Volume 1 – Arco 2
Capítulo 19: Mil anos em Marte!
A nave os deixou no vale de Baco, que ficava a 479 quilômetros do bunker, entre as montanhas de solar-13 e lunare-4, as gêmeas listadas por Orfeu de Alhas, cientista comentado por Um no decorrer da viagem como um grande geólogo do novo mundo. A viagem demorou menos de uma hora, descendo a cordilheira qual separava o trópico meridional do polo sul de Marte, até a base militar 67 — o último entre os distritos unificados e as terras eclesiásticas dos planaltos vermelhos.
Pela janela lateral da nave, Dois Meia observou os soldadinhos, minúsculos, com suas rotinas diárias, correndo, espreitando, comendo ao ar livre nas mesas de campanha ao ar livre ou capinando lotes de terra em que mata crescia além dos tornozelos. Máquinas de guerra recebiam manutenção cuidadosa de jovens com rostos pardos, do qual, curiosos, acompanhavam a nave de motor ionizado descer em círculos até a pista improvisada da base.
Não havia piloto, então quando a porta se abriu e a escadinha de três degraus se conectou com a base da pista, Dois Meia nada disse, assim como nada queria dizer para ninguém.
Todavia, militares de alta patente, como o militar que ficou sabendo como o marechal Humberto de Arões, assim como os majores Tenácio Arquídeo, Ernando Arthure e Michael Wood, além dos tenentes-brigadeiros Mikhail Ornev, Akin Kito e Zhabev Litôvic, os esperavam pacientemente na pista de pouso, trajados de uniformes cuja as insígnias do ministério de terraformação de Marte se via, além das insígnias do amparo[1], as medalhas da batalha da planície de Elysium e da reconquista da fábrica de gases número sete. Dois Meia não queria dizer nada para eles também.
E aqueles cumprimentos, aqueles sorrisos, aquelas faces paralisadas em respeito — seus tenentes portavam fuzis foscos como se houvesse alguma hesitação, seus sargentos carregavam os instrumentos da banda marcial e a bandeira final da terraformação humana[2]. Um saiu da nave logo depois de Dois Meia, e aqueles militares não permitiram seus olhares se fixar nela, mantendo a pose de um homem de armas, de um fuzileiro, observando o nada com o mesmo olhar impassível — aquelas faces marcadas de disciplina auto imposta.
A banda tocava, parecendo a Dois Meia quase como um insulto. Filmes com militares salvando o dia foram vagamente lembrados, filmes em que mulheres nuas desonravam um homem disciplinado daqueles. Ele riu. Aliás, também não entendia o significado daqueles militares. E pior, olhando eles desse jeito, sentiu como se esses bonecos fossem a coisa mais patética já concebida. Estava nervoso, por outro lado, fazia tempo que não via tanta gente reunida.
E eles falavam sobre quão bom era vê-la. E eles falavam sobre um agradecimento formal para compensar a concessão daquelas terras cuja base fora tão útil para uma guerra já vencida — e eles falavam que o futuro era belo, que as planícies estavam lindas, e que uma vegetação primária crescia e que os esforços no polo norte e sul não foram em vão, que o centro de Marte cresceria como um dia foi na Terra, com suas florestas tropicais cheias de cores — e Dois Meia ficou pensando sobre como eles poderiam saber sobre a Terra — e Um falou que ainda era cedo, sendo perseguida por aquele batalhão de pessoas, com o sol tão belo e o vento fazendo seu cabelo ondular por trás daqueles óculos escuros — seu rosto entediado, seus lábios que eram um bico desinteressado... o que Um parecia para Dois Meia com todo aquele controle, todo aquele jogo de cintura... o que Um se traduzia naquele momento, dizendo que não precisavam escoltá-los, que era preciso só uma coisa, cuidar da nave e manter os servidores estáveis.
— Mais tarde conversamos com menos pressa — ela disse — tenho assuntos pendentes.
— Não! Que isso: a senhorita é mais do que bem-vinda. — o marechal respondeu com uma voz austera, pronunciando lentamente. — tudo que precisar, Helena, até os fins dos dias.
