O Mundo de Sombras e Ratos Brasileira

Autor(a): E. H. Antunes


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 19.3: Rudolf*

LEIA COM ATENÇÃO:

Caro leitor,

Este é um capítulo especial e opcional. Não é necessário lê-lo para seguir a história principal. Esses capítulos extras têm como objetivo aprofundar determinados temas como: personagens, grupos ou eventos, e em alguns casos, exploram histórias que não são cruciais para a trama central.

Neste capítulo (Capítulo 19*), você acompanhará a formação dos primeiros Flechas Fantasma, como o arco se tornou mágico, e enfim a história de Hitoshi e do próprio Takashi.

  • 1 - Sigmund
  • 2 - Hildegard
  • 3 - Rudolf
  • 4 - Doctrina Hereditas
  • 5 - Hitoshi
  • 6 - Líder
  • 7 - Kuroda
  • 8 - Takashi

3 - Rudolf

Rudolf cresceu como o típico filho mimado. Seus pais sempre o tratavam como o centro de suas vidas, proporcionando-lhe tudo o que desejava. O melhor pedaço de carne sempre estava em seu prato, a melhor posição para dormir era sempre dele, e as noites eram livres para ele se manter acordado o quanto quisesse. Ele não conhecia limites, e seus pais participavam ativamente em todas as brincadeiras que ele sugeria, com sorrisos e uma paciência infinita.

Certo dia, durante uma brincadeira de esconde-esconde, tudo mudou.

Ele se escondia, rindo da adrenalina da brincadeira, enquanto seus pais o procuravam. Foi quando o urso surgiu. Ele assistiu, petrificado, enquanto sua mãe era morta em questão de segundos, e seu pai, tomado por um desespero feroz, tentou lutar com todas as forças que tinha. Mas o resultado foi o mesmo.

Seu pai caiu, e Rudolf, ainda escondido, não pôde fazer nada além de assistir.

Enquanto o horror dominava seu coração, uma figura apareceu. Uma mulher, tão silenciosa quanto um espírito da floresta, disparou uma única flecha. O urso, que momentos antes era imparável, caiu morto instantaneamente. Mas, ao cair, o corpo massivo da fera esmagou a mulher que o havia salvo.

Rudolf, apavorado, tentou mover o imenso urso, mas a mulher misteriosa se levantou, movendo o cadáver do animal com uma força impressionante.

Para Rudolf, ela não era humana. Era uma espécie de entidade mística da floresta, uma protetora selvagem. Seus cabelos trançados, o olhar intenso e o silêncio com que ela agia reforçavam essa ideia.

Quando ele sorriu em gratidão, a moça simplesmente virou-se e caminhou para dentro da floresta, como se tivesse completado sua missão.

Rudolf, agora sozinho e apavorado, decidiu segui-la.

Sua perseguição foi quase cômica. Enquanto ela movia-se com a graça e velocidade de uma criatura sobrenatural, Rudolf tropeçava em cada raiz e pedra no caminho. Ele finalmente caiu, arranhando seu joelho em um tombo doloroso.

Quando a mulher, a mística que ele imaginava ser sua salvadora, voltou para socorrê-lo, enfaixando sua perna com destreza, Rudolf sorriu, acreditando que agora estava seguro.

— Meu nome é Rudolf, e o seu? — perguntou ele, inocentemente.

— Hildegard — respondeu ela, sua voz fria e distante. — Pestinha...

A partir daquele momento, Rudolf passou a seguir Hildegard como um cachorro perdido.

Ele acreditava que ela era uma espécie de guardiã, uma figura sobrenatural da floresta. Não havia dúvida em sua mente; Hildegard não era humana, e por isso ele não questionava suas habilidades ou seu comportamento recluso.

***

Os dois formaram uma pequena dupla inconveniente, Rudolf era mais um peso a ser carregado do que um simples ajudante.

Enquanto ela caçava com uma precisão mortal e construía abrigos com facilidade, ele mal conseguia acender uma fogueira. Ele não sabia pescar, não conseguia identificar plantas venenosas, e a ideia de usar um arco parecia absurda para ele.

