O Mundo de Sombras e Ratos Brasileira

Autor(a): E. H. Antunes


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 10.4: Remorso*

LEIA COM ATENÇÃO:

Caro leitor,

Este é um capítulo especial e opcional. Não é necessário lê-lo para seguir a história principal. Esses capítulos extras têm como objetivo aprofundar determinados temas como personagens, grupos ou eventos, e em alguns casos, exploram histórias que não são cruciais para a trama central.

Neste capítulo (Capítulo 10*), você acompanhará a trajetória que levou Erina a conhecer e se afiliar a família Torison.

  • 1 - Família Waltz
  • 2 - Pai
  • 3 - Aeterna
  • 4 - Remorso
  • 5 - “Família”

1 - Remorso

Noah fechou a porta com um leve estalo, o som reverberando pela enfermaria vazia, agora um palco de tensões não ditas. Colocou-se diante da porta, uma barreira intransponível entre seu amigo e a liberdade, braços cruzados, postura rígida como se estivesse a guardar um segredo sombrio.

— Eu não sabia que aquela menina era sua filha — Henri quebrou o silêncio, a voz tingida de uma falsa inocência, tentando esconder a culpa que lhe pesava no peito.

— Lembro-me de ter lhe escrito uma carta... — Noah respondeu, o olhar distante, como se buscasse nas profundezas de sua memória os fragmentos daquilo que havia escrito em suas cartas. — Mencionei os nomes dos meus filhos, suas características, suas personalidades... Se tivesse lido, qualquer carta... saberia.

— Nenhuma carta com o selo de sua família ou de qualquer herói imperial chegou até mim! — Henri replicou, a fúria crescendo, mais uma defesa desesperada do que uma verdade.

— Não escrevi cartas com selos especiais... Achei que meu amigo de infância, mesmo após tanta mudança, ao menos teria a decência de ler os pedidos de ajuda da “ralé” — Noah rebateu, sua voz carregada com a amargura de uma traição percebida tarde demais.

Henri desviou o olhar, incapaz de encarar o homem que outrora chamara de irmão. Virou-se para as camas da enfermaria, agora frias e desertas, como os corações dos que nelas descansavam.

— Há muito tempo atrás — continuou Noah, a mão pousando sobre o ombro de Henri, o toque pesado, quase o esmagando —, você me ajudou sem pedir nada em troca. Para os padrões de sua família, e para os seus padrões atuais, nem toda a riqueza da minha casa poderia pagar por tal generosidade. E ainda assim, você o fez de graça.

— As coisas mudaram... — Henri murmurou, a voz carregada de um peso que Noah não poderia compreender.

— “Sou um mago de cura. Meu propósito é curar todas as doenças deste mundo.” — Noah recitou as palavras de seu amigo de outrora, a esperança tingindo cada sílaba. — Algo disso mudou?

Henri suspirou, a resistência dentro de si desmoronando como um castelo de areia diante da maré. Era hora da verdade.

— Caterina não é minha primeira esposa. E, para ser honesto, eu sequer a amo... Minha primeira esposa, Melethra, foi assassinada covardemente por um clérigo que eu curei. E quando eu o matei, tive uma epifania! Quantas vidas eu indiretamente tirei, salvando seus assassinos?

Noah recuou, a revelação atingindo-o como uma lâmina. As palavras de Henri carregavam o peso de uma alma destroçada, de um homem que perdera sua fé.

— A verdade, Noah — Henri prosseguiu, a voz agora um sussurro sombrio —, é que eu não queria curar mais ninguém. O dinheiro, os altos custos, a minha neutralidade... foram formas de me afastar das pessoas, de fazer com que não me procurassem mais.

Percebendo que a escuridão no coração de seu amigo era profunda demais para ser dispersada por simples palavras, Noah resolveu compartilhar um segredo seu.

— Eu também fui casado, há muito tempo... — Noah começou, sua voz pesada com a lembrança de um passado que preferia esquecer. — A minha maldição, infelizmente, também adoece aqueles próximos de mim. Afastar-me dos meus filhos foi a única maneira de salvá-los do destino da mãe...

Henri, tomado pela curiosidade, sentou-se ao lado de Noah, seus olhos procurando por respostas nas expressões de seu amigo.

— Como aconteceu? — ele perguntou, a voz fraca, como se temesse a resposta.

— No início, os sintomas eram simples, uma tosse constante e alguns espirros. Mas logo ela começou a ter febres altas, perdeu o controle do corpo, e sua mente se desfez... — Noah respondeu, sua voz quebrando ao reviver a dor da perda. — Ela não nos reconhecia mais... E então, já era tarde.

— Por que não me chamou? — Henri perguntou, a voz tremendo, carregada de uma culpa que não ousava nomear.

— Eu ainda sou um herói imperial. Centenas de pessoas precisam de mim diariamente. Mas eu enviei cartas... muitas cartas... sempre com a esperança de que meu velho amigo me ajudasse.

— Você preferiu escrever cartas em vez de vir pessoalmente? Sua esposa estava morrendo! — Henri exclamou, a incredulidade tingindo suas palavras.