Um 4x4 da estatal CitzenM foi cedido, e eles dirigiram bosque adentro, no bosque que circundava a base, descendo por quase uma hora a encosta do vale. Um estava no volante e a estrada era bem asfaltada, tendo árvores protegendo as duas encostas. Na rádio, um comentarista político falava sobre as consequências de transferir a Megatorre 5 para Human’Vein, explicando que nenhuma razão traria luz a esse absurdo, acrescentando também que um outro elefante branco havia surgido no subdistrito A. Ele continuou dizendo:
— É impressionante! Vocês devem concordar comigo: o descaso que vemos tendo com a baixada de Huygens[3] é um absurdo. De lá vem saindo artistas, vem saindo filósofos, cientistas... tudo isso sem recursos. O poder das redes sociais é um alento, claro, para expor ao mundo essas pessoas. O problema é que não pode ficar assim. Veja: foi-se gasto meio trilhão de moedas replicadas primárias nesse edifício; um gasto que tentam justificar explicando os servidores fora de Marte. Só que, veja bem: com meio trilhão de moedas replicadas primárias, simplesmente conseguiríamos levantar 47 escolas de última geração no Subdistrito F e E. Hellen Point, Guarantee, Mary Queen (ou Redneon como o povo vem chamando desde então, o que por si só é preocupante), Kant’s Pin, Iron Gate... estamos querendo outra rebelião? Outra guerra? Por que é isso que vem parecendo. A 100 anos atrás haviam apenas 2 distritos: o distrito de reação humana (um nome péssimo, aliás... que reação é essa?) e o distrito dormitório. No fim, essa descrição que nunca contemplou ninguém, deixou de existir e veio os novos distritos e os distritos velhos, títulos que pouco faziam sentido também. Nós repensamos essa redistribuição geográfica, nessa identificação social com o espaço que nós moldamos, apenas a 50 anos atrás, quando as instituições se descentralizaram pela primeira vez das Megatorres, o que por si só foi um passo importantíssimo, pois esses nossos agentes públicos, essas pessoas que, em tese, representam toda uma população que desde muito tempo vem crescendo longe de toda pompa de Human’behavior, de Ashes, de First Tree, esses agentes cujo seus ancestrais não são réplicas (isso sempre foi amplamente divulgado), cujo seus ancestrais não nasceram pra servir os servidores públicos que não são servidores, que são agentes enviados até Marte para salvar gente da Terra, pra salvar a humanidade!; esses agentes dos quais hoje observa com apreensão uma Megatorre construída sem propósito, uma cidade feita para mostrar nossa potência, na nossa capacidade de criar; esses agentes que veem pessoas já insatisfeitas, pois elas produzem, pois elas fazem de tudo por essa nação (apesar de Marius Orfán odiar esse termo); esses agentes públicos, esse pessoal que trabalha no cartório, nos postos de saúde, que trabalha como vereador, ou pequenos líderes locais desesperados, professores, que gritam, gritam e gritam. E vocês podem menosprezar esses pequenos servidores públicos, esses pequenos agentes liberais, chama-los de vagabundos. Mas me diz, me diz: onde está a matriz da Níquel Power? Onde está a principal fábrica da East Taurus, as linhas de produção da Transport Mars, da Mars Arms, da C²miles, da VariumHeal? Mary Queen tem quase 20 por cento do seu metro quadrado reservado para empresas privadas. Hellen Point tem um terço da sua população empregada na indústria pesada, de bens de consumo e de bens duráveis. E isso com um boom demográfico que dura a mais de 20 anos. Ano passado nasceram 35 milhões de crianças... 70% dessas nos subdistritos dito subdesenvolvidos. Temos como empregar tanta gente? Difícil... ao mesmo tempo que esses subdistritos também tem as taxas de mortalidade mais altas, de uma forma que parece haver uma guerra civil. Na verdade, nem a guerra que lutamos a mais de vinte anos parece ser tão mortal quanto a guerra de facções que domina desde Giant Tree até os distritos não nominados, nas terras cultiváveis desregulamentadas (que, por grande equívoco, acho eu, que o são. Pode ser que para proteger os latifúndios e as empresas do ramo alimentício, mas quem sabe). E as drogas enchem as ruas dessas cidades, desses subdistritos, e a adolescência parece ser cada vez mais prematura, não há futuro, não há esperança! Quer dizer: HÁ! Mas a esperança deles prefere investir meio trilhão numa estrutura inútil, numa estrutura feita dos ossos e carne dessa gente que parece não ter importância alguma nesse novo mundo que fazemos! E quer saber, que o seja! O problema é que vai haver um dia que esse povo vai se levantar, e o que sobrará para um será nada mais do que o ódio e a compaixão; enquanto ao outro, todas as batatas! É um fervor criado por nós contra nós mesmos. Um fervor evitável, que nos levará a mais cem anos de guerra!
