Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 20: Separação

Com um forte clarão que ultrapassava até suas pálpebras, Sea acordou, por mais que não de forma usual.

O importante agora era a sensação macia em seu tórax,  uma força considerável o enlaçando gentilmente pelas costas, além de um um agradável odor no ar.

—Ei...?

Isso... era uma realização perfeita de seus desejos mais profundos. Algo completamente impensável de se ter por meios legais.

Sea conseguia contar em uma mão quantas vezes teve relações com uma moça, e a grande maioria era negativa.

Agora, acordar a o lado de uma, era o paraíso. Não era a primeira vez que ambos dormiam juntos, devido a várias circunstâncias, como o tamanho da carruagem, mas foi diferente.

Seus rostos estavam extremamente próximos um do outro.

A situação era tão divina que ele imaginou se seria errado tirar proveito dela.

Ele até teve iniciativa de se mover, mas foi surpreendido.

—Acordou, Sea?

—...!?

Ao olhar para cima, um par de olhos azuis o encaravam, junto a um sorriso manhoso estampado na face

—Você pretendia fazer alguma coisa?

—Não. Estava testando sua respiração. É normal de onde vim.—Ele deu sua melhor desculpa, que sequer chegava a ser boa.

—Uhum...—Safira acalmou os olhos, e não disse mais nada.

...

Meia hora depois, tanto Sea quanto Safira já estavam prontos. Qualquer objeto não necessário fora colocado na mochila.

Saindo da estalagem logo depois de se despedir do dono e de sua filha, os viajantes se encontravam com chuva. O céu estava nublado, e por pequenas brechas nas nuvens se era possível ver o “sol”.

—Hum, que dia lindo! Digno de um enterro!

—... Se continuar fazendo essas piadas, o único enterro será o seu.

—Pra quê agredir?

Já era meio-dia, O “sol” se encontrava em seu pico, não que isso importasse, afinal, a floresta não permitia diferenciar a luminosidade.

Sea, durante sua caminhada, conseguia ver uma flora que nunca antes vista. Mesmo não sendo seu foco de interesse, ele não via mal em apreciá-las no tempo livre.

—por que saímos da estalagem tão tarde?Não era melhor sair mais cedo?

—Da próxima vez, acorde no horário combinado.—Ela disse, de forma curta e grossa.

A terra molhada, os troncos secos, mas por alguma razão Sea estava a todo vapor. A chuva caía nele, mas não se molhava. Nesse momento, um pensamento passou pela sua cabeça:

“Eu sou tipo uma cópia desfigurada do Percy Jackson?”

—Ah, Safira-—Antes de completar sua fala, uma péssima sensação passou pelo seu corpo.

Safira não ficou atrás, ela começara a olhar para os lados, como se um perigo iminente se aproximasse, mas quando se deram conta...

—Yahuuu!—Um grito agitado ecoou do topo de suas cabeças.

Em poucos segundos duas sombras desceram dos galhos das árvores. O movimento foi rápido e fluído, antes que pudesse reagir, Sea estava recebendo um mata leão.

—Mas que po-... Hurr.

—Caladinho.—Antes que Sea pudesse fazer qualquer coisa, uma voz feminina o calou, fazendo pressão em seu pescoço.—E você, solte ele. Se não, o garoto aqui não vai ficar de forma agradável.

—Huh? E por que eu deveria? Por que não testamos se você é capaz?

Safira, um pouco distante, também foi abordada. Todavia, sua reação era rápida o suficiente para se defender e, no processo, parar os movimentos do encapuzado. Sua feição não era das melhores, já que estava de joelhos, com um braço sendo torcido.

A garota de cabelo verde podia sentir, Safira seria mais do que capaz de acabar com todos os três presentes em um piscar de olhos.

Ela não conseguia entender, ambas eram companheiras de invocados, ambas foram nomeadas, por que o nível de poder era tão diferente?

Então, uma possibilidade veio à sua mente.

“O sobrenome... já?”

Não era usual utilizar desse atributo no início. Talvez tornasse o guia bem mais poderoso, mas assim que os outros guias utilizassem do sobrenome para multiplicar uma base maior, ele ficariam para trás. Não era muito usual. Na verdade, sobrenomes só eram dados bem mais à frente no jogo. Isso era um tanto quanto inesperado.