Seus fracassos diários eram evidentes, e Hildegard o repreendia constantemente, com desprezo. Ela contava histórias de como, na idade dele, já havia matado seu primeiro cervo com uma única flechada.

Rudolf, no entanto, apenas suspirava, pensando consigo mesmo que ela era uma criatura da floresta, abençoada pelas forças naturais. Ele, por outro lado, era apenas um humano comum.

Com o passar dos anos, as falhas de Rudolf se tornaram tão evidentes que Hildegard parou de criticá-lo. Ela simplesmente desistiu de tentar ensiná-lo, aceitando que ele era incapaz. Ela assumiu todas as responsabilidades pela sobrevivência dos dois, caçando e protegendo o acampamento enquanto ele tentava fazer o mínimo para não ser um peso ainda maior.

Rudolf cresceu, mas seu corpo não refletia o tempo que passou na floresta. Mesmo adulto, ele era magro, não possuía os músculos ou a resistência que Hildegard tinha. Ela, por sua vez, parecia imutável, como se o tempo não a tocasse. Era como se Hildegard fosse um espírito, eternamente jovem e forte, enquanto ele continuava a envelhecer pateticamente.

***

Um dia, enquanto Hildegard estava fora, Rudolf avistou uma ave de rapina sobrevoando o acampamento. Ele se lembrou de como ela apreciava as penas desse tipo de ave para suas flechas, e decidiu que, desta vez, faria algo para impressioná-la.

Sem pensar, ele correu atrás do pássaro, ignorando o fato de que não possuía um arco, nem qualquer habilidade relevante ou ferramenta para o auxiliar. Ele o seguiu até uma elevação rochosa e começou a escalá-la com dificuldade. Cada movimento era um esforço doloroso, mas ele persistiu. Queria, pela primeira vez, mostrar a Hildegard de que era capaz.

Quando chegou ao topo, a ave partiu assim que o viu.

Rudolf ficou ali, frustrado e cansado, com a sensação de fracasso mais uma vez.

Sabendo que não conseguiria retornar pelo mesmo caminho que fizera, pois estava exausto demais, começou a procurar por uma saída alternativa. Ao encontrar a entrada de uma caverna, não pensou duas vezes, adentrou-a.

Rudolf sentia o peso da escuridão ao seu redor enquanto se aventurava pela caverna. O silêncio ali dentro era quase opressor, ele não conseguia afastar a sensação de estar sendo observado.

O medo rastejava por sua pele, fazendo-o tremer. Por sorte, Hildegard sempre o obrigava a levar consigo um conjunto básico de materiais, assim, ele poderia fazer uma tocha, uma das poucas coisas que ele era capaz de fazer.

Quando a acendeu, o terror se revelou em sua forma mais grotesca: Renascidos, criaturas outrora humanas, agora deformadas, com pele apodrecida e olhos vazios de vida. Eles o observaram inquietos.

O primeiro gritou, um som grotesco que ecoou pelas paredes da caverna. Logo, o restante do bando correu em sua direção, suas passadas ecoavam como tambores de guerra.

O pavor tomou conta de Rudolf. Ele tentou fugir, mas seus pés falharam, e ele caiu, sentindo o chão gelado sob seu corpo. Os Renascidos se aproximavam cada vez mais, e ele teve certeza de que seria o seu fim.

Então, o som de flechas cortando o ar encheu a caverna, e os primeiros Renascidos caíram. Os corpos grotescos tropeçaram uns nos outros, criando uma pequena confusão que deu a Rudolf o tempo necessário para olhar para trás e ver Hildegard com sua mão estendida.

— VENHA LOGO, SEU PESTE! — gritou ela, e pela primeira vez, ele sentiu o desespero na voz dela.

Sem hesitar, Rudolf agarrou a mão, e juntos eles correram pela caverna escura, em direção da entrada, fugindo dos horrores que os perseguiam.

— Como me encontrou? — perguntou ele, com a respiração ofegante.

— Segui seus rastros, como sempre. — Hildegard respondeu secamente, mantendo o foco nos perigos ao redor.

Mas antes que pudesse dizer mais, a parede ao lado deles explodiu, e tudo ficou em câmera lenta para Rudolf. Hildegard, que estava mais próxima, foi atingida por destroços; uma pedra perfurou seu olho com violência.

