Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 23: Raposas

Dois seres de tamanho estupendo repousavam por trás das árvores. A silhueta de ambos era tudo que podia ser vista, lembravam um animal quadrúpede deitado, esperando por algo. Suas orelhas estavam abaixadas, suas pernas retraídas. Era a figura de uma raposa, com a diferença de que... possuíam um número anormal de caudas. Uma delas, quatro, a outra, cinco.

Usavam os largos troncos como proteção, como se escondendo de algo. Uma delas, a amarela, soltou um suspiro no formato de rugido. Uma onda de choque invisível aos humanos se alastrou pela floresta. A grama foi levada pelo vento, algumas lascas de madeira saíram de sua posição, e os animais, principalmente, foram os que mais sentiram.

De início, todos ficaram parados.  Desde insetos a mamíferos. Pouco tempo depois, a maioria voltou ao seu movimentar natural, com exceção de um ser...

Uma raposa, comum, estava parada, analisando seus flancos e retaguarda. Por mais que bastante distante daqueles que causaram esse efeito, ela olhou na direção deles e assentiu.

Como se hipnotizado, seguiu pela terra em direção a uma região incerta, não sabia o que era, apenas onde. Ao chegar num certo ponto, sentiu que devia parar, e parou.

Sem pestanejar, moveu seu olhar para baixo. Um buraco, bastante considerável em tamanho. Dava pra sentir o esforço feito para escavá-lo, assim como o trabalho feito na parede e entorno para dificultar a saída. Não precisava de muito análise para saber que, se caísse lá, jamais sairia, dado seu tamanho diminuto.

Todavia, não era ele quem estava em perigo no momento, e sim o jovem trajado de preto encostado contra a parede. Sua altura sequer chegava a metade do buraco, e não parecia ter um condicionamento físico ou habilidade especial de escalada. Provavelmente, morreria de fome ou algo do gênero.

Isso passou pela sua cabeça, pelos seus instintos racionais. Obviamente, não tinha motivo para atacá-lo, já que, além de não ter certeza de vitória em um confronto, não teria como voltar. Era um ato bem burro, na verdade.

Mas, essa parte em específico, não chegava ao seu conhecimento. Como se algo mais forte apagasse essa lógica.

A raposa, primeiramente, observou por uns instantes sua presa. Então, recuou para, por fim, lançar um poderoso salto contra a figura no buraco.

Entretanto, repentinamente...

*Kabuum*

Seu movimento parou.

Não, antes disso, uma série de explosões ocorreram do lado de fora. Estas as quais se localizavam muito perto das duas raposas enormes, e apenas iam se aproximando.

O controle mental fora perdido. Felizmente, a explosão no corpo peludo que pulava havia sido tão forte que fora uma morte quase que instantânea, a raposa não teve tempo de sentir dor. Apenas seu corpo foi jogado para fora do buraco, quase que completamente carbonizado.

A raposa amarela e branca, em alerta, sabiam bem o que significava isso. Estavam prontas para serem descobertas. Claro, de preferência, até que seu objetivo fosse concluído. Infelizmente, não foi o caso.

Ambas reagiram, estavam prontas para o pior dos caminhos. Ergueram-se e, com movimentos rápidos, começaram a correr por meio das árvores, abusando de sua formação quadrúpede.

Incontáveis explosões se seguiram, sempre contrastando com as patas atingindo com força a terra. Também, por trás de todo esse barulho, o som de um singelo estalar de dedos podia ser ouvido, sempre sendo sucedido pelas explosões.

Após alguns segundos, que para os participantes da batalha pareciam anos, raios também começaram a ser desferidos. Era como se esse fenômeno natural tivesse um padrão de caça, seguindo suas presas indefinidamente.

Não restava muito tempo. Com a chegada dos raios, de uma segunda pessoa, o antes difícil se tornara impossível. Não importa o quanto corressem ou tentassem fugir, hora ou outra seriam pegos por um dos golpes. E, a partir do momento que isso acontecesse...  seus destinos estariam selados.

Um movimento impulsivo.

