Volume 1 – Arco 1

Capítulo 4

Depois de se recuperar do forte café, Erina preparou-se para limpar a sala e cozinha.

Sentia-se envergonhada por Kenshiro ter visto a casa naquele estado após tantos anos. Não era sua intenção, mas ela e Reiji precisaram revirar tudo em busca de alguns documentos oficiais para ele participar da audiência.

Refletindo sobre a maneira como havia se comportado, devido ao seu mal humor por ter pedido uma disputa contra Reiji, Erina começou a pensar em formas de se reconciliar com Kenshiro. Contudo, decidiu manter sua personalidade forte, movida pela curiosidade de observar como ele reagiria.

Enquanto limpava, Kaji, o elemental, se mostrava de pouca ou nenhuma ajuda. Ele era bastante folgado, esforçando-se apenas para consertar as coisas que seu mestre quebrava, sem se importar em limpar a casa apropriadamente.

Jogando o resto de comida para Kaji, organizando os livros nas estantes, deixando a louça para lavar depois e limpando a mesa, Erina apenas conseguiu remover a maior parte da bagunça. Era o máximo que podia fazer naquele momento.

Dirigindo-se ao segundo andar, antes de adentrar o quarto principal, ela parou e entrou em outro que ficava no meio do corredor.

Aquele quarto estava empoeirado e coberto de teias de aranha, um exagero até para os padrões de Kaji. O motivo para estar intocado por tanto tempo era simples: o abandono de um hóspede muito querido por todos.

A lembrança dessa pessoa trouxe uma expressão melancólica ao rosto de Erina, dissipando seu sorriso. Depois de admirar o quarto por um momento, Erina fechou a porta e seguiu até o quarto principal.

***

Do lado de fora, Kenshiro e Reiji retiravam suas armaduras.

— “Hematomas no peito?” — exclamou Reiji. — Mesmo sendo uma armadura cerimonial, isso não protege nada!

— É apenas pele de veado pintada de preto. Os recrutas de verdade recebem armaduras de couro de javali; não são as melhores, mas ao menos protegem contra pedras...

Kenshiro retirou um balde de água do poço e começou a se limpar, agora dando a devida atenção, esfregando as partes que ainda estava sujo de terra e lama. Enquanto se limpava, encarava seu reflexo na água com um pouco de descontentamento, refletindo em silêncio.

Percebendo o desconforto do sobrinho, Reiji tentou consolá-lo.

— Não fique bravo com a Erina. Ela também estava ansiosa pelo seu retorno.

O jovem, um pouco mais aliviado, notou o desapontamento no rosto do tio ao reparar em seu corpo, agora desenvolvido.

— Para com isso, tio! Sabe que eu nunca o superaria em músculos!

— O que? Não! Não é isso. Apenas percebi que você não ganhou nenhuma marca como eu! — Reiji virou-se, revelando suas costas largas, que estavam limpas. — O Império costumava marcar o símbolo deles com um ferro quente! Mas, claro, a Erina curou a cicatriz.

— Ela nunca gostou de cicatrizes. Você deveria ter quase umas vinte, imagino...

— Vinte e três — corrigiu Erina, carregando algumas mudas de roupa. — Ele teria vinte e três cicatrizes idiotas. Nunca foi ferido em combate e, mesmo assim, conseguiu se machucar sozinho diversas vezes.

Apesar de Kenshiro ainda estar de calças, tentou cobrir partes do corpo dos olhos de Erina.

— O que foi? — perguntou ela, analisando o corpo atlético do jovem.

— Faz anos que não nos vemos! Não tenho direito à privacidade?

Erina suspirou e deixou as roupas no chão, partindo novamente para dentro da cabana. Kenshiro permaneceu confuso; se não fosse pelo aviso do tio, acreditaria que Erina estivesse chateada com seu retorno.

— Pode me culpar por isso — disse Reiji, cruzando os braços. — Eu peguei pesado demais com ela nos treinos... Ao invés de chorar ou reclamar, ela desenvolveu essa personalidade.

— Todos têm suas maneiras de superar as adversidades. Mas o que eu sei? Não fui treinado pelo “Melhor Espadachim do Império”.

— Agora sou “Ex-Melhor.” Fui dispensado com desonra quando me opus ao ataque imperial.

Reiji vestiu a camiseta branca que Erina trouxe. O mesmo havia sido entregue a Kenshiro.

