Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 36: Prelúdio

 

A luta estava de igual para igual. Por estar sob o sol, Elias era agraciado pela luz. Por estarem em um ambiente de água, Limit tinha uma vantagem de movimentação. Também estava em piores condições físicas, mas com uma maior quantidade de magia.

O clímax teve seu início.

A garota avançou com uma velocidade superior. Devido a água em seus pés terem 0 de atrito, corria como se fosse terra firme. O mesmo não se podia ser dito para Elias. O encontro não acontecia devido a cinco metros.

Limit corria com os braços para trás, não por ser alguma tática para ser mais rápida, mas por aparentar não ter total controle sobre o corpo. Sua mente estava um pouco nublada, como se perdida em uma floresta à noite.

Elias não sabia o que causou isso, mas ficara ainda mais atento.

O ápice do colapso.

A outrora visão limpa e movimentada de Elias foi tomada por uma enxurrada de pedras e partículas de água. Não estava prestando completa atenção na parte inferior de seu inimigo que sequer estava perto, contudo, o mesmo deu um chute em meia lua. Agraciado com a bênção de Atlas e magia, foi um movimento bem rápido.

Não tinha como calcular com perfeição os danos que aquilo causaria, mas não seria algo grave. Nem se deu ao trabalho de desviar as pedras, eram insignificantes.

No entanto, algo que não passou pela sua cabeça eram seus reflexos mais primitivos. Nos humanos — e até animais em geral — é instintivo que os olhos se fechem na percepção de algo danoso ao mesmo. Não é algo controlável sem treino. Se alguma coisa estiver perto de tocar o glóbulo, automaticamente as pálpebras vão se fechar.

E foi o que aconteceu, Elias piscou.

Podia parecer algo fútil, mas nessa batalha, até os milésimos de segundos perdidos por uma piscada fora de sincronia podiam ser desastrosos. Ainda mais em um mundo de fantasia.

No momento em que seus olhos voltaram a abrir, Limit já estava em uma pose de ataque. Claro, para tal, ela havia premeditado o melhor possível cada movimento e reação de Elias.

Ela girou o corpo e deu um pulo, cravando com tanta força no chão que seu pé direot chegou a afundar. Suas pernas estavam imbuídas com magia de reforço, e graças a isso seu movimento pode ser tão rápido ao ponto de Elias não ter como reagir com um contra ataque.

Estava praticamente de costas, mas por ter se adequado aos passos de seu inimigo, sabia que ele estava em uma posição péssima, uma aberta e sem preparo.

Toda sua estrutura era sustentado pelo único membro em contato com o solo. Seus braços esquerdo estava erguido ao céu, enquanto o direito estava acompanhando a perta direita.

O olhar de Limit podia ser visto por de cima do ombro. Devido o braço esquerdo nada sob a raiz do nariz podia ser vista, porém, mesmo que pudesse, toda a atenção de Elias se voltaria às pupilas negras que pareciam brilhar de tanta emoção contida.

Pôs toda força que possuía na cintura e perna direita, concluindo em um giro fenomenal. A velocidade foi tamanha que os braços pareceram cortar o vento, mas isso não se comparava à perna, que havia decaído em uma velocidade orbitante.

Não teve muito que Elias pudesse fazer fora defender com tudo que tinha. Havia caído na armadilha com uma perfeição extrema. Limit não tinha lutado mal até o momento, mas não parecia a mesma pessoa. Nem em seus sonhos podia pensar em uma premeditação tão perfeita em movimentos tão simples, ainda em um ambiente aberto!

Devido a posição em que estivera, o chute teve de ser com o calcanhar. Não seria tão forte, mas com a ponteira não teria como ter a mesma velocidade devido a sustensação e postura necessária da outra perna.

O golpe foi direto na cabeça de Elias, que por muito pouco não acertou. Conseguiu fazer uma guarda com ambos braços, isso devido seus reflexos majestosos. Não era tempo suficiente para contra atacar ou parar o motivo de Limit, mas isso podia fazer.

Juntou os braços como se fosse um escudo e recebeu o impacto. O pouco de magia que ainda possuía estava concentrado ali e unicamente ali. Isso podia parecer a melhor opção, mas devido as pernas não terem aguentado o golpe, seu equilíbrio se desestabilizou. Fez seu melhor para aguentar o impacto com os braços, mas antes que percebesse seu corpo se separou do chão. Sem uma base confiável, seus braços perderam uma boa parte da resistência.

