Volume 1 – Arco 2
Capítulo 16
O casal finalmente chegou à Câmara.
Erina estava com os punhos sujos de sangue, assim como as laterais de seu escudo e sua própria armadura. As lâminas prateadas de Kenshiro haviam mudado para um tom escarlate, com seu rosto e corpo igualmente cobertos de sangue fresco; não havia tempo para pensar em higiene.
À frente deles, a escuridão os aguardava como uma boca faminta.
Ambos respiraram fundo.
Erina, com o coração livre de medos, sabia que não havia nada naquela escuridão que pudesse feri-la. A batalha recente apenas a deixara mais confiante.
Kenshiro, no entanto, sabia o que as trevas podiam esconder. Embora não temesse a escuridão em si, temia o que poderia estar a espreita, invisível, aguardando o momento certo para atacar. Foi então que, ao sentir a mão de Erina segurando-o com firmeza, sentiu-se momentaneamente aliviado.
— Me proteja, que eu protegerei você — disse ela, num tom que misturava ternura com uma certeza fria.
Inspirado pelo apoio de sua esposa, Kenshiro assentiu. Mesmo com o coração aperto, sabia que não estaria sozinho.
Erina tomou a dianteira, erguendo seu escudo, enquanto Kenshiro, sempre alerta, protegia a retaguarda. A passagem se fechou atrás deles com um som seco e definitivo, trancando-os dentro de um vazio carente em luz.
O casal permaneceu imóvel por algum tempo, cada um respirando fundo enquanto seus olhos tentavam se ajustar ao nada ao redor. Nenhum deles ousava dar um passo sequer, tinham consciência que estavam em desvantagem, caminhavam apenas quando tinham a certeza de que era seguro.
Então, uma luz fraca e avermelhada surgiu, iluminando um poço de pedra no centro da câmara. Ao lado do poço, estavaam os corpos da dupla de assassinos, atirados no chão como bonecos quebrados.
— Takashi... Kuroda... — sussurrou Erina.
O casal caminhou lentamente até eles, os passos cautelosos e os sentidos em alerta. Nenhuma emboscada. Nenhum movimento nas sombras que os cercavam. O silêncio e a falta de ação eram perturbadores.
— Como eles estão? — Kenshiro perguntou, atentando-se aos redores.
A luz avermelhada os banhava de maneira sinistra.
Erina abaixou o escudo e se ajoelhou ao lado dos companheiros.
— Kuroda está apenas desmaiado. Mas Takashi... Ele foi afogado. — Sua voz tinha um peso grave.
Sem perder tempo, ela começou a ressuscitar Takashi, enquanto Kenshiro, sem paciência, deu pequenos chutes no corpo de Kuroda para acordá-lo.
Kuroda finalmente despertou, ainda atordoado, seus olhos perdidos
— Kuroda... — Kenshiro começou, mas antes que pudesse completar, Kuroda murmurou algo, parecendo ainda preso em uma ilusão .
— A escuridão... Precisamos entrar na escuridão... é a única maneira...
— O quê? — Kenshiro ergueu um sombrancelha, enquanto olhava para a vastidão ao redor. — Tem certeza? A escuridão parece ser o último lugar seguro para nós.
Takashi despertou, expelindo toda a água de seus pulmões com uma violenta tosse, seu corpo convulsionou ao retornar à vida. Ainda desorientado, olhou ao redor, seus olhos tentando se focar nas figuras familiares.
— Kenshiro... Erina...? — Ele parecia tentar se localizar no tempo e no espaço.
— Estamos aqui — respondeu Erina, abaixando o elmo para que ele pudesse vê-la.
Takashi a reconheceu com um olhar aliviado, e então viu Kenshiro, de pé, sempre vigilante.
Antes que pudessem se organizar completamente, o olhar de Kuroda mudou. Num movimento rápido, ele pegou sua adaga e, com uma expressão de fúria, avançou contra Erina, mirando seu pescoço.
Kenshiro, agindo por instinto, foi mais rápido. Suas lâminas cortaram o ar e, num golpe preciso, ele decepou a mão de Kuroda antes que a adaga pudesse tocar sua esposa.
Kuroda gritou em agonia, sua voz ecoando pela caverna, antes de correr para a escuridão, desaparecendo nela como uma sombra.
Takashi, ainda atordoado pela ressurreição, observou a cena, sua mente confusa e fragmentada. Quando a compreensão finalmente o atingiu, ele gritou:
— Kenshiro! O que você fez?! Como pôde fazer isso com Kuroda!
Mas então, a voz de Kuroda, antes aguda de dor, começou a se transformar. Tornou-se grave, sombria e profunda, e os ecos que seguiam suas palavras eram perturbadores.
— Kuroda? — Takashi olhou ao redor, ainda mais confuso, enquanto a escuridão respondia com sussurros. — Onde ele está? Eu preciso encontrá-lo!
Erina, sem pensar duas vezes, deu um tapa firme no rosto de Takashi, trazendo-o de volta à realidade.
— Foco! — gritou ela. — Precisamos sair daqui! Existe alguma saída? Qualquer coisa?