—Não, você não entendeu. Solte o meu mestre ou eu quebro o pescoço desse garoto agora mesmo.

—Se é assim, eu também mato esse homem agora mesmo!

—Tudo bem, um problema a menos na minha vida.Quem disse que eu ligo pra ele? Mas agora... Você não liga pro seu invocado?

—Maria?

Elias não esperava por essa, mas entendeu como um blefe.

—Tsk. Acha mesmo que vou cair nessa?

—O quê? Pensa que eu não tenho coragem? Na verdade, se você acabar com esse idiota vai me livrar de vários problemas.

Safira nunca havia passado por tal situação, no máximo ela havia sido treinada com rigor, mas nunca por isso.

Ela não sabia o que fazer na hora, e muito menos como reagir, e se aquela garota falasse a verdade? Ela acabava com Elias e Sea morria, depois ela acabava com a garota de cabelo laranja, mas no fim, esse não seria o pior final possível?

Vendo Sea lá, preso, ela já tinha sua resposta.

E também tinha uma coisa que ela queria...

Escondendo bastante suas emoções...

—Certo...—Sem muita escolha, Safira retrocedeu, liberando o invocado.

—Argh... Arf, ah... Valeu, maria... Caham!—Após ser liberado, ele limpou a garganta, retomando sua pose confiante, ao lado de sua guia—Pois bem, Sea Scalding. Imagino que se lembre de mim, certo?

Essa voz vinha do homem que ameaçava Safira com uma faca. Ele trajava vestes coladas e capuz, alternando entre marrom e verde.

Sea olhou para ele e se surpreendeu. Sendo questionado com tanto afinco, e em uma situação não muito favorável, ele foi bastante sincero.

Assim que Maria relaxou o golpe, para permitir Sea falar com clareza, ele respondeu:

—Huh. Não.

—Quê?—Elias Não esperava por essa.

Sea tem uma péssima memória para nomes ou rostos, tanto é que desde que chegou a esse mundo esquecera seu próprio nome. Há vezes que ele esquece até a cor de seu cabelo. Vez ou outra ele se assusta ao olhar o espelho.

—Você não se lembra de mim?

—Eu  deveria?

—...? Elias, Elias Locksley!—Esbravejou, indignado.

—Olha, meu trabalho não é ficar decorando o nome de qualquer cara que aparece. Saca? Mas... Locksley...? Lembro de já ter ouvido algo sobre. Ah, pera!

Basicamente, ele absorveria as histórias recebidas, esquecendo totalmente quem a havia exposto. Ele genuinamente não se lembrava do rosto ou nome. Para reconhecer a pessoa, ele teria de se lembrar de seu “eu”, seu passado, e assim ele correlacionava.

No caso de Elias, ele lembrava de ter conhecido um Locksley, mas havia descartado a informação de seu primeiro nome e rosto. Ao ter essas informações jogadas em sua cara, ele pôde relacionar. Assim, ele recordou quem era o encapuzado na sua frente.

De seu mundo apenas lembrava de uma pessoa, rosto e nome, seu avô. Nem mesmo seu primo ou irmão ele lembrava, tanto seus rostos quantos nomes. Ou melhor, ele não queria lembrar do nome de ninguém que já conheceu, então deu no que deu.

—Mestre, poderia retomar suas prioridades? Por favor, está humilhando a si mesmo.

A relação entre esses dois era bem complicada.

Elias, vendo-se livre, ergueu-se para ficar frente a frente com Safira. Em seguida, ele pegou um objeto de metal de uma mochila em suas costas. Sua aparência era amedrontadora. Era praticamente igual a uma armadilha de urso, mas um pouco menor.

—Ei, ei, ei ei ei ei ei ei. Calma...—Tendo essa arma em sua visão, Sea começou a choramingar, pedindo paciência, até ser parado por Maria.

Sem nenhum receio, Elias se aproximou da ruiva. Sua companheira encarava Safira vigorosamente, deixando claro que não queria movimento.

Em um único golpe, ele balançou a armadilha, prendendo o pescoço de Safira com seus dentes afiados.

