Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 26: Demônio~

...

O quarto de Sea não era nada fora do comum para os parâmetros de onde viera. Na verdade, podia ser classificado como algo um pouco acima da classe média.

Uma pequena bancada vazia ao lado de uma cama consideravelmente grande, na qual três pessoas podiam dormir confortavelmente. Uma penteadeira do lado oposto, e nela tinha alguns produtos de uso pessoal e um espelho.

Do outro lado da da entrada, uma porta que levava ao banheiro.

—...

Era nesse local que Sea Scalding ficaria pelos próximos seis anos... na melhor das hipóteses.

Em um movimento rápido, ele pulou na cama, ficando de barriga para baixo, e enfiou o rosto no travesseiro.

Devia pensar, compreender, chegar a uma resposta.

Ele tinha muito o que pensar, felizmente, não é como se tivesse muito o que fazer. O pouco que tinha para fazer... Ou melhor, seu único trabalho era treinar. Mas nem isso conseguiu fazer... Por algum motivo, tinha atrito entre ele e Ase, o Vassalo do local. Essa devia ser a primeira coisa a se pensar....

—Não...

Esse foi o problema que o levou ao estado atual.

Não era para se pensar nisso, não agora. Ele sabia parcialmente o problema, que fora ter esquecido de perguntar sobre Safira.

—...

Sim, essa era sua dúvida inicial. Se resolver sobre. Não é comum, na verdade, era bastante incoerente. Não havia algo que justificasse isso. Sua personalidade esquecida não combinava, nem usar a desculpa de estar no calor do momento, como Bianca deixara entendido.

Era algo mais profundo. Essa, sim, era sua primeira pergunta:

“Por que esqueci ela...?”

E para isso, teria de remoer suas memórias até o ponto inicial após a emboscada.

—Hum...?

Não tinha.

As memórias daquele dia... dos dias posteriores, pouco antes de acordar, não estavam lá. Ele tentou recordar, puxou os cabelos da cabeça, talvez fosse só medo, pavor, relutância em lembrar daquele momento, mas...

Simplesmente, parecia que tivessem sido apagadas, borradas. Ele lembrava de alguns detalhes, sabia como estava o clima, a árvore do local, a umidade no ar, a dificuldade de andar na terra... mas quando pensava em XXXXX

—...?

XXXXX

Ele ficou em choque. Onde estava, qual era o sentido disso? Por que parecia que suas memórias haviam sido delicadamente selecionadas para não serem lembradas...? Qual o critério para isso? Quem o fez? Ele mesmo....?

Um sentimento aflorou no peito.

Desespero. Era tudo que podia definir seu estado mental. Como se estivesse se afogando pouco a pouco, caindo mais profundamente, um peso estivesse o levando para baixo, mas por mais que seus braços conseguissem o alcançar, e tivesse a força necessária para retirá-lo, ele não tirava.

Não era algo que agia conscientemente...  mas notava isso. Isso o confundia.

Ele se levantou da cama, ficou de joelhos, desviou seu olhar para o espelho do outro lado... via uma pequena faísca verde em seus olhos, no entanto, isso só o deixou mais melancólico.

Queria acabar com isso, de uma forma ou de outra. Já tinha consciência que não estava conseguindo dormir, mas isso era, ao menos, por meios normais...

Sea virou o corpo, engatinhou até a parede e a tocou. O sentimento ríspido e gélido de sua superfície fizeram seus pelos arrepiar, tinha conseguido acalmar um pouco o calor e suor que cobria seu corpo.

Se não conseguisse descansar a mente, parar de ter esses pensamentos, por um meio indolor...

—...!

Iria se forçar a isso.

Suas palmas se conectaram a parede como se a tentassem puxar, mas ao contrário, agarraram-se com força contra a superfície. Mesmo que pouco suas unhas cravaram nela. Ele não se importava com a dor.