Dois Meia observava as nuvens quando Um trocou a rádio. O dia estava lindo, e ela tinha um sorriso distinto naquele 4x4 sem teto, um sorriso coquete, um sorriso levado por más intenções que ao mesmo tempo emanava uma pureza delirante. Era como o sorriso de uma criança prestes a fazer uma pegadinha, uma pegadinha que ele temia, assim como temia ela.
— O que nós viemos fazer aqui? — perguntou.
— Posterguei isso mais do que devia, Dois Meia. Você verá em breve. Como se diz? É a sua graduação! É o seu último dia nessa coisinha doente que temos entre nós.
Seguindo através do vale, eles acompanharam o curso não asfaltado que margeava um riacho cujo descia serpenteando entre as árvores transgênicas da família dos Fabaceaes tropicais, das Euphorbiaceaes da extinta américa do sul, e das Bignoniáceas, por um percurso estreito e não confiável, além dos edifícios militares e pistas de pouso, cheio de barrancos e quedas íngremes. Um perguntou se ele sabia o motivo qual a fez acolhê-lo desde o começo.
— Falta de pessoal, não sei. Acho que você ficou curiosa em saber o porquê daquela maluca ter feito tanto caso comigo. Não que seja importante. Você sabe a verdade. Eu não sou especial.
Um parou o 4x4, tendo um sorriso meio cansado no rosto, um que não pensou em ver — um sorriso de simpatia que parecia ser também para abraça-lo, de algum modo.
— Pessoas não são especiais. O que elas fazem que são. Ser humano é agir. Mas não é disso que estou falando... você... você é uma incógnita. Esperei, e tive receio, medo, mas esperei que você enlouquecesse completamente naquele bunker vazio. Queria que a dissociação da androide lhe tornasse não mais que um servo capado. Mas não é bem assim. Você é especial, porque apesar de tudo, sempre toma a decisão mais covarde possível. E isso é uma coisa que poucos do meu ramo são capazes de fazer. Na verdade, em todos meus anos de vida, vi poucas pessoas com essa coragem. Você matou um homem com Anne, sem saber de nada. Depois, matou um homem por si mesmo, sabendo justamente quem ele era. Todas suas ações sempre te levam a essa ideologia bizarra que se formou na sua cabeça, nessa quimera ética, da qual, seja lá o porquê, sempre faz você ser o único a se beneficiar de toda essa loucura.
O curso os levou para uma galeria de cavernas iluminadas com lâmpadas fluorescentes e refletores. O 4x4 parou num estacionamento subterrâneo, com espaço para dois lugares. Era militar, com uma guarita vazia. Não havia guarnição também, por mais que a base subterrânea fosse espaçosa e estivesse mobiliada com estantes industriais, parecida com um estoque de empresa, e mesas brancas e cadeiras de escritório. Equipamento eletrônico se via também, com CPU’s luminosas e servidores portáteis. Além do mais, janelas e rachaduras não comprometedoras que dava pra uma vista do vale ao restante da cadeia de montanhas, se via sem ter que andar muito.
No fim, Dois Meia se sentou junto a Um, numa mesa diferente, com comida servida, povoando com pãezinhos e frios, além de bebidas geladas e frutas.
— Está pensando no que eu disse?
— Sim. — disse enquanto tomava para si um pão com duas fatias generosas de queijo e presunto. — sou desprezível. Mas diferente do que disse, não me sinto especial. Eu sou um ser humano patético como todos os outros, e cometo atrocidades em benefício próprio assim como todos os outros. A diferença de mim para um Marius Orfán é simplesmente que eu mato em troca de uns trocados, ao mesmo passo que ele mata milhares todos os anos por controle, para reafirmar o poder, e tudo isso com a desculpa que é necessário para o desenvolvimento humano. Shinji Pédria criou moedores de carne, fábricas de suicídio ambulante, e eu não o vejo como se fosse alguém especial. Júpiter Apple, que que ele fez? Ele mata estupradores em troca de favor, ao mesmo tempo que manda seus traficantes estuprarem filhas e mulheres das facções rivais para inflar disputas! Que disputas? Disputas políticas claro, por que ele é político. Então, não! Eu não sou especial por ser uma escória. Eu faço parte, eu sou apenas um aspecto dessa coisinha doentia que se desenvolveu aqui em Marte.
