O Mundo de Sombras e Ratos Brasileira

Autor(a): E. H. Antunes


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 19.2: Hildegard*

LEIA COM ATENÇÃO:

Caro leitor,

Este é um capítulo especial e opcional. Não é necessário lê-lo para seguir a história principal. Esses capítulos extras têm como objetivo aprofundar determinados temas como: personagens, grupos ou eventos, e em alguns casos, exploram histórias que não são cruciais para a trama central.

Neste capítulo (Capítulo 19*), você acompanhará a formação dos primeiros Flechas Fantasma, como o arco se tornou mágico, e enfim a história de Hitoshi e do próprio Takashi.

  • 1 - Sigmund
  • 2 - Hildegard
  • 3 - Rudolf
  • 4 - Doctrina Hereditas
  • 5 - Hitoshi
  • 6 - Líder
  • 7 - Kuroda
  • 8 - Takashi

2 - Hildegard

Hildegard, uma jovem enérgica e travessa, passava seus dias vagando pelas florestas com a inocência de quem ainda não havia sentido o peso do mundo. Sua família, muitas vezes impaciente com sua natureza inquieta, parecia preocupada em carregá-la por onde iam.

Tudo mudou no dia em que sua mãe engravidou novamente. Naquele momento, o comportamento de seu pai mudou. Ele propôs uma brincadeira de esconde-esconde na floresta, algo que ele nunca havia feito antes. Para Hildegard, aquilo era uma alegria inesperada; afinal, seu pai finalmente estava disposto a brincar com ela.

Ao cair da noite, ela começou a contar lentamente, seguindo a orientações de seu pai. Ela esperou pacientemente, até que pudesse tentar encontrá-lo. No entanto, ele não estava em lugar algum. Nem no alto das árvores, atrás das rochas, ou submerso riacho. Ele havia desaparecido.

Hildegard, agora sozinha, começou a entender o que realmente estava acontecendo.

A tocha que carregava, talvez uma maneira de denunciá-la para seus pais, pesava em suas mãos pequenas, queimando seus dedos enquanto tentava usá-la para se guiar na escuridão.

A compreensão da traição de sua família a atingiu como uma flecha, seu irmão, ainda por nascer, substituiria o lugar que ela jamais teve verdadeiramente. O grito que soltou não era apenas de tristeza, mas de uma mistura de raiva, medo e solidão.

Foi nesse momento de desespero que ele apareceu.

Ele se parecia como uma fera da floresta, com a barba selvagem e o cabelo desgrenhado, um arco pendurado em suas costas. Sua aparência aterrorizava, mas ele não parecia uma ameaça.

A primeira tentativa de Sigmund de falar foi quase grotesca, uma voz que parecia não ser usada por tanto tempo. No entanto, ele a acolheu, sem palavras. Era um homem primitivo, mas em seus olhos havia bondade.

***

Ao longo dos dias, a estranha convivência entre eles transformou-se em uma espécie de laço que ambos nunca haviam experimentado. Hildegard, que antes era considerada um fardo, agora sentia o peso de sua própria existência aliviado pela presença de Sigmund. E ele, por sua vez, encontrava nela um motivo para não vagar solitário.

O tempo, embora fosse um conceito confuso para Sigmund, passava para Hildegard com clareza. Ela prestava atenção nas mudanças das estações, no cair das folhas, no florescer das plantas, algo que Sigmund mal notava.

Quando ela comentou que fazia um ano desde que haviam se encontrado, Sigmund a olhou com admiração. Ela era uma menina esperta, com uma sensibilidade para o mundo que ele jamais teve. Talvez por isso, ele decidiu que estava na hora. O arco, seu legado, seria dela.

O aprendizado de Hildegard com o arco foi rápido e impressionante. Em pouco tempo, suas habilidades superaram as de Sigmund. Ela atirava enquanto corria, saltava, até mesmo quando estava caindo. Sigmund, com sua precisão desenvolvida, disparava flechas apenas quando parado. Ele estava maravilhado.

A jovem que ele encontrou perdida na floresta agora era uma caçadora de incrível habilidade. Mesmo assim, ele sabia que o valor dela ia além da mera técnica; havia algo especial em sua natureza, uma conexão com o mundo ao redor que ele nunca alcançara.

Quando abateu sua primeira presa grande, o orgulho de Sigmund era notável.

Eles prepararam a carne para aquela noite, mas Hildegard tinha uma ideia. Queria retribuir tudo que Sigmund lhe ensinara, e, lembrando-se das maneiras como sua mãe cozinha, coletou algumas ervas e folhas para temperar a comida.

O sabor foi uma surpresa. A carne tinha um sabor tão delicioso que eles se engajaram em uma pequena competição, tentando ver quem comia mais. Sigmund venceu, mas Hildegard não se importava, ela estava feliz por poder compartilhar aquele momento com ele.

Sob o céu estrelado, Hildegard sentiu uma profunda conexão. Sigmund, relaxado pelo estômago cheio e o ar fresco da noite, finalmente falou o que carregava em seu coração.

— Obrigado — disse Sigmund.

