O Mundo de Sombras e Ratos Brasileira

Autor(a): E. H. Antunes


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 10.5: "Família"*

LEIA COM ATENÇÃO:

Caro leitor,

Este é um capítulo especial e opcional. Não é necessário lê-lo para seguir a história principal. Esses capítulos extras têm como objetivo aprofundar determinados temas como personagens, grupos ou eventos, e em alguns casos, exploram histórias que não são cruciais para a trama central.

Neste capítulo (Capítulo 10*), você acompanhará a trajetória que levou Erina a conhecer e se afiliar a família Torison.

  • 1 - Família Waltz
  • 2 - Pai
  • 3 - Aeterna
  • 4 - Remorso
  • 5 - “Família”

5 - "Família"

A noite desceu sobre a floresta, o manto de sombras envolvia a carruagem como uma prisão inescapável. Dentro, a família Waltz dormia inquieta, as luzes trêmulas do crepúsculo refletindo nos olhos entreabertos de Erina, que descansava no colo da mãe. O som suave das rodas sobre a terra de repente cessou, arrancando-os do sono.

— Já chegamos? — murmurou Erina, os olhos ainda pesados de cansaço.

Henri espiou pela janela, e uma sensação de desconforto o tomou. Não reconhecia o local. Árvores altas e escuras os cercavam, suas sombras ondulando como espectros.

— Não... vou verificar o que está acontecendo — respondeu seu pai, saindo da carruagem com passos rápidos e tensos.

Do lado de fora, os guardas que haviam jurado protegê-los começavam a remover suas armaduras. Henri os observava, os músculos se retesando de desconfiança.

— O que diabos está acontecendo aqui?! — questionou Henri, sua voz ecoando pela noite.

Das sombras da floresta, emergiram homens que antes pertenciam à sua guarda pessoal, liderados por Marco, o capitão que ele havia confiado suas próprias vidas.

— Senhor Henri, espero que tenha aproveitado a viagem — disse Marco, com um sorriso frio. Nem ele, nem seus homens vestiam suas armaduras, trocando-as por roupas simples, similares às de salteadores.

Henri sentiu o estômago revirar. Algo estava terrivelmente errado.

— Marco, o que significa isso? Por que estamos parados aqui? — exigiu Henri, a raiva começando a borbulhar em sua voz.

— Ah, senhor Henri... foi um bom patrão, mas aqui está minha carta de demissão — Marco estalou os dedos, e seus homens avançaram, arrancando Erina e Caterina da carruagem à força.

Caterina, em um ato de puro instinto, libertou-se com facilidade, jogando um dos agressores ao chão e esmagando seu crânio com um golpe brutal de sua bota.

— Erina, atrás de mim! — gritou ela, a voz carregada de fúria protetora.

Os homens hesitaram, claramente aterrorizados pela demonstração de força da mulher. Seus olhares se voltaram para Marco, aguardando ordens.

— O que estão esperando? Ataquem! — ordenou Marco com desdém.

Os homens avançaram em massa. Caterina manteve sua guarda, mas a preocupação com Erina a fez se expor em momentos cruciais. Mesmo assim, a força descomunal da mãe era inegável. Em questão de minutos, cinco corpos jaziam no chão. O primeiro com o peito perfurado por um golpe poderoso; o segundo com a cabeça esmagada em uma mão fria e impiedosa; os outros mortos em uma dança violenta de sangue e ossos quebrados.

Mas, mesmo enquanto Caterina combatia, Erina, tremendo de medo, mal conseguia conter os ferimentos que surgiam em sua mãe. Com a magia de cura vinda da filha, ela lutava contra o tempo, a cada segundo sentindo-se mais impotente diante da violência desenfreada.

Marco observava tudo com um sorriso sádico. — Ah, a pequena sabe curar. Isso será útil...

— Não se preocupe, filha — Caterina disse com um olhar de despedida, os olhos cheios de uma certeza silenciosa. — Eu irei proteger você.

Antes que pudesse reagir, um som agudo cortou o ar. Marco assobiou, e uma adaga oculta voou direto para a cabeça de Caterina. O golpe foi rápido e fatal.

— Ops... — murmurou Marco com desdém.

— Mãe...? — Erina sussurrou, os olhos arregalados de horror.

O corpo de Caterina tombou como uma marionete cujos fios foram cortados, caindo sobre Erina e a cobrindo com o sangue quente e viscoso. Desesperada, Erina envolveu-se e sua mãe em uma fraca aura de cura.

— Você está curada... por favor... levante-se... — As palavras saíam entrecortadas por soluços. Mas o buraco na cabeça de Caterina permanecia aberto, uma ferida que magia alguma poderia selar.

— Que garota burra! — zombou Marco, gargalhando. — Não sabe que os mortos não podem ser curados?

Henri caiu de joelhos, a alma despedaçada diante da visão de sua esposa morta. A culpa o corroía, um veneno que penetrava cada fibra de seu ser.