— Quantos votaram contra, além de você? — perguntou Kenshiro.

— Fui o único. Felizmente, consegui um tempo para nós. A próxima votação só acontecerá daqui a seis meses, após me substituírem.

— Mas nossa jornada pode durar até dois anos...

— É por isso que partiremos amanhã — disse Erina, segurando uma pequena chave enferrujada.

Os três foram até o armazém que ficava ao lado da cabana. O armazém, feito da mesma madeira da cabana, era grande e possuía duas portas trancadas por um grande cadeado. Sua tintura avermelhada fazia parecer com um celeiro.

Kenshiro estava ansioso, pois fora proibido de bisbilhotar o local durante toda a infância. Erina estava amena, sem expectativas sobre o que veria, enquanto Reiji tremia de empolgação, aguardava aquele dia há anos.

Reiji destrancou o cadeado e abriu as portas com calma. O barulho da madeira velha e da ferrugem das dobradiças era incômodo.

Dentro, havia apenas uma pilha de pedras e uma carruagem antiga e empoeirada. Kenshiro e Erina trocaram olhares desapontados, enquanto Reiji, mal podendo conter a emoção, ordenou em voz alta:

— Kaji! Atenda ao meu chamado!

As pedras começaram a flutuar, brilhando em dourado até se tornarem alaranjadas. Com o atrito de seus corpos rochosos, pequenas faíscas surgiram, formando lava que escorria pelo chão. As pedras se deformaram, criando uma armadura quadrúpede, enquanto a lava preenchia seu interior, formando assim um magnífico cavalo.

O corpo do cavalo era feito de lava, e sua armadura, feita das pedras, mantinha-o estável. As órbitas dos olhos eram preenchidas por fogo, com um ponto dourado simbolizando suas pupilas.

A enorme fera começou a empinar e relinchar, seu som poderoso era semelhante a um trovão, e ao fundo, era possível ouvir o crepitar das chamas.

— Espera um pouco! É o Kaji?! — questionou Kenshiro.

— Ele está se espreguiçando... Devem fazer séculos desde a última vez que ele se revelou para alguém — respondeu Reiji, com um sorriso desafiador.

O cavalo voltou ao solo, sua respiração acalmou-se e, finalmente, Kaji falou:

— Não me lembrava que era tão leve...

Sua voz estava diferente, como se tivesse atingido a idade adulta, não lembrando em nada sua aparência como lareira.

Kaji fechou os olhos, fazendo a carruagem incinerar-se, assustando os jovens. O incêndio durou apenas um instante, o suficiente para tirar o pó e as camadas de sujeira, revelando a aparência original da carruagem.

— Essa ainda não é sua forma original — explicou Reiji, com um sorriso largo. — Como servo da família Torison, Kaji foi encarregado de nos servir; ele é nosso abrigo, transporte e até mesmo nosso protetor.

Os olhos do cavalo flamejante começaram a brilhar intensamente.

— Eu posso mostrar, se quiserem... — disse Kaji.

Reiji, sentindo a energia do cavalo se intensificando, segurou-o pelas rédeas.

— Não, Kaji! Se você se revelar, a barreira vai se quebrar! Mostre-se amanhã, quando partirmos...

Desapontado, Kaji se acalmou e desfez sua aparência. A lava desapareceu no ar, e as pedras caíram ao chão, frias e inertes. A pequena voz da lareira ainda era ouvida, reclamando: “Nunca pode nada! Se ele quebrar a porta de entrada novamente, eu vou...”

— Já sabemos como será nosso transporte. Mas como levaremos suprimentos para uma jornada tão longa? — perguntou Erina.

Reiji colocou o dedo indicador contra a boca, pedindo silêncio, e entrou na carruagem, desaparecendo em seu interior.

O interior da carruagem era completamente escuro, como se um universo inteiro existisse ali. Os jovens estavam confusos, algo assim parecia impossível segundo os princípios da física.

Então, escutaram os gritos de Reiji, um som que era ao mesmo tempo próximo e distante, sua localização era incerta. Tomados por um impulso genuíno, em querer salvá-lo, ambos se atiraram para dentro da carruagem.

***

Foram surpreendidos ao aparecerem na cabana, saindo pela porta que ficava abaixo da escada, destinada ao depósito de comida. Reiji estava bem, rindo descontroladamente pela maneira como os dois caíram na tentativa de ajudá-lo.