— Não foi nada, a partir de hoje comeremos assim todas as noites! — disse Hildegard, com um grande sorriso.

— Obrigado pela sua companhia — disse Sigmund, com o pesar em sua voz. — Eu vaguei por tanto tempo sozinho que... pensei que iria enlouquecer. Mas quando eu te vi, senti que minha vida voltara a ter sentido.

Hildegard ficou quieta, estava envergonhada ao ser elogiada.

— Sei que não sou seu pai — continuou ele —, mas tenho orgulho de ter você como minha aprendiz.

Hildegard permaneceu quieta, virando seu rosto para não mostrar sua vergonha e lágrimas.

Sigmund sorriu, sabendo o que ela estava fazendo. Sem ter mais nada para dizer, e sentindo o sono o dominar, ele disse:

— Boa noite, Hildegard.

— Boa noite, pai — respondeu ela, em um momento de vulnerabilidade que jamais demonstrara antes.

O que deveria ter sido apenas mais uma noite tranquila na floresta se transformaria em pesadelo.

***

Hildegard acordou no meio da madrugada, atormentada por uma dor lancinante em sua barriga. Gritou, esperando que Sigmund a ajudasse, mas ele não se moveu. O silêncio se tornou aterrador. Quando se aproximou dele, a realização a atingiu como uma pedra fria no peito.

Sigmund estava morto.

Hildegard, desesperada, forçou-se a vomitar tudo que havia comido. A dor ainda a consumia, mas agora sendo mais tolerável.

Confusa com o ocorrido, a natureza resolveu mostrar para Hildegard a resposta.

Um pequeno cervo estava próximo, pastando nas folhas ao redor do acampamento, mas recusando-se a tocar uma em particular, a mesma que ela havia usado para temperar a comida.

Foi nesse momento que ela entendeu. O veneno que matou Sigmund vinha da própria planta que ela havia colhido, e a culpa se agarrou a seu coração com garras afiadas.

Com as mãos tremendo, Hildegard enterrou Sigmund ainda na madrugada, finalizando o trabalho quando o sol já nascera.

Suas lágrimas caíam na terra enquanto ela cobria o corpo dele, prometendo a si mesma que jamais permitiria que ele fosse devorado por predadores. Mas dentro de si, algo havia morrido também. A culpa a corroía, e ela sabia que jamais se perdoaria.

Hildegard partiu, levando consigo apenas o arco que Sigmund lhe dera. A floresta, que antes era um lar, agora se tornara um vasto mar de solidão. E, sozinha, ela vagaria, carregando a dor e a culpa pelo resto de sua vida.

Aquele acampamento próspero, onde o riu possuía peixes que os alimentara por tantas noites, fora abandonado por Hildegard, para nunca mais voltar.

***

Com o passar dos anos, Hildegard tornou-se uma figura imponente da floresta. Seus músculos eram firmes e bem definidos, resultado de anos de caça e sobrevivência, e suas mãos calejadas, marcas de dias infinitos a segurar o arco e as flechas que haviam se tornado suas únicas companhias. Seus cabelos, agora trançados de forma prática, refletiam a luz do sol que espreitava pelas folhas das árvores, e seu olhar, antes curioso e cheio de vida, agora era apenas um reflexo da solidão que a perseguia.

A floresta era seu domínio, e cada trilha, cada som e cada sombra eram conhecidos por ela. Hildegard já não temia os perigos ocultos na natureza; os lobos se afastavam de seu cheiro, os cervos sequer percebiam quando ela se aproximava, tamanha a sua habilidade em se mover sem fazer ruído. Ela caçava com eficiência sobre-humana, disparando flechas enquanto corria ou saltava, seus movimentos tão fluidos e precisos que pareciam parte de uma dança mortal.

No entanto, enquanto seu corpo e habilidades evoluíam, algo dentro dela murchava. A solidão, que antes era apenas uma companhia indesejada, agora pesava sobre sua alma como uma âncora que a puxava cada vez mais para o fundo. Ela se lembrava de Sigmund com saudade e culpa. Em noites de vigília solitária, olhando para as estrelas, sentia o eco vazio de uma conversa que nunca mais aconteceria, de um sorriso que jamais veria novamente.

A solidão, como uma doença silenciosa, começou a consumir seus pensamentos. Em alguns momentos, ela quase desejava que algo na floresta a confrontasse, algo que pudesse ser mais forte que suas habilidades, apenas para sentir algo além da culpa e da tristeza que a rondavam. Mas nada jamais o fez. Hildegard era uma predadora imbatível, mas, no fundo, ansiava por algo ou alguém que pudesse quebrar a monotonia de sua existência.

***

Em uma determinada manhã silenciosa, um rugido distante trouxe uma pequena chama de excitação ao seu peito. Um urso. Hildegard pegou seu arco, mas não por necessidade, havia caça suficiente, e sim porque o instinto de caçar, de encontrar alguma adversidade, a movia mais do que qualquer outra coisa.

Ela correu pela floresta, desviando com agilidade de cada obstáculo em seu caminho, até chegar ao local do combate. Um pequeno acampamento havia sido destruído, e o chão estava marcado com sinais de luta.