Um não tinha expressão. Incomodou Dois Meia ser visto daquela forma. Parecia como se estivesse nu. A sensação no seu estômago era de azia. Ela se virou, pegou do bolso um computador de mão, digitando alguma coisa que pareceu ser mais importante que todo aquele drama de Dois Meia. Isso o irritou mais ainda.
Não ligou, claro. No silêncio, comeu um pouco de tudo. Queijo, presunto, frutas como morangos, uvas e lichias. Bebeu chá mate com guaraná também, com pães doces. Um continuou a todo momento inexpressiva, trocando mensagens. De todas as formas, quando Dois Meia pouco parecia se importar mais e havia se levantado para observar as estantes vazias e empoeiradas, escutou ela dizer:
— Você se compara com homens de grandeza, afinal... isso é engraçado. — e foi a última coisa que saiu da sua boca por um tempo.
Estava puto. Estava se controlando. O café da manhã te fez calmo, por outro lado. Tão calmo e tão suave que lembrou-se e perguntou a ela depois, quando observava o cair das três Marias de Lantlôs[4] em uma daquelas estranhas janelas sem borda da caverna:
— Quem é Franker Médzsci, ou Méri, ou sei lá?
— Por quê?
— Sofia quase me matou quando citei esse nome. Eu só estou aqui por conta dele.
Um guardou o computador de mão no bolso. Olhava seriamente para Dois Meia.
— Ele foi importante, ao seu próprio modo.
As cachoeiras chiavam como em uníssono, parecendo querer levar eles dois dali — entediados vendo o verde das árvores tropicais balançar através da fresta que se agigantava naquela caverna. Ela explicou:
— Franker foi um bilhão de coisas antes de ser quem você viu ele sendo.
Parecia certo.
Ficou olhando, trajado naquelas calças justas, vestido com aquela camisa branca apertada, sonhando com o relógio reluzente e com o sorriso branco que eram agora seus dentes. Ficou olhando como se olhasse para um fantasma, querendo a satisfação além do medo, que ele diga o que quer, quem ele é e qual seu segredo.
Perguntou:
— O que nós fazemos agora?
E ela respondeu:
— Mil anos em Marte...
Não entendeu de primeira, depois pensou e percebeu que havia ali um significado que antecedia todas as outras coisas. Ela continuou:
— Mil anos em Marte, e até então realizamos pouco ou quase nada. Eu sei que você não sabe, mas eu vi aqueles edifícios eternos se estendendo de horizonte a horizonte e colinas verdes surpreendendo entre casas e estradas. Eu vi com esses olhos que te encaram, a Amazonia em seus últimos suspiros, a tundra úmida, a floresta de pedra verter no agito e o gelo acima do mar derreter e escorrer — e escorrendo, vi tsunamis em Paris e Londres, Cabo Verde sumir assim como os países insulares da América Central e Oceania; ventos levar pra longe pessoas e animais; um milhão de coisas, mil anos atrás.
Esse era o primeiro parágrafo do manifesto de Marte. Um manifesto que definia os passos dos mil anos de colonização de Marte antes o retorno da terra.
— Dois Meia, você nasceu num contexto que se difere de tudo já visto na história da humanidade. Você é fruto de um processo de replicação e explosão demográfica artificial. Seus pais fodiam com o cheiro de feromônio, eram manipulados pelas mídias hegemônicas, e nem o Deus deles foi capaz de livrá-los dessa coisa social que fizemos, dessa coisa cujo objetivo era um só. Seus ancestrais são réplicas nossas, criadas, não sei, em quinhentos e alguma coisa, em quatrocentos... não lembro... eu sei que primeiro foram uma dúzia, depois um par de milhar... quando chegou a um milhão, nós paramos, depois voltamos, e aí tivemos uns 6 milhões de réplicas, réplicas mestiças, uma mistureba entre genes, quase nossos filhos. E eles sempre eram inferiores a nós, você é inferior a mim.