—NÃO!

Mesmo com a força em seu pescoço, Sea forçou um grito. Seus olhos estavam em pavor, de uma vez, eles começaram a perder o brilho... mas então, algo inesperado ocorreu.

Os dentes, que deveriam ter estraçalhado a carne, simplesmente afundaram, tornando-se um azul pálido. No final, a antes armadilha se tornou uma coleira.

Safira simplesmente precipitou, Mas o loiro fez questão de não deixá-la cair.

Então, Maria deixou ele ficar mais “confortável”

—O que foi isso!?

—Gostou? É uma coleira de escravo. Quando colocada a pessoa desmaia na hora.Maneiro. né?

—Seu...

—Fique quieto, por favor.—Dizia a única companheira restante enquanto pressionava o pescoço de Sea.

Percebendo que a única pessoa a representar perigo havia sido eliminada, Maria soltou Sea, derrubando-o no chão.

Sem pestanejar, ele tentou avançar contra Elias, que simplesmente desviou. Aproveitando-se do impulso do oponente, ele pôs um pé, fazendo-o tropeçar.

—Tenha dó, acha mesmo que vai me vencer só com isso?

—Sim, por favor, fique no seu lugar.

—...!—Sea tentava falar alguma coisa, mas de tanto ter sua garganta pressionada, a ação de falar doía.

Elias olhava para Sea com claro desgosto. Havia se rebaixado tanto assim...?

—Sabe, tô começando a achar que esse papo de vingança é meio ridículo... Não tem graça acabar com ele assim, já é meio óbvio o resultado, não?

—O quê?—Questionava a guia, indignada.—Nós saímos do nosso curso de origem e passamos em outro setor sem descansar para você ter sua “vingança”, se não tem graça agora pode ter depois.

—Hum... “Pegar e largar”? Boa ideia.

—Ô arquinho, não sei exatamente o que eu fiz, mas não espere que vou levar isso na boa...—Dizia Sea com um sorriso forçado no rosto.

Como resposta à ameaça sem fundamentos de Sea, Elias chutou sua cabeça, fazendo Sea rolar um pouco pela terra molhada.

—Hur...

—Certo, Maria, quanto tempo você acha que ele merece?

—Quatro meses... Talvez?

—Não... Quatro é demais... Três, três meses e teremos o nosso duelo!

—Que droga cês tão falando!?

Elias, notando que Sea não sabia o que era um duelo, começou a explicar:

—Aparentemente esse mundo têm um sistema de duelos, o “Duelo pseudo-mortal” e o “Duelo clássico”. Vou deixar você treinar um pouquinho, e daqui a 3 meses nós vamos duelar no clássico,

—Ah, é?E porque eu aceitaria isso?

Sem falar nada, Elias pegou a corrente que se prendia à coleira no pescoço de Safira e a puxou, fazendo seu rosto torcer de dor.

—Por isso.

—Bastardo!

—Vamos garoto, você não vai aceitar o duelo?

Sea olhou pra baixo... Mas o que ele podia fazer? De um lado tem um caçador bem treinado em artes marciais e na caça, do outro uma praticante de magia. E ele? Um ser humano comum que não podia confiar em nada além de seu intelecto, e o pior, sua genialidade não seria de grande uso aqui.

—Quais as condições... Dos dois duelos?

—Permita-me explicar.—Interrompeu a guia.—O pseudo-mortal teletransportará vocês dois para um outro lugar, em que não serão incomodados, o vencedor poderá pegar uma coisa do perdedor. Quanto ao clássico, uma pequena redoma cobrirá seus arredores, tendo apenas vocês na luta.

Sea engoliu o desconforto e raciocinou, tentando ficar calmo.

—E estão me desafiando para o clássico?

—Assim como meu mestre disse, sim.

Naquele momento, Sea já estava bem alterado. Naquele momento, o que ele mais havia se apegado fora pego. Naquele momento, Sea havia perdido a única pessoa que já fez algo pra ele tendo que se arriscar.

Sea sabia muito bem o que fazer nessas horas, quando ele estava em desespero, quando ele estava só... Quando ele estava com raiva.

