Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 14: Os contos de um Bom Demonio

O barulho da panela.

Essa deve ser uma das minhas memórias mais antigas.

Apenas uma criança com fome. Minha idade não lembro, mas era bem pequeno. Talvez sete? Por aí.

Não possuo uma descrição perfeita do lugar, mas recordo com perfeição o que aconteceu.

Um pequeno fogão a gás, de quatro bocas. Uma mesa consideravelmente grande de madeira, com duas cadeiras. O resto é difícil dizer, mas imagino que estava em um lugar bem velho, afinal, era uma casa de praia antiga do meu avô, e a maresia deve ter destruído boa parte da pintura da parede e teto.

É como um costume do meu país. Bom, normalmente se faz em família, com dezenas de pessoas, mas era só eu e meu vô. Ninguém mais.

Basicamente: comer caranguejo.

Pode parecer estranho ou sem sentido, talvez ambos, mas leia até o final.

Se você nunca teve a experiência de ver um caranguejo ser feito, farei meu melhor para explicar. Eu mesmo não sei direito, sou péssimo na cozinha, mas resumindo: Você pega uma panela alta, coloca os temperos e condimentos, enche de água e põe no fogão. Por fim, você pega uma corda de caranguejo e ... coloca na panela.

Com eles vivos.

Claro, isso pode mudar a depender da região, mas meu vô preparava assim. Ele deixava a comida preparando, e ia ver alguma outra coisa.

Isso talvez pareça idiota. Fazem parte da cadeia alimentar. É comida, então você talvez nunca tenha pensado ou refletido sobre.

Todavia, eu, imerso em tédio, resolvi observar o processo de combustão sob a panela. Pode parecer bobo, mas sempre tive interesse em ver a chama queimar.

Puxei a mesa para perto do fogão, posicionei a cadeira de forma confortável e deitei minha cabeça na mesa, desfrutando da beleza das labaredas.

Mas minha história com o fogo não é agora. Devo deixar para outro momento.

Eu fiquei longos minutos admirando, com o mais profundo interesse. Mas então...

Tec

Tec

O barulho da pata tocando na panela.

De repente, todo o membro do animal, do caranguejo, estava para fora. De alguma forma, ele havia feito seu caminho por uma parede 6 vezes maior que si, sendo fervido vivo, na tentativa de escapar.

Naquela época eu nunca pensei sobre, mas isso me despertou um interesse. Curioso, fui para perto do fogão. Por ser pequeno, tive de levar a cadeira e subir para ver melhor a situação.

Foi quando eu vi.

Dentre a quase dezena de caranguejos na panela, um estava tentando fugir. Ele usava os outros que estavam parados como escada, subindo pouco a pouco, caindo e levantando, sempre em direção a saída.

Havia três tipos de animais ali dentro.

-Os que ficavam se mexendo, batendo na parede da panela;

-Os que estavam parados, apenas esperando o inevitável destino;

-O caranguejo usando dos outros para tentar sair vivo, lutando até o último segundo.

Isso me afetou profundamente.

Esse pequeno acontecimento mudou meu ponto de vista. Também, me concebeu um desejo... estranho. Não que “estranho” seja negativo, claro.

Posso comparar aqueles três caranguejos a humanos.

O primeiro tipo seriam aqueles que empurram os problemas para frente. Têm desejos, mas não se propõem a busca-los. Não se esforçam.  Apenas são. Trabalhadores que se contentam com pouco, escravos de grandes monopólios. Deixam o vento levar, não criam seu próprio futuro.

O segundo tipo aqueles que desistiram da vida. Drogados, bêbados, apostadores compulsivos. Só vivem pelo agora. Apenas respirando. Sendo componentes do ciclo do oxigênio.

O terceiro tipo são os que farão de tudo para atingir seus objetivos, podendo varias seus meios. Talvez um caminho de paz, talvez um caminho de enganação. Fato é: eles farão o possível para prevalecer. Concluir seus anseios.

Sendo assim, qual a diferença dos caranguejos, ou melhor, qualquer animal para humanos?

Nenhuma.

Os três são animais da mesma espécie, de idade aproximada, sem consciência o suficiente para se destacarem em nada de específico. Dos humanos se pode dizer que possuem um raciocínio lógico, mas como disse, não afeta tanto. Sendo assim, o que diferencia os indivíduos de uma espécie? Por que alguns têm sonhos pelo qual morreriam, enquanto outros jogam a vida fora?

E então, eu cheguei a uma resposta:

Experiências.

Fascinante, não?

O presente é completamente composto de cada pequeno detalhe do passado. Tudo importa. Desde o mais poderoso rei ao mais fraco escravo, todos foram necessários para nosso presente atual.

Eu despertei interesse em descobrir do porquê indivíduos diferentes agem de formas diferentes sob uma mesma situação. Eu anseio em descobrir isso. Todavia, isso se expandiu. Como uma civilização nasce? Como um reino é destruído? Como um soldado raso evolui a comandante de uma nação? Tudo formado por pessoas. Cada pequena variável levou o passado ao presente. E o presente e suas mínimas decisões levarão a um futuro.

Nesse dia soube que esse era isso o que queria para mim. Acho que estava próximo de querer ser algo como um “antropólogo”.

Também, sem parecer egocêntrico, mas eu me colocaria no “terceiro tipo de caranguejo”

—Sem escapar, danado!

Fss...

Algo caindo de uma altura considerável dentro da água.

Pinga.

Pinga.

O caranguejo, que estava a poucos centímetros de continuar vivendo, caíra do topo do balde. Meu vô o acertou com um martelo para caranguejo, com bastante força, por sinal.

Quando fui olhar para ele no fundo da panela, estava com a casca rachada. Não se movia.

Estava morto.

—...

Isso também representava a sociedade. Quer queira, quer não, nem todos que se esforçam ao máximo atingem seus objetivos. Alguns param no caminho devido uma força maior.

Mais tarde, o balde caiu no chão, e alguns caranguejos escaparam por um buraco na casa.

Naquele dia, eu não comi caranguejo.

Daquele dia em diante, eu não comi mais caranguejo.

Não me entenda mal. Não sou do tipo que comer carne seja errado. Ainda curto bastante uma picanha.

Eu apenas senti que... era uma forma de prestar respeito a alguém que me ensinou tanto.

Não vejo disparidade entre as formas de vida.

No entanto, ainda assim, vejo uma diferença considerável entre humanos e os outros animais. Algo que me faz estar "gostar" mais da humanidade em si.

Não tenho como descobrir o passado de um animal que não pode falar ou indicar o que vivera. Com humanos, já se torna possível.

Por isso tenho apreço tão grande por essa espécie em específico. Busco entender como e porquê cada um se tornou o que era.

Esse pensamento guia minha vida.

Eu aprecio a humanidade. E quero descobrir o que a faz ser o que é.

Seus pontos negativos e positivos.

Seu ser.

...

Espero que tenha aproveitado. Era isso que queria, certo, destinatário?

Não se preocupe, estou cheio dessas histórias, e serão como essa que leu há pouco. Todo meu passado virá para você.

Eu não sou infinito.

Nem minhas histórias.

Aproveite.



Comentários