Por fim, deixou seu tronco ereto e então o forçou para frente. Junto dele, sua cabeça foi junta, a velocidade era estonteante. Não é como se fosse ser uma brincadeira para acordar. Na realidade, a força utilizada causaria não menos que uma concussão pesada.

Então, de uma hora para a outra, tudo vazou de uma vez, por mais que um pouco borrado. Foi algo abrupto e rústico, mas, acima de tudo, doloroso.

Sentimentos selados... impulsionaram de seu peito. Esse choque o fez parar por pouco, mas devido o movimento, não foi capaz de parar completamente. Sua cabeça chocou contra o sólido, seu cérebro remexeu, e foi lançado para trás.

Caiu de volta na cama, confuso. A sensação veio de seu peito, percorreu sua barriga, foi pela cintura, pernas, pé, braços, mãos, e então à cabeça...

Finalmente, lembrou de Elias. Também, do que nutria por ele. Tudo que havia sido selado dentro de si fora liberado, causando uma confusão momentânea em seu corpo. Seus membros foram à cabeça, tentaram ao menos amenizar um pouco a dor que sentia.

—...................................................................................................................................................................................

Um grito tenebroso percorreu o quarto.

Isso ainda durou por um bom tempo...

...

—Demônio~

Seu corpo se remoía.

Era jogado de um lado para o outro, sem cuidado.

Cada parte de seu corpo era atacada. Às vezes, era um chute na perna, fazendo seu corpo torcer para o lado. Na outra, era uma joelhada no estômago que o fazia vomitar o pouco que comera no almoço.

—Agh.....

Agora, havia sido um chute no tórax, e isso o fez expelir todo o ar que tinha. Era como se o dono dos golpes estivesse zombando da tentativa fracassada de manter oxigênio na circulação sanguínea.

“Sea Scalding”, 10, morada das moscas.

Seu corpo foi jogado bem longe, entrando em colisão com uma árvore.

O ambiente não era bem feito, parecia uma pintura surrealista, estava todo borrado. O céu claro parecia alongado, o corpo que o atacava, de formato simplista e cor branca, estava esticado.

—Demônio~

A voz irritante não parava de chegar aos seus ouvidos. Muito menos os ataques paravam, nunca deixavam de vir, na verdade.

Isso era o suficiente.

O que havia feito para essa pessoa? Por que, repetidamente, ele o golpeava sem dó, sem chance de defesa? Qual o sentido disso?

Um mar de pensamentos passavam por sua cabeça, mas, mais forte que isso... algo estranho aflorava dentro de si.

—Demônio~

Algo forte, reprimido de um passado ainda mais longínquo...

O fervor passou pelos seus olhos.

Mesmo com ossos quebrados, sangue jorrando e coração quase parando... ele avançou.

Em um rápido e fluido ataque, derrubou o garoto na sua frente. Ficou sobre seu corpo, na melhor posição possível para socá-lo.

Não iria aceitar aquele tratamento. E para nunca mais sofrer, se preciso... ele faria tudo.

Uma explosão de luz surgiu de seu corpo, fez uma redoma branca e varreu seus arredores. O exterior tinha mudado. As árvores que o cercavam estavam secas, sem folhas.  A grama verde e fofa sob seus pés foi tomada por um solo árido e arenoso, repleto de rachaduras. Os arredores pegavam fogo, era como se... o mundo estivesse acabando.

Mas ele não se importava com a troca de ambiente.

Levantou seu punho, mirou no rosto de sua presa, mas...

Não estava lá. Em seu lugar estava um esqueleto, sequer parecia o ser que estava ali há pouco.

Mas não foi isso o que chocou. Virando um pouco seu pescoço, olhou para sua mão.

Uma negritude completa. Como se a inexistência de cor se concentrasse em seu membro... No entanto, não parou por aí.

Sua visão foi subindo. Dedos, palma, antebraço, cotovelo, ombro, pescoço, pernas, cabeça...

Seu corpo estava completamente preto.

—...