— Ah, que falha minha! — riu Marco, se divertindo com a miséria à sua frente. — Talvez eu devesse ter deixado você matá-la... Você já não se importava em machucá-la, não é?

Marco assoviou novamente, agora fazendo a adaga oculta pousar diante de Henri.

Henri pegou a adaga, sem dizer uma única palavra. Se arrastou até Erina, afastando o corpo sem vida de sua esposa. O olhar da filha estava vazio, quebrado. A dor em seus olhos era uma profundidade sem fundo.

— Filha... — sussurrou Henri, a voz embargada. — Me perdoe por não ter sido o pai que você merecia.

Erina, no entanto, não escutava seu pai. Ainda olhava para o corpo de sua mãe, percebendo uma imprudente mosca já pousar em seu cadáver.

Com um tapa suave, Henri conseguiu trazer Erina de volta de seu transe.

— Escute-me bem, Erina — disse, segurando-a com firmeza. — Você é capaz de muito mais do que imagina. Será muito mais que uma maga ou cavaleira. Você salvará a todos... Salve todos. Salve todos que você puder. E nunca olhe para trás!

Antes que pudesse dizer alguma coisa, Erina sentiu uma dor aguda em sua garganta. O mundo ao redor dela se apagou.

***

Quando despertou, tudo era escuridão e sufocamento. Desesperada, Erina se debateu, até que suas mãos encontraram a fria terra sobre seu corpo. Ela se ergueu com esforço, emergindo da terra como um pesadelo.

Ao longe, um relâmpago iluminou a floresta, revelando o corpo mutilado de sua mãe no mesmo buraco que se libertara. A visão a fez vomitar, uma massa de terra misturada com algo que ela não quis identificar, e sua mente cedeu ao terror.

Sem rumo, Erina correu pela floresta, os galhos rasgando sua pele, o ar frio cortando seus pulmões. Ela tropeçava, caía e se levantava, tentando escapar de um horror que parecia persegui-la em cada sombra.

Mas o corpo dela não suportava mais. As feridas abertas não se curavam, e a exaustão a tomou por completo. Ao cair, ela vislumbrou um par de pés ao seu lado.

Antes que pudesse entender o que via, tudo escureceu mais uma vez.

***

Despertando em uma cama macia e pequena, Erina estava já estava curada de todos os seus ferimentos. Aparentemente, seu corpo podia utilizar sua magia de cura passivamente, semelhante ao ato de respirar automaticamente.

Erina olhou para a janela, percebendo que a luz não iluminava o quarto sombrio.

Curiosa e ansiosa para entender onde estava, ela desceu da cama, sendo recebida por uma voz abafada, grossa e alterada, vinda da escuridão do próprio quarto.

— Quem é você? E como nos encontrou? — exigiu a voz em um tom ameaçador.

— E-eu... Eu sou Erina Waltz e... Eu nem sei onde eu estou... — respondeu Erina, nervosa.

— Mentira! Quer que eu acredite que você nos encontrou por acaso? Minta novamente e eu corto sua garganta!

Erina começou a chorar, lembrando-se do que ocorreram com ela e sua mãe.

Uma pequena e engraçada foz sussurrou:

— Não acha que está exagerando?

— Calma, ela pode estar fingindo... — disse outra voz, parecendo ser a voz sem alteração. A voz era de uma criança.

— Pare de chorar! E explique tudo que aconteceu!

— Nós fomos traídos por nossos guardas — disse Erina, engolindo o choro —, eles mataram a minha mãe e sequestraram o meu pai.

— Esses guardas estão buscando você? Eles virão para cá?!

— Eu não sei!

— Como conseguiu fugir?!

— Eu não sei! Eu acordei enterrada depois que eles cortaram a minha garganta!

Erina despencou em lágrimas, caindo no chão.

— Kaji... Libere a ilusão — disse a voz, voltando ao normal.

Diante dela, uma criança se revelou para ela.

O menino era um pouco menor que ela, com cabelos curtos e negros.

— Meu nome é Ren. Venha — disse Ren estendendo sua mão. — Kaji já está preparando o café da manhã.

Erina percebeu que Ren carregava consigo uma espada em sua cintura. A espada era verdadeira e de feita para um adulto, o que deveria ser muito pesado para Ren, mas ele não mostrava qualquer dificuldade em tê-la junto dele.

Segurando a mão de Ren, ela se levantou.

Foi quando a porta do quarto foi repentinamente arrombada por um chute de um adulto. Erina acreditava que pudesse ser Noah pelo corpo robusto, mas era outro homem igualmente musculoso. Seu rosto, no entanto, lhe era estranhamente familiar.

— REN! Você exagerou demais! — disse o homem.

— Ela poderia ser uma inimiga! Ainda pode ser na verdade... Mas o Kaji implorou para eu parar — disse Ren, completamente antipático.