Takashi respirou fundo, tocando o rosto onde o tapa de Erina o acertara.
— A única saída... é a passagem por onde entramos. Mas... — sua voz vacilou ao lembrar da figura assombrosa. — O líder ataca usando as sombras. Se entrarmos na escuridão, estaremos à mercê dele.
— E quanto ao poço? Ele leva a algum lugar? — perguntou Kenshiro, sua mente sempre buscando alternativas.
— Não... não que eu saiba.
A caverna, então, começou a tremer, e uma risada sombria reverberou por todos os cantos, envolvida na mesma escuridão.
— Desistam! — a voz do líder ressoou com autoridade cruel. — Eu posso dar a vocês uma morte rápida... e indolor... como fiz com Kuroda.
Irritado e desesperado, Takashi olhou ao redor e percebeu que seu arco estava ausente.
— Meu arco! Ele... ele está no poço!
Num impulso, ele correu até a borda do poço e olhou para as águas escuras abaixo. Sem seu arco, ele sabia que estaria indefeso.
— O que você está fazendo? — Erina gritou, tentando impedi-lo.
— Eu preciso do meu arco! É a nossa única chance de vencermos! — E sem esperar pela permissão de ninguém, Takashi mergulhou nas águas sombrias.
Nesse instante, uma sombra saiu das trevas, tentando atacá-lo. Kenshiro foi rápido, cortando-a com suas lâminas afiadas. A sombra desapareceu, como se nunca tivesse existido, mas o líder riu nas profundezas.
— Por que confiar em alguém que tentou matá-los? — a voz zombava deles, ecoando nas paredes.
Erina, sem hesitar, caminhou até onde o som vinha, os olhos cheios de determinação.
— Porque eu acredito em redenção — disse ela, a voz calma e firme.
— Redenção? — a risada do líder foi gélida. — Confiar nos outros é a fraqueza dos tolos. Quem confia perece. Quem age sozinho, vive!
— Então, foi por isso que deixou que nós matássemos seus homens? — Kenshiro vociferou, sua raiva crescendo.
— Eles eram fracos — respondeu o líder, a voz carregada de desprezo. — Eu mesmo matei aqueles que eram inúteis para mim. Vocês só limparam o lixo que restava.
— E quanto ao Takashi e Kuroda? Eles eram apenas ferramentas para você? — Erina perguntou, tentando entender a mente insana do vilão.
Um silêncio se seguiu por alguns segundos, quebrado apenas por um choro distante que ecoava pelas paredes da caverna.
De repente, a voz do líder retornou com um estrondo ensurdecedor.
— Família... honra... amor... Tudo isso apenas atrapalhou meus planos! Agora que estou livre, finalmente conseguirei tudo o que sempre desejei!
Nesse momento, uma lâmina sombria tentou perfurar os olhos de Erina. Ela recuou rapidamente, equipando o elmo novamente, enquanto se juntava a Kenshiro para enfrentar as sombras que começavam a cercá-los.
— Eu estarei em todos os lugares! — gritou o líder, enquanto mais sombras surgiam. — E garantirei que a tirania do Império nunca mais toque o mundo!
— Exceto a sua própria tirania — Erina respondeu com desprezo.
As sombras se multiplicavam, infinitas vezes, cercando-os por todos os lados. Embora o casal pudesse destruir facilmente as sombras com um simples golpe, sabiam que, se não derrotassem o líder a tempo, morreriam de exaustão.
***
Takashi mergulhava fundo no poço, seus sentidos perdidos na escuridão aquosa que o envolvia. Ele tentava manter os olhos abertos, mas a água ardente parecia querer devorá-los, forçando-o a confiar no tato, suas mãos guiando-se pelas paredes de pedra escorregadia.
Porém, a estrutura sólida logo terminou, revelando um vasto abismo. O que ele pensara ser um poço revelou-se um oceano insondável, sem fronteiras visíveis, e sem sinal de seu arco.
Seu coração afundou.
O arco, sua única chance de salvar seus amigos, estava perdido. Não havia correnteza que pudesse tê-lo arrastado, e ainda assim, ele desaparecera. A vastidão do lugar parecia zombar de sua esperança. A sensação de desamparo crescia, como se estivesse num pesadelo sem fim, onde cada movimento era inútil.
Mas ele persistiu. Com cada mergulho, Takashi imaginava que o arco devia estar perto. Talvez estivesse apenas a alguns metros mais ao fundo, invisível em meio à escuridão opressora.
Minutos se transformaram em horas.
O ar em seus pulmões, misteriosamente, não acabava, mas a exaustão mental crescia a cada fracasso. Tudo ao redor parecia se esticar indefinidamente, como se estivesse preso em um ciclo interminável de busca e fracasso.
Aos poucos, o desespero se instalava.