Sea se levantou, deixou de lado o cadáver aos seus pés.

Olhou ao redor, estava tudo igual ao que vira antes. Fogo, rachaduras, árvores secas, céu amarelado.

Onde havia chegado? Era isso que queria?

*Pinga*

Todavia, um barulho chamou sua atenção.

O ruído de uma gota caindo no solo, seguido de uma estranha sensação de melancolia.

Mais sons chegavam aos seus tímpanos. Não mais gotas, agora, isso era água corrente.

Chuva? Olhou para cima e estendeu as mãos, mas não captou nada.

Demorou um pouco, mas depois de ficar bastante parado... notou a origem.

Suas lágrimas.

Ininterruptamente elas caíam de suas cavidades, também negras. Contudo, ao contrário, eram brancas, a mais pura junção de todas as cores.

Seus braços se moviam intensamente na tentativa de limpar seu rosto, mas foi em vão. Quanto mais secava, mais brotava.

Notando isso, ele desistiu. Seus braços perderam a força, ficando completamente estirados. Analisou mais uma vez seu entorno, e devido a isso, sua situação só piorou.

Foi ao chão, de joelhos. Sua visão já estava completamente obstruída, mas mesmo com isso, ele não tentou mais nada.

Se dependesse dele, apenas iria ficar lá, naquela região caótica, chorando infinitamente...

No entanto...

Uma sensação quente.

Seu pescoço foi rodeado pela sensação mais calorosa possível, sua cabeça foi levada à frente, repousando em uma região fofa.

Pôde ouvir sussurros. Não entendia, mas sabia que eram boas palavras, palavras que o acalmavam.

Como o paraíso...

—Demônio~

O mundo voltou ao normal.

Aproveitando do estado paralizado de Sea, seu oponente o tirou de cima de si com força, e dessa vez, não o daria escapatória.

Sea Scalding continuou lá, sendo machucado de todas as formas possíveis, apenas aceitando o que estava por vir.

Ainda assim, estava sorrindo.

Se pudesse sentir aquele prazer indiscritível, do qual não podia ser tido por meios normais...

Aguentaria qualquer coisa.

Desejaria por uma sensação ainda melhor, sempre. Aquela coisa hipnotizante, como uma droga.

Desse dia em diante, Sea Scalding nunca mais teve conhecimento do sentimento profundo que o fizera delirar, selando-o por completo.

...

—Agh...

Voltou à realidade.

Sem ter notado, bastante tempo havia passado. A noite deu lugar a um pequena claridade... estava amanhecendo. Talvez pouco antes das 7.

Não foi um sonho, não chegara a dormir. Era mais como se... apenas houvesse delirado. O que era aquilo? Algo fictício, uma memória, premonição do futuro...?

Não tinha como dizer.

Emoções confusas o rodeavam, mas aquilo que o havia enlouquecido não se encontrava mais presente.

Estava perfeitamente calmo, lembrava de Safira com clareza. Também, recordava de Elias e sua companheira, por mais que uma raiva indescritível cortasse seu peito.

Podia parecer que ele havia perdido a noite toda apenas sofrendo... mas não acabou assim.

—...

Sea se levantou, foi até a janela do quarto, afastou as cortinas e permitiu que os raios de sol em sua totalidade adentrassem o recinto.

Pondo uma mão no vidro que o separava do ambiente exterior, sussurrou...

—Eu vou te trazer de volta.

Tinha um palpite que todas suas dúvidas seriam sanadas... mas para isso, teria de garantir a segurança de quem amava. Apenas com ela ao seu lado, descobriria o porque de estar assim.

Foi até o banheiro e lavou o rosto, então, deu meia-volta e cerrou o punho. Passou pela cama, abriu a porta, quem aparecera em sua visão era ninguém menos que Bianca,  que estava prestes a bater.

Ela tentou cumprimentar, mas foi cortada pelas palavras confiantes de Sea:

—Sem tempo a perder. Por onde começo?



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