Um ‘crec’ pôde ser ouvido no meio da confusão. Não era nada mais que o osso de Elias prestes a partir. Se qualquer um de seus braços se quebrassem era fim de jogo. Perderia. Por esse motivo repensou suas chancecs e chegou a uma aposta arriscada.

— ...!

Abriu a guarda.

Junto disso ergueu o corpo. O chute que antes devia ter caído em seu rosto desceu para o ombro, onde acertou com toda força e foi deslizando até chegar nas costelas, onde por fim o lançou para bastante longe.

Seu corpo cambaleou quase meia dúzia de vezes, talvez tivesse sido mais se o terreno não fosse um riacho. O impacto havia sido amenizado graças a água, mas o fator maior para seus danos era o chute.

Podia ter deixado parar naturalmente, mas forçou seus braços — já machucados — a fincarem-se em meios as pedras. Estava em uma batalha, afinal. Limit não perderia tempo antes de avançar e, como imaginado, ela já estava em sua direção. O teria finalizado se não houvesse que usar de seu tempo para tirar a perna do riacho.

Não teve tempo de analisar os danos. Contudo, aparentemente seu ombro estava perto de deslocar e a lateral do corpo danificada. Se algo havia quebrado, não podia afirmar. A adrenalina corria por suas veias, impossibilitando um diagnóstico mais preciso.

Se tivesse noção que ficaria em tamanha desvantagem logo de início, teria arriscado na floresta. Amaldiçoou a si mesmo por esse lapso de julgamento. De qualquer forma, havia feito sua decisão. Nada mais podia mudá-la. Aceitou e se levantou.

Sem mais estratégias bonitinhas, apenas troca de golpes.

Limit chegou frenética com um soco com seu braço esquerdo, e Elias se aproveitou disso. Teria de antes de mais nada preservar energia. Deslizou sua mão direita pelo braço estirado e posicionou a mão esquerda sobre o pulso. Gentilmente fez um jogo de mãos e, aproveitando-se do impulso inimigo, usou da força de Limit contra si. Antes que notasse seu corpo estava sendo erguido com tanta facilidade quanto uma pluma.

Mas isso não a parou. Seus olhos ascenderam de forma assustadora. A suavidade de Elias seria sobrepujada com sua força bruta.

0,2%

Com a mão esquerda agarrou o antebraço utilizado por Elias para realizar o movimento. O arqueiro não entendeu, não tinha o que entender. Se continuasse assim Limit deslocaria esse braço devido a forma que estava caindo — no pior dos casos quebraria.

Ainda assim o fez.

As vestes de Elias foram trazidas consigo, retirando mais uma vez seu equilíbrio.

O braço de Limit, como previsto, havia sido seriamente danificado. Porém, ao tempo em que já estava voltando, não aparentava ter danos, muito menos dor.

0,3%

Não havia nada por trás desse golpe, simplesmente... o havia feito por não querer se sentir subjudada.

A visão de Elias mudou sobre a pessoa a sua frente.

Já estranhava há muito, mas não era nem de perto o garoto fracassado, tagarela e desrespeitoso que havia encontrado.

Era algo maior.

Algo que... na sua visão, podia fazer tudo.

Não tinha mais o que fazer. Limit aparentava não poder sofrer danos ou sentir dor. Possuía magia e, o único demérito em relação a Elias havia sido perdido. Nem mesmo suas artes marciais podiam se sobrepor a tal monstro.

Não, monstro não...

— Demônio...

O mundo aparentava estar em câmera lenta. As gotas de água que costumeiramente caíam em alta velocidade devido aos passos não se moviam. A vegetação colorida que dava palco a esse intenso duelo desbotava.

O tempo parecia haver parado.

“Huh?”

Não sabia o que era isso.

Seria agora a tão conhecida retrospectiva de sua vida ao estar de frente à morte?

Não, esse pensamento é irreal e ridículo. Qualquer um deve saber disso.

Parecia mais... um chamado.

A existência em sua frente era de um perigo imenso. Recobrando seus passos até o exato instante, parecia sobrepor tudo. A energia que emanava de si parecia reordenar o mundo... parecia... danoso...

Um único pensamento passou pela sua mente momentos antes de ser derrotado:

‘Essa existência necessita ser eliminada.’

Não podia deixar um mau tão estupendo livre pelo mundo, fazendo o que achar melhor.

— Eu de- — enquanto pronunciava as falas que deveriam salvar sua vida, ou ao menos poupá-lo de dano, parou.

Ele era o motivo desse sentimento em Limit/Sea aflorar de forma tão abundante.

Também deveria ser aquele a cuidar desse problema. “Não incomode os outros” era uma fala bem comum de seu irmão.