O horror tomou conta dele, enquanto ela tentava se levantar, já com o arco em mãos.

Do outro lado da destruição, emergiu um Renascido gigantesco, quase três metros de altura, uma massa monstruosa de músculos e ossos expostos.

Hildegard, mesmo ferida, não hesitou. Ela disparou uma flecha no coração da criatura, mas o monstro continuou avançando, implacável. Com precisão, ela preparou três flechas ao mesmo tempo e as disparou, atingindo a cabeça da aberração. Dessa vez, o monstro cambaleou e caiu pesadamente no chão.

Mas o impacto de seu corpo fez a caverna estremecer, e o teto começou a desmoronar. Rudolf assistiu em pânico enquanto as rochas caíam. Hildegard, percebendo que ele estava na zona de impacto, jogou-se sobre ele, empurrando-o para fora do caminho enquanto o teto desabava.

Quando a poeira baixou, Rudolf olhou ao redor, sentindo o coração apertado no peito. A entrada estava bloqueada, os Renascidos soterrados. E, embaixo de uma pilha de escombros, Hildegard também estava presa.

Desesperado, Rudolf usou toda a sua força para removê-la dos escombros. Conseguiu liberar a parte superior do corpo dela, mas suas pernas estavam presas sob uma rocha gigantesca, impossível de mover.

— Merda! Merda! Não era pra isso ter acontecido! — ele gritou, com lágrimas escorrendo pelo rosto.

Hildegard, ferida e fraca, deu um sorriso cansado, mas zombeteiro.

— Está tudo bem... — sussurrou ela, a voz quase inaudível.

— Não está nada bem! Isso é culpa minha! Eu... Eu... — Ele se afogava nas lágrimas, sentindo-se impotente.

— Sim... a culpa é sua... — Ela disse com um sorriso estranho. — Você demorou um pouco, mas finalmente conseguiu me matar.

Confuso com o que sua mestra dizia, Rudolf a escutou atentamente, enquanto lágrimas escorriam dos rostos de ambos.

— Eu matei meu pai acidentalmente também... Iria fazer um pouco mais de um ano desde que ele tinha me adotado... Eu queria fazer algo especial para ele, mas... acabei envenenando nossa carne. Eu sobrevivi, e ele não. — disse ela, com suas lágrimas limpando a poeira de seu rosto onde elas escorriam. — Você, por outro lado, demorou um pouco mais de 10 anos para fazer o mesmo comigo.

— Não fala isso! Me insulta! Grita comigo! Como você sempre faz... — ele soluçava, enquanto o peso da realidade o esmagava.

— Obrigada... — sussurrou Hildegard, com um sorriso reluzente. — Por me fazer companhia... Não poderia ter pedido por alguém melhor.

E então, ela parou de se mover, congelada em um sorriso eterno. O silêncio que se seguiu foi devastador. Rudolf ficou ali, imóvel, segurando o corpo sem vida de Hildegard.

***

Sem ter mais o que fazer, ele pegou o arco de sua mestra e se forçou a deixar a caverna, cada passo mais difícil que o anterior. Quando chegou à beira da elevação rochosa de onde viera, olhou para baixo, pensando se a morte seria o caminho mais fácil.

Mas algo dentro dele mudou. As palavras de Hildegard, seus ensinamentos, ecoaram em sua mente. Ele se lembrou de todos os conselhos, os insultos, e suas lições duras. Ele sabia o que precisava fazer.

Respirou fundo, amarrou o arco às costas, e preparou-se para saltar para as árvores.

Com cautela, ele seguiu as instruções que tantas vezes havia ignorado. Utilizou as folhagens para amortecer a queda e, mesmo com uma dor latejante no cóccix, conseguiu sobreviver a queda. O arco de Hildegard agora estava com ele, um símbolo de seu legado.

A solidão era perceptível, mas diferente desta vez. Ele aprenderia. Ele sobreviveria. E, em algum momento, encontraria alguém que continuaria esse ciclo, alguém que herdaria o arco e a responsabilidade de manter viva essa tradição.



Comentários