Ao ver o corpo de uma mulher caído, horrivelmente mutilado, Hildegard se aproximou e reconheceu algo terrível: não era apenas uma mulher qualquer, era sua mãe. Ela sabia, no fundo, por pequenas pistas: o formato do rosto e os poucos traços que restavam.

O rugido ecoou novamente, e Hildegard correu em direção ao som. O urso estava sobre o corpo de um homem caído. Seu pai.

Não havia tempo para refletir sobre o que aquilo significava. O urso virou-se para ela, rosnando, e investiu em sua direção com brutalidade. Hildegard puxou a corda do arco com força, sentindo a tensão nos músculos. A flecha atravessou o ar com um zunido mortal, cravando-se fundo no peito do animal, que desabou sobre ela.

O peso esmagador do urso a imobilizou no chão, e por um instante, Hildegard sentiu que sua vida estava prestes a terminar ali. O ar sumia de seus pulmões, suas costelas protestavam sob o peso da fera, e sua visão já começava a se desfazer em sombras. E então, uma quietude tomou conta de sua mente. Seria assim que ela morreria, finalmente libertando-se da solidão que a atormentava, para se reencontrar com Sigmund.

A ideia de desistir parecia tentadora, o sufocamento lento se tornara acolhedora, uma espécie de redenção.

Mas, de repente, algo rompeu o silêncio. Um esforço fraco, quase insignificante, tentava mover o urso. Hildegard ouviu um gemido, não de dor, mas de alguém que, desesperadamente, estava tentando salvá-la. Mesmo fraco, o movimento do corpo da fera fez com que a realidade a atingisse com força. Alguém havia sobrevivido, e estava lutando para salvá-la.

Um lampejo de determinação reacendeu em seu peito. Não seria assim que ela morreria.

Com um grito abafado e usando toda a força que ainda lhe restava, Hildegard agarrou o pelo grosso do urso e, com um impulso extraordinário, levantou o corpo massivo da fera. O esforço fez seus músculos arderem, e por um momento, parecia impossível, mas ela conseguiu. O corpo do urso tombou ao lado, revelando-a finalmente livre.

Ofegante, Hildegard ergueu-se, os braços ainda tremendo com a intensidade do esforço. Quando seus olhos encontraram aquele que tentara ajudá-la, ela viu o puro choque estampado em seu rosto.

Ele estava coberto de sujeira e lágrimas, paralisado entre o espanto e o medo. A força que ela demonstrou não era apenas física, mas algo além do que ele poderia imaginar. Aquele olhar... os olhos dele, o cabelo, o rosto. Algo nele era terrivelmente familiar.

Hildegard encarou o garoto com intensidade, sentindo seu coração se apertar de forma diferente agora.

Ela soube imediatamente quem ele era.

Era seu irmão. O mesmo que fora a razão de seu abandono. O garoto que, aos olhos de seus pais, merecia um destino melhor, mais seguro, enquanto ela fora deixada para se perder nas profundezas da floresta.

O sangue ferveu em suas veias. A presença do menino reabriu feridas que ela tentava esquecer havia anos. Não se importava por ter sido abandonada pelos seus pais, mas o garoto fazia-a lembrar de Sigmund. Se o aceitasse, também estaria aceitando que Sigmund não era seu pai de verdade?

O garoto sorriu, alheio ao turbilhão de emoções que assolavam sua irmã mais velha. Para ele, Hildegard era uma salvadora, alguém com quem poderia contar agora que seus pais estavam mortos.

Ela, por outro lado, apenas sentia o peso de uma responsabilidade que não queria. Suas mãos tremiam de raiva contida, e o desejo de gritar com o garoto era quase incontrolável. Mas ao invés de explodir, ela se virou, preparando-se para partir sem uma palavra.

Ele a seguiu. Mesmo sem dizer nada, seus passos suaves tentavam acompanhar os dela.

Hildegard acelerou, o rosto fechado, esperando que o menino desistisse. Mas não o fez. E então veio o som de um tropeço, seguido por um gemido baixo. Quando ela olhou para trás, viu o garoto caído, com o joelho ralado, tentando segurar o choro.

Hildegard parou.

Tudo dentro dela dizia para seguir em frente, para deixá-lo ali e continuar sozinha, como havia feito por tanto tempo. Mas algo, talvez o instinto que Sigmund plantou nela, a fez voltar.

Sem dizer nada, ela se ajoelhou ao lado dele e rasgou um pedaço de sua própria roupa para fazer uma atadura improvisada no ferimento do garoto. Ele sorriu agradecido, e aquilo a irritou profundamente.

— Meu nome é Rudolf — disse o garoto, sua voz leve e inocente.

Hildegard não respondeu imediatamente. Ela olhou para ele, vendo um reflexo distante de si mesma, uma criança abandonada e sem escolha. Finalmente, murmurou com a voz baixa e firme:

— Hildegard.

Ela se levantou, ignorando o brilho nos olhos do menino.

— Pestinha... — sussurrou para si mesma, com o tom amargo.

Ela sabia que, de alguma forma, aquele menino seria um peso que teria que carregar, mesmo que fosse contra sua vontade.



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