Depois de tanto tempo... quanto? Ele não sabia mais. Horas, dias? Sua mente se enchia de incertezas. A escuridão engolia tudo, e Takashi sentiu-se à beira da rendição. Seus pulmões finalmente começaram a arder, como se o tempo houvesse retomado seu curso natural. O frio, antes distante, agora se infiltrava em seus ossos. Ele estava perdido em um oceano sem fim, uma metáfora viva de sua própria luta. O que ele procurava parecia sempre escapar-lhe, movendo-se para além de seu alcance, como uma miragem no deserto.
Finalmente, a agonia da falta de ar se tornou insuportável. Ele sabia que não poderia continuar. Mas desistir... isso significaria morte certa, uma morte lenta e cruel, afogado naquela água ácida.
“Será que vale a pena continuar lutando?”
No instante em que essa dúvida se formou, Takashi tomou uma decisão difícil. Ele relaxou o corpo, permitiu que a água o carregasse, a gravidade fazendo o resto. Deixou de lutar contra as correntes invisíveis, abandonando sua resistência. Fechou os olhos, preparando-se para o inevitável.
Então, algo mudou.
Seu braço roçou em algo sólido. Com surpresa, seus dedos se fecharam ao redor de uma superfície familiar. Era o seu arco. A incredulidade o dominou, mas quando tentou puxá-lo, percebeu que ele estava preso. Alguém o segurava.
Seu coração disparou de medo. Seria a criança fantasmagórica novamente? Mas, ao contrário do que esperava, não sentiu aquela presença perturbadora. Em vez disso, um toque suave, firme, pousou em sua testa. Era um gesto familiar, um toque cheio de significado.
Ele soube na hora.
— Meu jovem... — a voz profunda de Hitoshi, seu mentor, ecoou por sua mente. — Você se perdeu em sua própria luta. Não tema, nós o guiaremos.
A calma tomou conta de Takashi. Ele tocou o rosto à sua frente, sentindo a barba áspera de Hitoshi, aquele que o treinara e moldara. As dúvidas se dissiparam. Era real? Ou apenas uma projeção de sua mente?
— Acredite... — a voz de Hitoshi sussurrou suavemente.
Takashi sentiu o arco ser liberado das mãos de seu mentor. Quando o segurou firmemente, o fôlego voltou, seus pulmões encheram-se de ar como se estivessem livres da pressão esmagadora. Ele abriu os olhos. O vasto oceano de escuridão havia desaparecido. Estava de volta ao fundo do poço.
Olhou para cima e, agora, podia ver a superfície. Apenas cinco metros o separavam do mundo exterior. Não fora uma descida interminável. O tempo e o espaço haviam se dobrado sobre si mesmos enquanto ele lutava contra sua própria ansiedade.
Com o arco em mãos, Takashi emergiu da água.
O campo de batalha diante dele era um caos de sombras. Erina e Kenshiro estavam cercados por figuras negras, indistintas, dançando entre os feixes de luz vermelha que ainda iluminavam a câmara. No centro de tudo, ele sabia, estava o líder, a figura que eles precisavam destruir.
Takashi ergueu o arco. Não havia flechas, mas isso não importava. Ele puxou a corda até o limite, sentindo o arco vibrar. Um brilho roxo envolveu a arma, uma energia que ele jamais sentira antes. Uma flecha mágica se formou na corda tensa.
Com um suspiro profundo, ele soltou a corda.
O disparo foi certeiro. Assim que a flecha deixou o arco, as sombras dissiparam-se como fumaça ao vento. O líder, antes envolto em escuridão, foi empurrado contra a parede, uma flecha cravada em seu coração.
Erina e Kenshiro, que lutavam ferozmente contra as sombras, viraram-se, surpresos, ao ver Takashi de pé com o arco em punho. Sua expressão era serena. Ele desceu do poço e caminhou até eles.
— Acabou — disse ele, sua voz tranquila.
A luz lentamente começou a preencher a câmara. As sombras sumiam, revelando os destroços da batalha. Não havia corpos dos assassinos, exceto um: o de Kuroda.
Ele estava deitado ao lado do poço, morto por uma apunhalada nas costas. Takashi, ao vê-lo, sentiu um peso em seu coração. Silenciosamente, ele sentou-se ao lado do corpo, em luto por aquele que, em algum momento, fora seu melhor amigo.
— Takashi... seu arco... — disse Erina, notando a transformação.
O arco antigo de Takashi, desgastado e marcado pelo tempo, havia se metamorfoseado. Agora brilhava com uma nova energia, como se tivesse absorvido a essência de sua jornada. O legado de Hitoshi havia se encerrado, e agora, começava a nova história de Takashi, o mais novo Flecha Fantasma.
***
Enquanto isso, Xin entrou na câmara. A visão que a aguardava era um verdadeiro massacre. Corpos mutilados estavam espalhados por todo o lugar, uma visão de carnificina brutal. Ela sabia que Kenshiro e Erina haviam causado aquilo, mas não sabia o motivo.
Contudo, algo a intrigou. Entre os destroços, havia uma kunai, uma arma incomum naquele cenário. Ela a pegou, examinando-a atentamente. Quando estava prestes a sair, um som estranho ecoou da escuridão mais adiante. Com a kunai em mãos, ela seguiu para investigar.