Ele precisava de uma única coisa.

Limit Break

Repentinamente, sangue começou a ser bombeado por suas veias em demasia. Seu corpo esquentava de forma absurda. O mundo ia ficando mais lento, e lento...

—Maria? O que foi?

O rosto de sua companheira estava bem diferente. Sea não havia mudado de forma significativa, pelo menos, não de forma visível a olho nu.

A guia, a mais poderosa e consciente ali, estava apavorada. Repentinamente, Sea simplesmente tinha mudado muito. Não de forma física, também... seus olhos... não estavam normais. Como se ele compartilhassem um sentimento, um outro sentimento, que não pertencesse a ele... como se algo a mais estivesse ali.

—Cuidado!
De forma súbita, Sea impulsionou contra ela. Seus olhos pareciam estar menos equilibrados, refletindo seu estado mental. Bem mais rápido do que antes, ele chegara em sua frente em poucos segundos. Quando ela notou, já era tarde.

Todavia, isso não era suficiente.

—Não!

Sea avançou sem postura, deixando bastante simples que Elias apenas pusesse pressão em sua testa, suas pernas não resistiram e colapsaram. Sea havia sido derrubado. paralisado.

—Ah...

Maria, ao lado, recuou um pouco, embasbacada, segurando-se a uma árvore atrás de si.

—Idiota! Por que não reagiu?

Era o óbvio a se falar. Sea não havia mudado nada, apenas ficara um pouco mais rápido. Não era motivo para sua companheira ter ficado atordoada.

Maria estava aterrorizada. Ela não sabia definir aquilo, mas o mais próximo era... alguma magia? Normalmente invocados só a desenvolvem depois de um mês sobre a tutela de seus mestres, mas esse garoto sequer treinou, ou seja, ele nasceu com magia, mas isso também não é possível, afinal, o mundo de Sea não tem magia. Era impossível. Esses pensamentos fluíam por sua mente.

Como ele tem magia? Isso era mesmo magia? Como? Como? Como?

Enfim, após ver como Sea se encontrava desacordado, ela engoliu a saliva que se acumulava na garganta e se acalmou. Ela balançou a cabeça, tentando se recompor. Claro, não era inocente ao ponto de pensar que fosse coincidência, havia algo por trás, mas não iria descobrir com o garoto nesse estado.

—Bom, passamos a mensagem. No castelo você me explica isso aí... Vamos.

Maria colocou Safira sobre seus ombros, iriam levá-la consigo. Claro, era uma forma de incentivar Sea a não amarelar.

Mas, ainda faltava algo...

—Ah, sim. Eu não fiquei dois dias cavando para nada.

Elias se aproximou de Sea e o segurou pelo casaco. Como se seu peso fosse inexistente, levou-lhe para outro lugar.

Andando alguns metros, Elias se deparou em frente a um buraco, um de cinco metros que havia sido cavado.

—Tome isso como mais um incentivo.

Sem poder responder devido seu estado, Sea foi arremessado de mal jeito na cavidade. Suas costas bateram e ele se machucou, por sorte não caiu de um jeito pior, mas  ainda assim sentiu uma forte dor, fazendo-o se mover por obrigação.

—Arf... Hã?—Ele acordou atordoado, mas de pouco em pouco a realidade foi sendo trazida à tona.

—Já cansado? Nem começamos ainda. Se nem conseguir sair daqui, isso prova que você não é digno de lutar comigo. Te vejo em três meses. Veja isso como um ato de bondade, já que dessa forma seria bastante desproporcional. Bons treinos, Sea Scalding. E espero que se torne uma boa caça.—Dizia ele jogando a faca no buraco, para o caso de... ele não querer passar por tudo isso.

—Ah...—Sea tentou responder, mas sua consciência não conseguia encontrar as palavras para tal.

O rosto de Sea foi tomado pelo ódio.

Ódio?

—Bem, até mais.

—Vamos, mestre.

E então, os passos dos dois foram se perdendo, pouco a pouco iam sendo silenciados, até se calarem totalmente.

Sea fora deixado sozinho no buraco, sem forma de sair rapidamente...

Um sentimento estranho inflamava em seu peito.



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