindo Jango, uma mistura de revolta e confusão cresciam dentro dele.

Nos dias que se seguiram, Hitoshi passou por um rigoroso treinamento, aperfeiçoando suas habilidades com o arco e a caça, aprendendo a ler pistas e interpretar os sinais da natureza.

Jango era duro em seu treinamento, mas também justo; ele recompensava Hitoshi com as melhores refeições que podia preparar, uma pequena forma de compensar as feridas que havia causado.

O relacionamento dos dois era no mínimo estranho. Jango tratava Hitoshi como se fosse seu próprio filho, dando-lhe conselhos e cuidando dele durante o treinamento. Hitoshi ainda nutria um desejo ardente de vingança, tentando matar Jango sempre que encontrava uma oportunidade, mas, ao mesmo tempo, não queria admitir que estava, aos poucos, gostando do assassino de seu pai.

A linha entre amor e ódio tornava-se cada vez mais tênue, enquanto Hitoshi lutava para entender a complexidade daquela relação enraizada na dor e na traição.

***

Tanto tempo havia se passado, e Hitoshi já era um homem. Sua barba volumosa lhe conferia a aparência de um caçador experiente, mas, mesmo após anos de treinamento, ele ainda não havia igualado as habilidades de seu mestre. O mais curioso era que Jango, por sua vez, parecia não ter mudado nada. Ele aparentava estar tão jovem quanto no dia em que sequestrara Hitoshi, e isso o intrigava profundamente.

Naquela noite, sentados ao redor da fogueira, Jango havia preparado um enorme ensopado. O cheiro reconfortante da comida preenchia o ar, e Hitoshi sabia que seria a maior refeição que teriam em meses. Entre colheradas, ele não pôde deixar de questionar algo que o incomodava há muito tempo.

— Como você mantém seu rosto e físico tão jovens? — perguntou Hitoshi, após um longo silêncio.

— Quer saber meus segredos de beleza e higiene? — brincou ele, servindo uma tigela de ensopado para si mesmo.

— Não! Sei que sua juventude não é algo natural... Digo, olha para a gente. Se alguém nos visse agora, pensaria que eu sou o mestre!

Jango riu, mas era um riso amargo, como se a piada lhe trouxesse lembranças desagradáveis. Ele deu um gole longo do caldo, seus olhos fitando o fogo como se vissem algo muito além das chamas.

— Todos os seres vivos têm algo especial dentro deles — começou ele, sua voz soando mais séria agora —, uma alma. A alma é aquilo que nos torna vivos. E, justamente por isso, é uma força poderosa, mas desconhecida. Se alguém descobrir como usá-la... pode alcançar feitos inimagináveis.

— Como juventude e longevidade? — indagou Hitoshi, já antecipando a resposta.

— Exatamente.

— E você pode me ensinar? — a esperança era perceptível na voz de Hitoshi.

Jango suspirou, e por um momento, seus olhos brilharam com uma melancolia quase imperceptível.

— Não existe treinamento, técnica ou método para isso, Hitoshi. É algo que... você percebe, aos poucos, conforme vive.

— E como você fez? — perguntou Hitoshi, franzindo a testa.

A pergunta pairou no ar como uma lâmina afiada. Jango parou no meio de um gole, seus olhos focados em Hitoshi. Sua expressão endureceu antes de responder, quase como se fosse um segredo que ele carregava com um peso imensurável.

— Eu estava preso em um ciclo. E, ao quebrá-lo, ganhei controle sobre meu corpo, minhas habilidades e... o conhecimento do universo.

— Do... universo? — Hitoshi arqueou uma sobrancelha, confuso com a grandiosidade da palavra.

— Sinto muito. — Jango rapidamente corrigiu-se. — Eu quis dizer... do mundo.

— E o que aconteceu depois? — Hitoshi encheu novamente sua tigela, absorvendo cada palavra.

Jango fechou os olhos por um instante, como se as memórias o machucassem.

— Percebi que não havia quebrado o ciclo de verdade, apenas o interrompido. Estava mais preso do que antes. Fui até um monge, o mais sábio de todos, e juntos meditamos, buscando uma resposta que pudesse me libertar.

— E você encontrou? — Hitoshi perguntou, inclinando-se de seu lugar.

— Sim, eu encontrei... mas a resposta não era o que eu esperava. Eu precisava reiniciar o ciclo, mas isso se provou uma tarefa muito mais difícil do que eu imaginava. Não importa quantas vezes eu tentasse... eles sempre morriam.

— Quem morria? — Hitoshi perguntou, sua voz cheia de curiosidade, mas também de suspeita.

Jango hesitou, percebendo que havia dito mais do que deveria. Ele desviou o olhar, ignorando a pergunta.

— Minha juventude, Hitoshi, não é uma escolha. Embora muitos a vejam como uma bênção, para mim, é uma maldição. Um lembrete constante de meu fracasso como mestre... e discípulo.

O silêncio caiu sobre eles como um véu pesado. O único som era o crepitar das chamas que iluminavam seus rostos cansados.

— Acho que entendi o que você quis dizer... — disse Hitoshi após um longo momento.

— Não, não entendeu — respondeu Jango com um leve sorriso. — Mas em breve, você entenderá.

Eles terminaram o ensopado em silêncio, cada um absorto em seus próprios pensamentos. Quando a fogueira começou a se apagar, os dois se prepararam para dormir.

— Mestre? — chamou Hitoshi, já deitado, de costas para Jango. — Existe algo mais que você pode me ensinar? Sobre o arco?

Jango, em silêncio por um tempo, refletiu sobre os anos que haviam passado juntos, as tentativas de Hitoshi de matá-lo, o ódio que lentamente dera lugar a algo mais complexo.

— Não, Hitoshi. A partir de amanhã, você terá que aprender o restante por conta própria.

— Entendi... — respondeu Hitoshi, a voz calma. — Boa noite.

— Boa noite.

***

Naquela madrugada, o mundo parecia suspenso. Não havia vento, nem o som de animais ao redor. Tudo estava quieto. Hitoshi, no entanto, não conseguia dormir.

Ele se levantou com cuidado, suas mãos suadas enquanto pegava uma grande pedra que havia escondido ao lado de sua cama. Seu coração batia forte, e seu olhar fixava-se em seu mestre, agora adormecido.

Lentamente, ele ergueu a pedra acima da cabeça, seus braços tremendo com o peso da decisão. Ele olhou para Jango uma última vez, seu corpo imóvel, vulnerável.

— Hitoshi... — murmurou Jango, ainda dormindo, com uma voz calma e serena. — Obrigado... por me fazer... companhia...

E, com um movimento rápido e feroz, Hitoshi trouxe a pedra para baixo, esmagando a cabeça de Jango. O som do impacto ecoou pela noite. Ele não parou com um golpe; repetiu o movimento, a raiva e a vingança controlando cada batida.

Quando finalmente parou, seu peito subia e descia de forma descompassada. Ele havia se vingado. A pedra escorregou de suas mãos, e ele voltou para a cama, terminando o sono interrompido.

Na manhã seguinte, Hitoshi acordou para um cenário grotesco. O corpo de Jango, ou o que restava dele, estava sendo devorado por um urso. Suas entranhas espalhadas, os ossos visíveis. Era um espetáculo horrível.

Hitoshi instintivamente armou seu arco, pronto para matar a criatura... mas então hesitou. Olhando para o cadáver, percebeu que não havia motivo para se importar com o destino do assassino de seu pai.

Ele abaixou o arco e se virou, deixando o urso terminar seu banquete.



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