Uma ideia passou pela cabeça da raposa branca, o que a fez desviar seu percurso. A amarela tentou impedir, ou ao menos saber o motivo, mas devido à tensão da situação, isso não foi possível.

Os raios seguiram a amarela, enquanto as explosões seguiram a branca.

A segunda se aproximou do buraco e deu a volta. Não foi muito difícil dado seu tamanho.

Contrariando sua aparência, era um ser bastante astuto. Analisou com cuidado todo seu entorno, cada elemento, o mínimo detalhe fora levado em consideração. Até mesmo estava fazendo o possível para decorar o padrão de ataque inimigo.

—...!

Então, o momento chegou.

Mais exatamente, a região certa havia sido encontrada.

Como seu tempo estava acabando, colocou sua energia nisso, movendo-se ainda mais rápido do que antes.

Fez um zigue-zague intenso em meios as árvores, posicionou-se no local certo, premeditou o melhor lugar para uma explosão e...

*Kaboom*

Desviou no último instante, por mais que resquícios da explosão o tenham atingido.

O solo tremeu, assim como uma parte sua foi arrancada, levando consigo um grande número de raízes.

Não muito depois, o tronco foi de encontro ao chão, caindo bem em direção ao buraco.

O impacto contra o solo foi bastante poderoso, levando poeira e fazendo ecoar um som imenso pela floresta. Mas, mais surpreendentemente...

Havia feito um caminho diagonal, o qual levava do fundo da cavidade até a superfície.

A raposa amarela já estava encurralada em uma grande pedra perto de um lago. Um movimento em falso e seu corpo seria partido em pedaços. Na verdade, não tinha motivos aparentes para ainda estar viva.

Um silêncio estranho se instalou pela floresta.

—Hm...

Não era um murmúrio das raposas, mas sim de um homem. Ele desceu de um dos galhos da árvore, e ficou de frente a raposa branca, que agora estava acuada, esgotada e ferida.

Quase que imediatamente, uma redoma saiu de seu corpo. Era transparente e azul, e apenas ia se expandindo ao passar do tempo.

Após algumas dezenas de segundos, a redoma, que estava do tamanho de metade da floresta, retraiu-se. Voltou ao seu centro, o corpo do homem, e desapareceu. Não havia afetado o exterior, e ninguém a havia notado.

—É assim...

Agora, a decisão estaria nas mãos do homem de voz rouca e cansada.

—Ei, ei, ele vai escapar, cê sabe, né?

Como em um passe de mágica, uma voz feminina o chamava a alguns metros de distância. Sua voz veio primeiro, e depois, seu corpo foi se materializando, caindo como uma pluma abraçando o pescoço do homem. Seus braços enlaçaram pelos ombros dele, e então seu torso e metade inferior foram se compondo.

Além das vozes e silhueta, não havia muito a ser dito sobre a aparência dos dois, devido a péssima luminosidade.

—Vocês planejaram isso, não?

—Apenas eu, Vassalo.

Para a pergunta do homem, a raposa amarela respondeu, tentando eximir a culpa de seu companheiro.

Ao longe, o jovem que esteve trancafiado por bastante tempo saiu, correndo em direção ao castelo.

O homem reagiu com um estalo de língua enquanto abaixava a cabeça, já a garota desferiu um pequeno sorriso.

Então, o Vassalo continuou a falar.

—Não importa o status que vocês, como Deuses raposas tenham, é contra as regras o auxílio aos invocados, pelo menos tão cedo.

—Não me recordo de ajudar o invocado de alguma maneira, senhor Vassalo.—Dessa vez, quem respondeu foi a raposa branca.— Nem eu nem meu companheiro. Para tais afirmações, é bom que tenha provas concretas.

—Sem essa, eu estive observando vocês dois pelos últimos dois dias, parados naquela posição. Além do que, as raposas terem caído no buraco para salvá-lo da fome é algo bastante conveniente, não acham?

—Afirmações infundadas. Como sabe, nos foi dado a permissão para morarmos nessa floresta. Como nosso tempo é utilizado é questão nossa. Também, por qual motivo nós arriscaríamos nossa vida para salvá-lo, alguém que não temos relação? Por fim, não há sentido em “salvá-lo” da fome estando ali há apenas dois dias. Isso não possui cabimento.

