Bom Demônio Brasileira

Autor(a): Trajano


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3: sonho

Sea acordou em um lugar estranho vazio em breu. Estava deitado sobre o chão, por mais que não o conseguisse ver. Uma pequena sensação de nostalgia passou pela mente, porém não conseguia descobrir o porque disso.

Esse local passava uma sensação estranha. Cada segundo nele aumentava o medo e pavor que o jovem sentia. Terror. Estava enraizado em seu corpo.

Inúmeros gritos ecoaram pelos confins desse universo de trevas. Por mais que trouxessem desconforto e temor, sentira uma sensação de alívio por não estar mais solitário. No entanto os deméritos se mostraram superiores no fim. Sentia o ar gélido percorrendo sua pele e espinha, deixando os pelos eriçados.

Era assustador, insuportável. Simplesmente queria paz. Desde pequeno tinha esses sonhos tenebrosos, não fora sua escolha. Tudo que queria era ser perdoado, mesmo que não soubesse o porque ou por quem.

O suor escorria incessantemente. Suas mãos estavam tão aguadas que sequer conseguiria manipular objetos de tão escorregadio que se encontravam. Não sabia o quanto dessa situação era real ou imaginária, contudo podia logo vir a sofrer de desidratação.

Um barulho de porta ecoou. Sua mente entrou em mais confusão, perdeu-se em si mesmo. Encolheu em meio ao universo de incertezas que o rodeava.

Uma discussão chegou aos seus ouvidos. Duas vozes gritavam uma em direção a outra. Uma era maléfica, mesquinha e arrogante. Já a outra... uma límpida, clara e principalmente reconfortante.

Despencou em complicações. Não sabia onde estava nem o que fazia. Só queria sair de lá o mais rápido possível. O estresse imposto sobre si... o peso sobre seus ombros estava aumentando ao ponto de pensar estar segurando o mundo inteiro em seus braços.

Perto do colapso a discussão cessou. Tudo se aquietou, todavia assim como o bem vem, ele se vai. Mais uma vez seu corpo ficou trêmulo. Uma sudorese incontrolável tomou conta de seu corpo, forçando-o a chegar em uma única conclusão.

Sentia-se como à beira de um abismo, e se fosse assim...

Seus olhos negros perderam o pouco brilho que os tornavam ‘normais’. Escureceram ao ponto de serem a própria inexistência de luz.

Dentro de si, no seu interior mais profundo, havia algo tentando reconfortá-lo. Algo de uum tempo longínquo, mas nesse momento não se mostrava suficiente. Estava com dificuldades. Esse pensamento por si só lhe trouxe melancolia.

E quando estava prestes a pular...

Como se em resposta aos seus apelos uma mancha azul se estendeu na tentativa de ajudá-lo, indo até sua mão para reconforta-lo.

Cercado por uma docilidade tanto por dentro quanto por fora pôde se acalmar.

...

— huh...?

Dado a claridade excessiva do sol, Sea foi forçado a acordar.

Notando que o ‘pesadelo’ havia acabado, deixou escapar um suspiro de alívio.

Ele se sentia como de costume. Estava um pouco desnorteado, mas precisava de tempo para o cérebro religar após acordar. Levou a mão à cabeça como se tentasse checar seu próprio estado. Cuidar de si...?

— Princesa...?

A palavra veio de forma automática ao se recordar do dia anterior. O sol já chegava perto de seu pico, aparentemente. A realeza deveria vir de manhã, assim imaginou. No entanto não estava aqui, na verdade quem se encontrava no recinto era...

— Bom dia. — a mesma garota do dia passado, sentada sobre a cadeira da escrivaninha deslocada para o lado da cama. — Ou boa tarde seria mais apropriado...?

Sea tirou o lençol de cima de si e virou o corpo para ver melhor a moça ao seu lado. Ela estava tão calma quanto o dia anterior, com um rosto estranhamente cansado.

— Ah... não vai dizer que dormi demais e perdi o encontro com a princesa, né?

— Não... quer dizer, sim. — ela tentou fazê-lo se sentir melhor, porém rapidamente se corrigiu. — Mas não teve problema. Falei com a princesa sobre seu estado e ela pediu para que o rei lhe explicasse toda a situação.

Mentira.

Mesmo sem mudar o rosto ou imperfeições em sua voz Sea pôde dizer que ela mentia. Não era burro, ao menos não tanto. Os sonhos são bastante afetados pelo exterior, e pela situação podia adivinhar o que realmente aconteceu.