Como se decidido, o mundo incolor voltou à sua beleza. As folhas verdes voltaram a se movimentar. Os respínguos de água voltaram a criar as auréolas no riacho, assim como o impacto dos pés deformava a água por meio de ondas.

Como uma explosão, seu mundo se abriu. Jurou em seu coração que derrotaria o mau encarnado na pessoa em sua frente. Não importava mais se era Sea, Limit, ou o que quer que fosse.

Protegeria esse mundo. O salvaria. Era o que seu irmão, Robert, faria.

Seus olhos abriram, o golpe de Limit não parecia ter perdão. Massacraria-o sem dó ou piedade. Tudo a fim de acalmar essa fonte de poder obscura.

Mesmo em frente a coisa mais temerosa que já teve em sua frente... não, que qualquer um já tivera em sua frente, ele não se acatou.

Aceitou o destino de bom grado, o resultado de suas ações.

Prometeu que salvaria esse mundo.

Suas últimas palavras foram...

— Eu irei matá-lo, demônio.

0,5%

Os olhos assim como a escuridão infinta brilharam como nunca.

O duelo estava finalizado.

...

Sangue voou por todo o local, uma incrível fonte de líquido vermelho do mais puro carmesim se espalhou pela floresta, logo depois de uma cabeça ser cruelmente decapitada.
Qualquer um que visse aquela cena diria que foi feita por um bárbaro, não... tal golpe não podia ser desferido por mãos humanas.

Parecia algo sobrenatural...

— Hum...?

Abrindo os olhos, tudo que o jovem via era um urso morto. Do local que deveria estar sua cabeça, um corte perfeito e limpo, como se uma espada em um único corte a houvesse removido. Era uma precisão assustadora.

— O-o quê...?

Não demorou muito pro corpo do urso ir ao chão. O peso da queda fez o chão tremer um pouco.

Como? Ele não conseguia entender, mas não importava, seus ferimentos já eram fatais. Quer qual fosse a explicação, estava a segundos de morrer devido aos danos...

— Você...?

O Homem que estava até pouco tempo atrás nadando calmamente estava na sua frente, empunhando uma pequena folha em suas mãos.

Só agora ele foi perceber ao prestar mais atenção. A luz do luar chegava aos seus olhos. A floresta estava completamente destruída, como se um tornado tivesse passado pelo local.

E o mais incrível, nem um barulho sequer pôde ser ouvido.

Porém, novamente, nada disso importava.

Sua visão escurecia, a consciência ia aos poucos se esvaindo, um garoto com sonhos, que havia perdido sua vida para salvar um homem qualquer, estava a momentos de seu fim.

Para suas últimas palavras disse:

— E-eu... Com certeza... me arrependi disso... — ao menos foi sincero nos últimos momentos.

— ...

No fim, ele foi capaz de ver seu irmão andando lentamente, com ele criança o acompanhando em direção à luz.

No entanto, ele foi crescendo e ficando para trás, com seu irmão começando a correr, sendo recebido por um brilho de glória.

Ele não havia conseguido.

E assim, sua mente se apagou.

...

— Ei, esses esquilos são bons mesmo

— .... Huh?

Quando acordou, o garoto estava em frente ao homem de vestes pretas de mangas longas, ele possuía um espetinho de esquilo em suas mãos, e o devorava vorazmente.

O garoto olhou para todo seu corpo, havia sido um sonho?

Sua perna, ferimento na barriga, e até suas roupas estavam normais, como se nada houvesse acontecido.

Ele pensou ser um sonho... Mas não era possível.

Ao olhar pro lado, viu uma floresta inteira destroçada, e então entendeu.

Este homem em sua frente não era normal.

—Q-quem...

— Hã!? — ele esbravejou, indicando que falasse mais claramente.

— Quem é você...?

—... — deu mais uma mordida no espetinho.

E assim o homem continuou a comer o esquilo.

Ele refletiu por um tempo. Negando a resposta? Não, não parecia ser isso...

— Eu sou... Deus.

— Hum?

— Sou aquele que decide se você vive ou morre. Logo, eu sou Deus.

Talvez fosse uma visão de mundo distorcida, mas a espinha de Elias gelou ao pensar nisso ter dito seriamente.

Bem, também devia ser impossível destruir uma floresta e matar um urso com o balançar de uma folha. Ainda assim, este homem o fez.

— E você?

— Elias... Elias Locksley

— O que faz por aqui?

— Estou viajando... Procuro pelo meu irmão

— Hum, que bom.

Aparentemente ele havia questionado mais como formalidade. Tanto é que não continuou o interrogatório.