— Não seja tolo! — disse o homem pegando-a pelo colo e retirando do quarto.  — Não se preocupe, pequena. Eu sou um herói imperial, meu nome é Reiji Torison.

— Qual seu título de herói? — perguntou Erina, curiosa.

— Sou “O Melhor Espadachim do Império” ao seu dispor! — disse Reiji, orgulhosamente. — Kaji! Espero que seu café esteja especialmente bom hoje, temos uma convidada igualmente especial!

Erina olhou para a sala e cozinha e não conseguiu encontrar ninguém que Reiji pudesse estar falando.

— Kaji, revele-se para ela... — disse Ren, conversando com a fogueira?

A fogueira então criou olhos e boca, conseguindo ter uma aparência fofa e divertida.

— É um prazer conhecer você! — disse Kaji, sorridente.

Todos sentaram-se à mesa, onde Ren explicou para Reiji o que havia acontecido durante seu interrogatório. Reiji ficou surpreso ao ouvir o nome “Waltz”, e rapidamente se preparou para partir em busca de Henri.

— OLÁ, FAMÍLIA! — disse alguém adentrando a casa.

A porta de entrada fora grosseiramente aberta, semelhante ao que Reiji havia feito anteriormente. Sem tempo para piadas, Reiji e Ren encararam para aquele individuo responsável com desaprovação, enquanto Erina havia se assustado novamente.

O responsável era o cadete que Erina havia ajudada em Aeterna.

— Kenshiro, você não deveria fazer tanto barulho... — reclamou Ren, incomodado com a inconveniência.

— Ainda precisamos decidir o que fazer com ela... — disse Reiji, preparando-se para sair.

— Você... — murmurou Erina, reconhecendo Kenshiro.

Somente naquele momento, Erina percebeu que não havia descoberto o nome dele em Aeterna, envergonhando-se.

Ren e Reiji trocaram olhares, percebendo que os dois se conheciam. Reiji partiu sem dar explicações, enquanto Ren começou a relatar o que havia acontecido, enquanto Kaji preparava café para todos.

Após um breve período de explicação, Kenshiro e Ren começaram a discutir, quase começando a brigar de fato. Kenshiro se incomodou com o interrogatório de Ren, revelando a ele os poderes de Erina.

Ren abaixou o olhar e se ajoelhou.

— Peço desculpas pela forma como agi...

Erina aproximou-se de Ren e estendeu a mão para ajudá-lo a se levantar; ela não guardava ressentimento.

***

Com todos mais calmos, eles desfrutaram do café da manhã, onde Erina, pela primeira vez, provou o café terrível de Kaji.

— Faz séculos desde a última vez que vi um mago — comentou Kaji, limpando a louça de forma desleixada. — Ainda mais um especializado em cura!

— Minha família costumava viajar por todo o continente, curando quem encontrasse pelo caminho — contou Erina, ainda se adaptando à companhia. — Mas, em algum momento, começamos a cobrar por isso. Rapidamente, nos tornamos uma das famílias mais ricas, mas isso diminuiu nossa popularidade, e acabamos reduzidos a uma única linhagem, a do meu pai...

— E o que você planeja fazer agora? — perguntou Ren, lavando a louça corretamente.

Erina pensou por um momento, e quando estava prestes a falar, Reiji entrou, abrindo a porta com cuidado, algo incomum para ele.

— Encontrou eles? — perguntou Erina, ansiosa.

Reiji sentou-se à mesa, tomou um gole de café frio sem reclamar, e, vendo a preocupação e a busca por respostas no olhar de Erina, decidiu falar diretamente.

— Encontrei Noah no caminho. Ele queria investigar também. Não encontramos os culpados, mas vimos onde você e sua mãe foram enterradas...

Algo sobre o enterro parecia perturbar Reiji. Seu olhar para Erina era de dar pena.

— Seguimos os rastros o mais rápido possível, na esperança de encontrar Henri vivo, mas ele também estava morto. Morreu na noite passada... Poucas horas depois do que aconteceu com você e sua mãe.

Os olhos de Erina escureceram, perdendo o foco, como se tentasse ver algo que não estava lá. Ela se levantou da mesa e começou a encarar Kaji, que, ao perceber o momento de introspecção, afastou-se, tentando parecer apenas uma lareira comum.

Erina podia escutar os três tentando discutir o seu destino, mas ela estava lembrando-se das últimas palavras que escutara de seu pai: “Salve todos. Salve todos que você puder. E nunca olhe para trás!”

Sabendo que não poderia fazer nada para mudar o passado, Erina só poderia encarar seu futuro. Ela orgulharia seus pais na morte, sendo tão destemida e corajosa quanto sua mãe, e ultrapassando seu pai na habilidade curativa.

Assim, certa de seu destino, ela se aproximou da família Torison e fez seu pedido:

— Eu quero ficar com vocês.



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