Kaji, notando que seu mestre não conseguiria parar de rir, decidiu explicar:

— Toda propriedade que pertence à família Torison está conectada através de mim. Posso levá-los através de portas como essas, mas a propriedade precisa ser oficial, com contrato assinado e chaves em mãos!

Os jovens se levantaram, envergonhados pelo contato físico acidental.

— Certo. E quais outras propriedades a família Torison possui? — perguntou Erina, tentando disfarçar a vergonha.

Reiji parou de rir e tornou-se sério, um pouco melancólico.

— Só existe mais uma... a casa do meu irmão. Está abandonada há anos e não está no nosso trajeto. Ela é inútil para nós.

Kenshiro ficou pensativo, talvez Erina tivesse feito a pergunta errada.

— E quanto ao Ren? Ele irá com a gente? Afinal, foi ele quem reacendeu sua vontade de fazer essa jornada — perguntou Kenshiro, com um olhar esperançoso.

A falta de preocupação de Kenshiro sobre seu falecido pai surpreendeu a todos. Reiji sentou-se à mesa e levou alguns segundos para responder.

— Iremos encontrá-lo no caminho. Mas temo que ele não irá conosco... Ele agora está recém-casado, e logo será pai.

— O que?!

— Por que está surpreso? — zombou Erina, com um sorriso sarcástico. — Você sabe que ele sempre foi popular com as garotas, diferente de você...

— Parece que em sua busca por respostas, acabou encontrando outra coisa... — disse Kenshiro, ignorando o comentário de Erina.

Após algumas risadas, Kaji interveio:

— Seria bom se pudéssemos levar algum herói conosco. Agora que perdemos o “Herói Espadachim.”

Um pequeno momento de silêncio surgiu, com todos refletindo sobre as palavras de Kaji. Então Reiji pulou de sua cadeira, assustando todos, e com um grito correu para o segundo andar. Não demorou muito para retornar com um mapa, estendendo-o sobre a mesa e fazendo algumas anotações rápidas com um lápis.

O mapa era muito detalhado, representando o grande continente, mesmo não sendo perfeitamente exato.

— Mestre... você está bem?

—Kaji! VOCÊ UM GÊNIO!

— Eu sou? — perguntou Kaji, inclinando a cabeça para o lado, incerto.

— Podemos nos encontrar com algum Herói no caminho!

Reiji estava tão empolgado que seus olhos arregalados quase saltavam das órbitas, o que era um pouco assustador.

— “Ragnar, o Rugido do Leão”, “Ocelot, o Velocista.” Eles não são apenas lendas regionais? — questionou Erina, com um tom de dúvida.

— Não, Erina. O Império se esforçou muito para diminuí-los, assim os cidadãos acreditariam apenas nos heróis imperiais. Por isso, hoje, eles são considerados lendas e contos... — respondeu Reiji, convicto.

— Mesmo assim... devem ser muito velhos! Isso se não tiverem morrido... — disse Kaji, um pouco hesitante.

— Francamente, Kaji — retrucou Reiji. — De todos aqui, você é o único que não poderia pensar assim! Você tem uma idade milenar e continua aqui entre nós!

— Isso é magia! Para vocês humanos, a data de validade é próxima dos 60 anos!

— E você acha que esses Heróis não têm nada de mágico?

Todos olharam para Reiji, confusos. Ele falava com tanta convicção que fez todos pensarem mais a fundo.

— Cada um deles aprendeu alguma habilidade especial ligada à alma... Uma técnica de juventude eterna e prolongamento da vida, para que pudessem combater seus inimigos sempre em seus ápices.

— Mas parece que não fizeram nada contra os Remanescentes... — comentou Kenshiro, com um toque de ceticismo.

— Heróis não se metem em políticas! Eles enfrentam monstros, mortos-vivos, dragões... Todos os seres que vocês podem imaginar! Inclusive...

Assim, Reiji se viu obrigado a contar, detalhadamente, sobre cada Herói que conhecia. Apesar de Kenshiro e Erina não estarem muito inclinados a ouvir, deixaram-no falar, contagiados pela sua empolgação cômica.

Kaji, por sua vez, ficou um pouco emocionado, lembrando-se de quando Reiji havia contado aquelas histórias pela primeira vez para Ren, seu filho adotivo.



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