— Eu poderia ser rejeitado por uma carta, mas se você recusasse pessoalmente... Não sei o que eu seria capaz de fazer. — Noah respondeu, a voz calma, mas carregada de uma gravidade que fez Henri tremer. — Pergunte a si mesmo, Henri... Se eu tivesse ido até sua torre, você teria traído seus novos princípios para ajudar?

Henri engasgou, a verdade que tanto temia agora exposta. Ele sabia, no fundo do coração, que teria deixado a esposa de Noah morrer.

— A cama em que você está sentado — Noah disse, com lágrimas nos olhos —, é a cama onde eu a matei...

Henri olhou para a cama, o horror refletido em seus olhos. Por um instante, ele quase pôde ver o corpo dela ali, a culpa transformando o vazio em uma visão atormentadora.

— Mas ainda há esperança — Noah murmurou, levantando-se, sua voz carregando um fio de esperança em meio ao desespero. — Erina carrega os mesmos princípios que você tinha quando jovem. Ela será uma excelente Waltz...

Com isso, Noah saiu, deixando Henri sozinho com seus pensamentos, cada um mais pesado que o último.

***

Erina caminhou até a carruagem, sua postura firme, mas o coração pesado com o peso de tudo o que presenciara. Antes de entrar, ela suspirou, aliviada por ter mantido a compostura, mesmo que por dentro estivesse tremendo.

Ao abrir a porta, encontrou sua mãe, Caterina, cabisbaixa, os hematomas mais escuros e mais doloridos que antes.

— Filha? Que bom que chegou... Não se preocupe, seu pai e eu apenas tivemos um desentendimento...

Erina se aproximou, a mão tremendo enquanto a estendia para a testa da mãe. A aura esverdeada envolveu sua mãe, curando-a com uma eficiência que surpreendeu até mesmo a jovem. Caterina chorou ao perceber a evolução de sua filha, abraçando Erina com toda a força que conseguia reunir.

— Eu não vou deixar o papai encostar em você de novo — Erina sussurrou.

Enquanto se abraçavam, os cadetes, do lado de fora, chamavam por Erina, suas vozes cheias de uma urgência que fez seu coração apertar. Com a permissão da mãe, Erina saiu da carruagem, correndo para encontrar seus amigos.

— É bom ver que vocês estão bem! — disse Erina, ainda emocionada pela recente experiência.

— Tudo graças a você! — exclamou um dos cadetes, levantando a manga para mostrar onde uma vez estava ferido, agora apenas uma lembrança distante.

— Você foi muito corajosa ao enfrentar seu pai — comentou Anna, sua mão pousando gentilmente no ombro de Erina.

— Eu só tentei imitar você... — respondeu Erina, suas palavras fizeram o rosto de Anna corar intensamente, o que provocou risos e piadas dos outros cadetes, logo rebatidas com socos e chutes bem-humorados.

Quando Henri apareceu, o silêncio caiu sobre o grupo, o medo de seu retorno evidente em seus olhares. Mas, para a surpresa de todos, Henri se ajoelhou diante de Erina, seus olhos cheios de emoção.

— Filha, vamos para casa? Logo anoitecerá...

Erina e os cadetes se entreolharam, confusos com a mudança de atitude. Talvez a conversa com Noah tivesse sido mais impactante do que podiam imaginar.

— Sim, pai. Só vou me despedir, tudo bem? — disse Erina, com respeito.

— Tudo bem.

Henri voltou à carruagem em silêncio, deixando Erina para se despedir de seus amigos, que prometeram se encontrar novamente em breve.

***

Quando a carruagem começou a se mover, Erina não pôde deixar de notar a tristeza que envolvia seu pai.

— Papai, está tudo bem? Noah fez algum mal a você?

Ambos os pais se surpreenderam com a preocupação de Erina.

— Não... Na verdade, fui eu que fiz mal a ele — admitiu Henri, a voz pesada.

— Vocês não são mais amigos?

— Eu... não sei.

— Talvez você devesse escrever uma carta para ele, pedindo desculpas.

A inocente sugestão de Erina arrancou uma risada de Henri, suas lágrimas caindo sem controle.

— Pai? Eu disse algo errado? — Erina perguntou, preocupada.

Henri a abraçou com força, sua voz embargada de emoção.

— Está tudo bem! Só estou feliz por ter uma filha tão meiga e gentil como você!

Caterina observava, incrédula diante da repentina mudança de seu marido, mas decidiu permanecer em silêncio, preferindo observar.

Durante o abraço, Erina pôde ver da janela, os três cadetes ainda se despedindo dela. Erina soltou-se do abraço, colocou metade do seu corpo para fora da janela e tentou acenar de voltar para seus amigos, dispendendo-se uma última vez.

Enquanto os dois pais olhavam para sua filha, Henri parou um pouco e observou um pouco mais atentamente para sua esposa, conseguindo chamar sua atenção.

— O que foi? — perguntou Caterina, ainda aborrecida.

— Obrigado por ter me dado uma filha tão perfeita... — disse Henri, permitindo-se fechar os olhos e aproveitar daquele momento.



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