A discussão em seu sonho, a fadiga do outro dia, toda a confusão mental e sensação de paz... aquela maldita sensação de paz que sempre sentira desde a infância...

— Mas sério, doze horas? Caramba, nem eu que sou preguiçosa durmo tanto. Imaginei que você tivesse uma mentalidade de criança, não um bebê.

Sua última fala veio com uma certa irritação e superioridade ao mesmo tempo. Sea quase pensou em responder, no entanto logo notou que ela simplesmente queria mudar de assunto... como pensava, algo havia acontecido enquanto dormia.

— Ela foi numa boa...? — não sabia exatamente o que aconteceu, e se a serva não queria explicar... tinha um motivo. Preferiu não a pressionar. — Gente boa. Ao menos não me acusou de estu... — quis fazer mais uma referência para voltar à normalidade, entretanto sua atenção se perdeu.

A ruiva ao lado desceu o olhar com uma face desgostosa. Foi um movimento rápido e quase imperceptível, porém seu silêncio a entregou. Logo voltou ao normal, só que Sea seguiu o olhar dela para baixo e... não encontrou nada. Imaginou então que estivesse com algo a mais em mente.

E foi quando notou...

— Huh...?

— Ah!

Quando sua visão caiu para baixo viu sua mão levemente sob a da empregada. Bem que estava tendo uma sensação muito boa lá para estar tudo normal... Assim que soltou um ruído de dúvida a garota retraiu a mão em desespero.

— O que você fez...? — sua voz saiu rouca e seca.

— N-não é nesse sentido... você só aparentava estar um pouco mal, e nem meu gatinho estava ajudando, então eu só...

— Por quê...?

— Hum?

Antes que pudesse se explicar apressadamente Sea a cortou.

Não, não a havia feito parar... as lágrimas que escorriam de seus olhos o fizeram. A serva ficou tão assustada que perdeu as palavras. Sua boca abria e fechava de forma irregular tentando encontrar o que dizer.

Talvez fosse confuso para alguns, mas para Sea era tão claro como os olhos que o encaravam. Desde pequeno tinha problemas a dormir, dores de cabeça e pesadelos... muitas coisas estranhas o rodeavam, e o cuspe de sangue não era a única delas.

Em alguns momentos se sentia bobo e desorientado, sendo acompanhado de uma paz inexplicável... uma sensação de prazer imensa que o rodeava como um abraço gentil de uma mãe.

Por algum motivo essa mesma sensação pareceu emanar da garota em sua frente. Enquanto dormia, imerso em preocupação, medo e confusão pelos acontecimentos recentes — invocação e pressão. — ela o segurou a mão. Também deve ter feito algo a mais para que não  lhe acordassem, resultando no pesadelo nefasto de mais cedo.

Retraindo sua mão para perto de si ele voltou seu olhar para a íris da garota, tendo um olhar fixo e severo. Contraditoriamente, ela se sentiu desconfortada, e virou a cabeça.

— ...— ele tentou falar algo, mas a voz não saía.

O choro em sua face não permitia que algo além de lágrimas saíssem. Tudo que precisava era isso. Chorar um pouco às vezes é tudo que se precisa...

Abruptamente, mais uma vez, lágrimas começaram a percorrer seu rosto, como se houvesse acabado de tomar mais um choque.

Ao notar o choro incessante do invocado a serva não soube como reagir. Não foi preparada para isso. Claramente entrou em um pequeno estado de espanto., principalmente por não saber o motivo de Sea quebrar aos prantos.

— Obrigado...

Não compreendia de forma racional, porém lá no fundo sabia que... Não eram lágrimas de tristeza, dor ou aflição. Muito menos sabia qual sentimento tentavam expressar.

Sea deixou um braço erguido em frente aos olhos na tentativa de enxugar o líquido que descia de forma imparável. Ao lado a ruiva simplesmente ficou vendo aquela cena enquanto dava tapinhas nas costas do garoto.

...

— Hur... Hur...

— Quando te comparei a um bebê não foi na intenção que agisse de acordo....

— Não sou um bebê.... E não tô chorando...

— ...

Era impossível negar nesse momento, entretanto ao perceber que estava deliberadamente chorando em frente a uma garota sem motivo seu ego — já ínfimo — não o permitiu admitir. Por mais que dessa forma fosse ainda mais vergonhoso.

— Sabe, eu não recebi treinamento para isso. E não está na minha folha de pagamento... — como ele parecia ter se acalmando, ela resolveu ser a primeira a voltar ao normal. — Você quer falar sobre ou...?