Dois Meia observou os nós de seus dedos. Eles estavam russos, a pele estava grossa e suas unhas estavam sujas, com coágulo nas bordas.
Ela disse:
— Vocês eram tão inferiores, que tomaram Deus não como uma justiça, um Deus abstrato, não cristão — que não é Buda, nem Allah, nem qualquer outro, seja africano, seja de uma tribo diminuta, ou de uma população inteira de quase um bilhão. Vocês são tão inferiores que acreditaram num Deus que também é um homem. Num profeta, como ele diz, de toda humanidade.
O dispositivo holográfico ligou repentinamente, trazendo nos seus feixes a precisa imagem de um homem. Dois Meia tirou os olhos da queda d’água e observou as luzes repentinas.
— Elijah Oliver-Pine é o nome do filho da puta. Profeta arrombado. Ele, sozinho, organizou todos esses descendentes de réplicas e os levou do Planalto de Méri até as baixadas ingovernadas em 600 e alguma coisa e depois, depois quando dizemos que ele estava errado, quando suas atitudes e reacionarismo lembravam a sede política de um nazismo despudorado, e pedimos justiça pelos crimes cometidos pelos membros daquela organização chamada eclesiásticos, ele pegou armas! Não haviam armas nos distritos até esse merda começar essa brincadeira de Deus! Já era 730, 740, eu não lembro direito da data... — E ele atacou distrito afora, e invadiu o ministério final, e as fábrica de gases! E matou originais cobrando de nós isso e aquilo. A prisão de Eurídice Arles por homossexualidade[5], a prisão de Orlando Axer e sua execução por crimes contra a humanidade, prisão de não sei quem, de tantos, que pensamos realmente se nossas leis eram tão rígidas contra tudo e e contra todos. E isso foi idiotice, porque o que precisávamos mesmo não era repensar nas leis que nos regiam desde antes da primeira Megatorre, que nos regiam desde que observávamos Marte da primeira Arca, na Gateway-0 em órbita além do cinturão de Deimos[6]. O que Elijah queria era o fim coletivo de tudo que representava nós mesmos e mais nada. Por isso pensamos em ter armas, em lutar uma guerra. E essa guerra dura o que, mais de 50 anos. 20 oficialmente. Em 730 com o amparo, com a instituição do ministério de defesa civil, com a ascensão das empresas privadas de segurança pública, com o asseguramento da extração dos commodities. E nós não estamos nem perto de vencer essa guerra! Porque Elijah tem o completo controle do centro de Marte e é tratado como um novo messias. E nossas tropas não conseguem durar sequer duas semanas nessa porra porque os ventos solares ainda castigam uma parte considerável do território de Arabia Terra e Elijah aparentemente conseguiu instituir uma política militar mais efetiva que a nossa, e tem estatais de segurança pública mais efetiva que as nossas, e seus commodities são assegurados com equipamento roubado da cordilheira de Phillipe, das porras das nossas minas do centro de Marte... de Valle Marineris, de Sinus Sabeus — então... então... — os olhos de Um estavam em sangue vivo, seu rosto estava quase roxo e seu punho cerrado sangrava com o aperto. Dois Meia a observava com uma curiosidade ímpar. — Então decidi enfim assassiná-lo como o covarde que ele é. O fim da guerra, Dois Meia, vai fazer a opinião pública ficar do nosso lado, esquecer alguns erros que cometemos e focar no progresso da humanidade.
— Por que nunca pensou nisso antes? — perguntou.
— Quem disse que não? Ele é o meu objeto de obsessão número um, Dois Meia. Mas como se mata um profeta? Ele é a inspiração de mais de duzentas milhões de pessoas. Foi responsável pelo maior êxodo já visto na história desse planeta. Ele é um Deus. Matá-lo será torna-lo um mártir. Não... não... eu tenho que estripa-lo, coloca-lo numa fossa: fazer com que seu povo o escarre e o coloque a sete palmos debaixo do solo. E eu descobri como fazer isso. Esse período em que estivemos longe foi surpreendente, porque sei como mata-lo, sei como destruir seu legado. E você será a peça principal desse meu xadrez que por quase meio século eu venho montando na minha cabeça.