Elias não sabia prosseguir. Devia perguntar algo, ficar calado, ou outra coisa...?

O que deveria falar em frente de Deus?

— Isso... — Ele apontou para um arco com o queixo.

O arco dado a Elias pelo seu irmão, que o acompanhava já há muito tempo.

Elias respondeu sem mentiras.

— Seu irmão seria... Roberto... Rovin...?

— Robert! Mas também o conhecem por Robin Hood!

— ... — o olhar de “Deus” ficou vasto, mas logo voltou ao normal e pegou outro espeto.

Agora, com um assunto em mãos, Elias ficou animado. Mesmo em frente a um Deus, o amor que tinha por seu irmão era maior.

— E-então!? Como o conheceu? Sabe dizer onde ele está agora!?

— Ele foi a caça mais complicada que já tive. E provavelmente de uma dificuldade que nunca mais terei...

Seu corpo gelou.

O cérebro de Elias parou só de pensar na possibilidade de... mas antes que pudesse entrar em estado de negação, a resposta veio:

— Ele era uma boa pessoa. E falou de você, a propósito...

‘era’

Não no presente, no passado... ele foi uma boa pessoa.

Pois ele não está mais aqui. Não estava mais vivo.

— O que você fez com ele!? Está mentindo!

— ...

Mesmo em frente ao homem que tinha certeza de ser Deus, Elias não se restringiu. O segurou pelas vestes e levou ao alto.

Não permitiria desrespeito a seu irmão, se essa pessoa em sua frente o havia assassinado.

Que deixe de lado ele ser Deus.

Os olhos de Elias estavam resolutos no sentimento de matá-lo.

— ... Mesmo sendo irmãos, vocês são diferentes, hein...? Ele estava tão calmo em seus últimos momentos...

Elias tentou forçá-lo ainda mais, comprimir sua garganta, mas ele se auto denominar Deus não era piada.

Nem precisava se mover para tal. Apenas com um olhar foi capaz de subjugar por completo esse mero humano em sua frente.

Elias caiu sob seus próprios joelhos. Parecia que a gravidade estava sob as ordens dessa entidade, sendo comandada a seu bel prazer.

— Eu vou te matar!

— ... — para a ameaça leviana, Deus soltou um singelo sorriso. — Boa sorte.

Pouco depois de assim dizer, ergueu o queixo e franziu o rosto. As sobrancelhas desceram, estava pensativo.

— Você quer a oportunidade?

— Huh...?

— Infelizmente este mundo está sob regras lógicas, você não pode ter tanto poder aqui. Que tal se mandá-lo para um mundo criativo?

— C-como...

Ele estava sem palavras. O que exatamente ele queria dizer...?

— Se você é irmão daquele homem, o melhor que já encontrei e hei de encontrar... talvez... seja possível.

Levou a mão ao queixo dizendo “parece ter potencial, também...” e assentiu para si mesmo.

No entanto, após dizer em voz alta, seus olhos voltaram ao normal e sua cabeça apontou ao chão.
Não tinha esperança, e já aprendera a não se apegar há muito tempo...

Tinha de cumprir sua missão.

— Eu quero! Quero essa chance!

O garoto abaixo gritou. Por um momento havia esquecido de onde se encontrava.

Agora que tinha dado a ideia para ele, sentiria-se mal por deixá-lo no escuro. De qualquer forma, também, ele parecia interessante e uma boa peça.

— Pois bem.

— ...! — seus olhos ascenderam em emoção. — Eu... Posso mesmo?

—Claro, bem, normalmente você precisaria falar umas palavrinhas...  algo de passos rasos etc, mas simplesmente concordar é o suficiente. Então? Quer ir pra lá?

— ...

O que restava nesse mundo? Ele sabia, mesmo que treinasse normalmente, nunca venceria seu irmão... Mas... E se fosse capaz de fazer o mesmo que o homem na na sua frente? E então....

— Eu aceito!

— Sabe, de certa forma, você parece especial... — pouco antes de finalizar tudo, esse pensamento veio à mente. — Enfim, espero que dê tudo certo para você.

E inesperadamente, sua consciência se apagou. Sua presença desapareceu.

Sob o luar, o Deus misterioso pareceu ter lembrado de uma última coisa...

— Ah... aquela pessoa... Rovin? Havia dito algo como você ser a pessoa mais importante do universo...

Entendendo como palavras de amor de um irmão, o Deus ignorou.

...

Com todos os acontecimentos narrados até o momento, ainda era apenas o prelúdio para o nascimento do...

 

Mau Deus



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