Ainda tentou perguntar se ele aceitaria falar sobre o porque daquela situação mas negou com a cabeça. O choro já cessara e o que faltava passar era só seu rosto vermelho e a vergonha.

— Bom, acho que agora é hora para falar, mas o rei quer encontrar você.

— !? Você fala agora?

— Seria melhor chama-lo enquanto você interpretava uma adolescente do fundamental assistindo uma peça melodramática?

— ...!

Uma ótima indagação a qual não pôde negar. Seria melhor adiar a se encontrar daquela forma. Tinha o sentimento de perca mesmo sem ter disputado.

A serva se levantou, indicando estar pronta para sair. Sea demorou um pouco mais para a seguir, e por tal motivo ela o atiçou:

— Quer que eu segure sua mão para não se perder?

— !

Seus olhos fecharam em raiva com a zoação logo após um momento delicado. Porém a empregada atingiu seu objetivo e ele se apressou, por mais que com dificuldade já que ainda enxugava os resquícios em seu rosto.

A ruiva cruzou os braços e lembrou:

— Ah, o dia hoje vai ser bem cheio, não sei se você foi avisado sobre vir para cá, ao menos não aparentava. Mas terá a Escolha de Títulos no fim da tarde e a... nomeação à noite. — o último evento falou com certa dúvida. — Então, bem, vou ficar envergonhada de ter que ir com você nesse estado. O quarto tem banheiro pra usar, viu?  

Sea lançou um olhar furioso, entretanto não falou nada. Virou a cabeça e pegou uma toalha no armário. Antes de entrar no banheiro fez um último comentário.

— Não sei exatamente qual nossa relação de autoridade, mas realmente espero que não tenha agido assim com altas autoridades da realeza... — ele quis lançar um xingamento ao fim, no entanto não encontrou forças para lhe dizer.

— Acredite, você não é o primeiro que acompanho. — sua expressão era de vitória. — Também te amo. — esse comentário foi em resposta ao xingamento que apenas ficara na mente.

O pedido de banho era tanto para deixa-lo apresentável quanto para fazê-lo limpar o rosto. A ruiva pensou em tudo, e ao menos esse último motivo não foi captado por Sea. Sua única ordem foi trazer o invocado para conversar com o rei no quarto, o qual realmente havia se apresentado enquanto Sea se encontrava desacordado.

Mas essa é uma história para outro momento...

Sea entrou no banheiro.

...

— Quando falei ‘tome seu tempo’ foi no sentido ‘ se torne apresentável, só vai logo’, não foi para se sentir em casa!

Logo após o fim do banho essa foi a primeira coisa dita entre os dois. Sea havia ficado por quase uma hora, um tempo bem além do necessário.

— Minha casa não tinha água quente, beleza? E aqui tem uma banheira. Uma Banheira! Posso morrer amanhã então vou aproveitar minha vida hoje.

Com a explicação racional a garota desviou o olhar suavemente. Dentre os dois com certeza era ela quem mais gostava de banhos, e por isso se sentiu hipócrita. Decidiu deixar o assunto de lado, disfarçando esse sentimento com um pouco de irritação.

Ela saiu do quarto sem dizer nada, apenas esperou pelo seu companheiro para guia-lo até o quarto do rei.

— Sabe, meio que tô com a impressão de ter enrolado muito minha situação.

— Sim, a conversa com o rei era ontem. Obviamente você enrolou.

— ... — se essa era a forma como uma serva tratava todas as autoridades, Sea se perguntou como a cabeça da garota em sua frente não fora cortada.

Não... bem no fundo ele sabia. Não importava o que ela falasse ou respondesse, no fim sempre emanaria uma energia estranhamente positiva da qual te faz querer não desapegar...

Sea chacoalhou a cabeça para negar esse pensamento e saiu pela porta do quarto.

Abriu os braços como se apresentando a si mesmo. Seu cabelo estava alinhado, diferente do outro dia. Também aproveitou para passar vários cosméticos pelo corpo no intuito de causar uma boa impressão com quem quer que fosse encontrar.

— Então, como tô?

— Sim.

— ...

Ele quase soltou um murmuro de interjeição, porém quando se responde uma pergunta aberta com um sim ou não é porque a pessoa não quer responder claramente. Pela escolha dentre sim ou não ter sido a positiva, imaginou ter tido a aparência aprovada pela serva.

Ambos partiram em direção ao encontro com o rei.



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