Dois Meia observou os olhos de Um que se agigantavam, parecendo duas lanternas, quentes como uma tocha, que o enlouquecia com a própria loucura dela. Perguntou sobre como seria, o que ele faria. E ela disse que nada. Que ele não faria nada. Uma versão melhor dele mesmo faria, uma versão superior, uma versão capaz de tudo.
— E você não tinha nenhum outro alguém? Anne? Pelo amor de Deus! Eu só conheço a Anne? Ela não tá disponível?
— Não. Ela não seria boa nesse tipo de trabalho... — a expressão dela era como o de uma xícara pela metade num dia nublado — além do mais, eu perderia muito com o fracasso dela.
— Mas não com o meu?
— Não com o seu.
O chiado das águas do lado de fora pareciam ter cessado. A noite se aproximou e a caverna foi invadida pelas luzes do entardecer.
— Você é muito dramático... — ela disse — você é tão importante quanto qualquer outro agente.
Sim, Dois Meia pensou, todos descartáveis.
— Então me diz: como você terá uma versão melhor de mim? Não existe isso de uma versão melhor de ninguém. Nós somos o que somos pelo tempo que nos permitem ser. — respondeu.
Um pareceu em dúvida com o que ele disse, refletiu por um momento, depois riu e rindo, falou pra ele:
— Você tem razão, heh! — e sua risada crescia como histerismo — Hahahahaha... eu não acredito... simplesmente inacreditável... hahahaaha! Você tem razão! Dois Meia, você tem razão.
Dois Meia estava atordoado, tendo um sentimento terrível passando por ti. Claro, seu rosto mantinha-se inexpressivo, observando Um gargalhar freneticamente.
Ela disse:
— Você só errou em uma parte: nós somos a partir do momento que nos permitem ser, porque o que você se torna é algo inalienável.
Ele se sentou novamente na poltrona. Seus ombros ainda estavam tensos.
— Então você vai permitir que eu me torne uma versão melhor de mim mesmo?
— Justamente.
— E isso não é uma piada?
— Não... — o dispositivo holográfico mudou suas cores, reconfigurou suas luzes. A imagem agora era de uma caixa preta com dois orifícios do seu lado e uma luz branca que ficava piscando. Parecia um processador bioquântico padrão de 8 instâncias. Esse dispositivo é complementado com uma placa indutora hermética com dois chips memorizadores de informação volátil (um de informações biológicas, isso é, de natureza eletroquímica, e outro de dados quânticos). D.B.B’s[7] de terceira a quarta geração eram reconhecidamente compatíveis, desde que a S.O estivesse atualizada em sua versão mais recente. Dois Meia havia estudado sobre eles no tempo em que estava no Bunker — era um processador biônico, instalado normalmente na região cervical. A placa se instala na posição oposta, em cima da tireoide e os chips se veem na parte externa da pele, um ao lado do outro. Era uma operação simples mais custosa. O equipamento valia pelo menos meio milhão de RPs e a instalação uns dois milhões. O processador e a placa não tinha mais que uns poucos milímetros, mas pareciam incomodar. Dois Meia olhou pra Um.
— O que é isso?
— Não sabe? Instalamos um no seu cérebro. Ele está conectado no seu córtex, entre o lobo temporal e occipital, tendo também uma P.I.H atravessada no seu lobo parietal afundando até o central, com as V.R.D’s conectadas em ambos hipocampos...
Dois Meia quis matá-la. Ele não acreditou na informação, sorriu.
— Isso aconteceu mesmo?
— Sim. Partimos seu crânio como uma melancia no tubo cirúrgico do bunker. Operações verticais são assustadoras, mas funcionam melhor com equipamento robótico. As lâminas de feixe de plasma pareciam deslizar por sua derme e osso, e a abertura foi tão desfigurante que você pareceu ter diferentes faces que eram uma só dentro do líquido amniótico do tubo. Seu cérebro foi deslocado sem maiores problemas e a inserção dos dispositivos se deu em exatos 3 minutos. Precisão é uma palavra curiosa, mas necessária. Você demorou 12 horas pra se recuperar e injetamos cerca de 500 mg de Deopax. Você mijou nano-robôs por um mês. — ela tinha um sorriso — por curiosidade, o custo da operação foi de 250 milhões de moedas replicadas, se bem que eu não acredito nessas contabilização: a operação é inestimável e os materiais são de ponta. O processador no seu cérebro foi arquitetado especialmente pelo meu grande amigo James Asimov e é único no mercado. Ele funciona com um fluído metálico formada por diferenciação no estado bizarro de sua matéria quando interagido por estímulos do movimento atômica de si próprio em razão a natureza eletrônica externa. É o ápice da engenharia da computação. Na verdade, é o ápice do conhecimento humano. Se o custo foi 250 milhões, o processador em si custou 13 bilhões de RPs. É o meu orgulho, admito. E está num homem desprezível como você. Como se sente?