—Hum, olha, é legal brincar de detetive, mas aqui não é tribunal. Vocês estarem certo não é o que importa, e sim o que nós achamos. O que, a propósito, já está bem claro.—A voz feminina, de traços infantis, falou de forma dura.

As raposas engoliram em seco. Eram conhecidos de longa data, manter um jogo não iria funcionar. Além de saberem que, com argumentos e lógica, não sairiam dessa situação.

—Sim, nós...

—Não, que vocês fizeram isso eu sei. Quero saber o porquê.—A rispidez do Vassalo não os dava descanso.

—... O invocado de Pio veio sem um título, a situação política de lá vem complicando... Uma guerra civil está para começar. No pior dos casos, todos os cidadão serão mortos...—Suas falas foram tão sincronizadas que podiam ser confundidas com apenas uma.

—Não é como se estivessem preocupados com os humanos, né? Vocês possuem um longo histórico de acudir invocados... A situação de Pio chegou a um ponto tão caótica para se arriscarem tanto? Olha, parece legal!

A garota rodeou o homem, dando um tapinha em seu ombro. Ela olhou para as duas raposas, virando sua cabeça de cima para baixo. Então, soltou um sorriso.

—Vamos, Ase, deixa eles. Vai dizer que não entende o quanto família é importante, logo você!? Também, se olhar de certo ponto, você quem explodiu a árvore que permitiu ele sair! A culpa é sua!

—Ah...

De certa forma, as raposas apenas queriam manter Sea vivo. Tirá-lo de lá foi um plano arriscado e feito de última hora. Em suma, realmente, a culpa era de Ase.

Ele suspirou e levou os dedos à cabeça. Sabia que acabaria assim. Não que ele ter parte na fuga, mesmo que inconscientemente, tivesse efeito. Todavia, tendo sua companheira contra si nessa decisão seria complicado.

Assim que pôs os pensamentos em ordem, apontou para o espaço vazio entre as raposas e disse:

—Vou permitir que saiam dessa vez, mas os banirei permanentemente de adentrarem este reino ou setor novamente. Também, a próxima ajuda óbvia que fizerem a um invocado não escapará sem punições.

Com as palavras pesadas do Vassalo, chamado Ase, as raposas curvaram a cabeça. Não pensavam que fossem morrer, mas sair com uma pena tão leve também não estava dentro de seus planos.

—Seguiremos as novas regras com vigor, Vassalo Ase, e Vassala Bianca.

Nesse momento, deu para ouvir a porta do castelo fechando a vários metros de distância.

—Ase~... tá escuro, vamos entrar logo.—Falou de forma carinhosa enquanto o abraçava.

—Sim... certo.

Os dois se viraram e começaram a caminhar. No entanto, antes que pudessem ir muito longe, o andar de Ase parou, o que deixou Bianca surpresa.

—A propósito... Teve algum motivo em específico para terem salvado logo esse, fora a questão política de Pio?

—... Ele era o invocado mais perto, afinal, moramos nessa floresta. Quanto mais deles sobreviverem, melhor.

—Entendo.

Sua resposta final trazia um pouco de desapontamento, mas também conformidade.

O rosto de sua companheira mudou um pouco, ficou sério, mas então, para mudar o ânimo, virou 180 graus e, com uma voz bastante animada gritou:

—Ei, depois disso tudo, sem ressentimentos, viu!? Ainda quero brincar com vocês. Mandem uma carta também, sobre para onde vão ficar e... Ah, espero que dê tudo certo com a sua filha!

—Sim, nós manteremos contato.—Eles não iriam.

Depois disso, os Vassalos sumiram do ambiente, deixando a floresta. As raposas, cansadas, iniciaram sua mudança. Essa floresta foi sua casa por bastante tempo, mas agora teriam de mudar.

—Talvez essa geração seja nossa última esperança...

—E faremos o possível para que cheguem a Pio...

Por fim, deram meia-volta e partiram.



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