Dois Meia quis gritar. Ele a olhava de um modo que não queria se deixar perceber, mas queria gritar. Sentia como se tivesse sido violado. Ele tinha um relação horrível com essa coisa, mas também não sabia o que pensar. Ele não sentia nada diferente consigo mesmo, além dos seus pensamentos cada vez mais doentios e a presença quase desaparecida de Franker. Um tinha todo controle e falava sobre os componentes e a CPU instalada no cérebro de Dois Meia.
— Esse dispositivo foi instalado pensando unicamente na sua missão e no papel que dedico a você.
Ele respondeu:
— E o que eu ganho com isso?
Ela sorriu.
— Nós vamos chegar lá... porque é difícil, sabe. Nós estamos falando de você, Dois Meia, matando um Deus.
Ele não sabia o que responder.
— Você vai saber mais, quando eu der Boot no Asimov-1 e instalar no seu corpo, nas suas células de informação, nos seus nervos, no seu respirar, 10 mil anos de vida na terra e algumas coisas a mais.
Ele estava desesperado. Perguntou como seria e ela disse para não se preocupar. Doeria, claro. Mas seria uma dor ilusória, uma dor esquizofrênica. Dois Meia perguntou também se podia fumar um cigarro antes e ela respondeu que não, que era um mal costume: que um homem de verdade não deve depender de nada para seguir seus objetivos, além claro, de si próprio.
— Você tem medo? — ele estava deitado numa mesa improvisada, com o deck de instalação do software ativado bem ao pé do seu ouvido. Disse que não, o que era mentira. Não à toa, ela conectou o cabo no seu pescoço, sorriu: te deu um beijo na bochecha como se tudo estivesse bem.
— Dez mil anos na Terra, mon amour, e mil anos em Marte!
Ele queria gritar
Dizer que nada estava bem
Fugir.
Seus olhos se fecharam entretanto e seu corpo pareceu desmontar.
— A história se resume a tragédia...
Dois Meia não soube quando apagou, o que é normal, mas soube que acordou desesperado, num campo de lavandas, sob um céu puramente azul.
[1] As instituições militares do H.U.D (Distritos Unificados Humanos) são relativamente recentes, datando menos de cem anos e cuja formação foi realizada em cima de protestos e alta efervescência social. A insígnia do amparo representa a concessão de forças econômicas e apoio político para o novo ministério instituído.
[2] A bandeira relembra a antiga instituição das nações unidas da terra.
[3] Hije Van Vetterspindel foi um importante geólogo, que definiu a área ideal pra o assentamento humano na região conhecida como Noachis terra. A baixada de Hije diz respeito a região onde originalmente surgiria o grande lago de Hije, projeto que nunca saiu do papel.
[4] As três marias de Lantlôs alimenta o rio de Lantlôs, o terceiro maior do polo sul. Descoberto em 437 após a Grande Queda, no fim do trabalho de estabilização atmosférica, no reservatório de água subterrânea A26.
[5] Decretado em 27 de abril de 592 D.G, por Loanë Guttemberg. A lei prevê detenção por 6 meses e reabilitação em clínicas de terapia hormonal.
[6] O cinturão de Marte foi o primeiro passo colonizador da humanidade em Marte. É um escudo feito a partir dos fragmentos da extinta lua de Deimos para a estabilização do campo magnético de Marte.
[7] Disco Biologicamente Baseado é o principal formato de armazenamento quanto-eletrônico nos Distritos unificados. Baseados em R.A.M de DNA, o armazenamento ganhou grande popularidade como alternativa aos Círculos de Foto ranhura pela complexidade de compressão de arquivos e sinergia com processadores de 8 instâncias.