A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero

Revisão: Tiago Costa


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 20: Onde se faz os homens (Ou o fim do doloroso molde para o corpo)!

— Dois Meia... — ele escutou chamar — Dois Meia... — a voz parecia veludo — meu dócil, pequeno, meu grão de areia Dois Meia. — uma pausa — Eu observei através dos seus olhos, amigo, durante esse longo tempo que estivemos juntos, e sonhei com uma miséria muito além daquela que pensei ser possível — você confundiu estrelas com o cinturão de Deimos — que blasfêmia — pedindo a Deus que sua mãe parasse de cheirar, de chorar... — sonhou com seu pai enquanto o frio te consumia naquele galpão abandonado — quando trabalhou enviando drogas e transportando dinheiro para Mathieu, eu vi suas lágrimas de felicidade ao dormir sozinho em um hotel pela primeira vez, em comer refeições completas, com proteína de verdade — te vi se envergonhando, agindo como um pobre coitado, uma pessoa digna de pena, uma pessoa que ninguém era capaz de enxergar; sendo que nem você era, Dois Meia, de enxergar a si mesmo. E tá tudo bem. Eu sei quem você é e tá tudo bem. Você não é o único, você não é... você não é o único capaz de trair todos os seus ideais num segundo sem sentir qualquer remorso. Você não é o único que não vê o futuro... você não é especial e tá tudo bem...

O rosto de Franker era jovem, quase de um adolescente — seus cabelos despenteados, sua barba rala por fazer. Seus olhos vivos estavam com olheiras e seu corpo delgado e frágil, deitado naquelas rosas vermelhas. Dois Meia o viu e ele falava como se fosse realmente importante, como se nada no mundo fosse mais importante que ele.

— Eu sonhei que te matava — Dois Meia disse — que afundava seu crânio com essas minhas mãos nuas...

         Também sonhei que me matava.

                 No fim das contas, eu me amo mais do que amo qualquer outra pessoa — o que é incrível! — mas acho que apenas estou enlouquecendo.

 

Naquele céu azul, ele viu os primeiros homens reconstruídos em passeata na megafauna, fazendo coisas que deveriam fazer naqueles tempos, vendo Neardentais e fodendo com eles; sonhando com colinas e observando pôr-dos-sóis; venerando nuvens e tempestades. Depois, quando desceram os vales, saindo das florestas, encontrando para si lares, encontrando na terra seu sustento — a sedentarização —, Dois Meia observou homem contra homem, pessoas intelectualmente semelhantes destruindo uns aos outros.

No céu do seu sonho Suméria foi levantada, os Uruques se ergueram e Babilônia estava lá com seus zigurates, com seu Gilgamesh, Mesopotâmia tão pequena, seus residentes tão ilustres, seus deuses e seus templos — viu o Egito ao mesmo tempo, viu Fenícia e suas moedas, os três Augustos e seus cincos imperadores — viu correr o tempo e viu guerras — a vida, viu Franker.

Uma mensagem do passado, entrecortada, de um presidente na televisão, dizia:

...Nós sabíamos o que estava acontecendo e como ia terminar...

Ele era o presidente eleito pelo anel de satélites da Nova Terra, um homem conhecido como Ronald J. Midfeller, e estava acompanhado dos ministros eleitos durante o período conhecido como transitório, da transferência dos cidadãos sobreviventes das zonas de impacto reduzido, processo que durou alguns meses até a chegada do nível de não retorno da atmosfera terrestre. Na mensagem, ele descrevia a importância da obediência civil, do racionamento perpétuo, da tecnologia e explicava que a vida mudaria dali para sempre.

— Mas não quer dizer que não há esperança. Estacionamos na estação espacial do satélite interplanetário Gateway-0, a primeira arca, com seus 2134 homens e mulheres dotados de grande talento intelectual, a nata da Academia internacional, de universidades que vão de Oxford a Harvard; da Universidade Nacional de Singapura, de Tsinghua, de Quioto, de Pequim, de Tokio a Edimburgo, Seul, Copenhague, Zurique, de Pierre e Marie Curie, de Karolinska, de Utrecht, Helsínquia, Genebra, Oslo... de tantos lugares... de infinitos lugares... esses homens e mulheres que se dedicaram as ciências da natureza, as ciências biológicas, as ciências exatas... e eles já iniciaram seu curso até Marte, e com quase nada, a não ser, claro, a maior nave interplanetária já concebida e também nossa recém descoberta: o backup de consciência contínua, eles terão a árdua tarefa de nos entregar um novo lar.

A terraformação de Marte foi considerado naquele tempo o objetivo mais ambicioso da história humanidade, um gênero de torre de Babel que unia a Academia com a nova leva de bilionários do ramo da tecnologia. Perpetuar a sobrevivência da espécie em estações espaciais gigantescas, a sobrevivência de um pouco menos de 2 milhões de pessoas, não foi sequer um esforço comparado ao de criar o anel de Deimos através do sucessivo bombardeamento nuclear da extinta lua; além de que, tirando a arca, todo o dispositivo ou equipamento disponível para a terraformação deveria ser produzido em Marte, pois a Terra não mais existia, e as forças produtivas restantes mais se focavam na manutenção da própria espécie no vácuo sideral, do que no sonho de ter um novo lar.

O presidente declarou:

— ...E a memória da terra, toda ela será alocada num mísero servidor, compartilhada com as mais das noventa e sete arcas que compõe o anel de satélites da Terra — ...E nós vamos congelar nossos cérebros no backup de consciência também, vamos negar nossa carne. É a punição pelo nosso crime, e achamos ser mais do que justo — ...Para os sobreviventes desse holocausto, nós apenas pedimos desculpas... também pedimos para que esperem. As arcas são autônomas, e com o tempo, haverá Marte para todos nós — ...A primeira Arca deseja de vocês boa sorte!

A entrevista se tornou num compilado de registros históricos televisionados e escritos nos anos de 532 até 720, quando a atmosfera estável de Marte e a nova magnetosfera reforçada acelerou o processo de aquecimento global e no fornecimento de novas reservas hídricas. Esse foi um tempo marcado pela expansão dos distritos e pelo boom na densidade demográfica, além de intermináveis mudanças nas relações sociais. E essas eram entrevistas, artigos, sessões do plenário arquivadas e debates em antigos fóruns da internet, além de trechos de livros biográficos transmitidas incessantemente em seu cérebro, além de algumas frases e trechos que pareciam ser grifadas em seus neurônios. E eram frases redundantes, sobre assuntos dos quais ele já sabia, de pessoas influentes, dos eternos, dos centenários, daqueles que ficaram conhecidos como Os primeiros, ou melhor, Os fundadores.

 E as frases, bem, elas foram uma de Francisco Méri, dita em seu livro “o holocausto verde” em que dizia sobre os últimos dias antes da vida se tornar insustentável. Ele explicava:

— A terra se foi completamente em 2074 depois de Cristo. Inabitável, insalubre, aquela era uma terra que passou por mudanças climáticas tão intensas e tão voláteis, que o controle pareceu impossível.

Também havia uma outra frase, de Ezzandro Matarazzo, dito num talk show duzentos anos atrás, numa rede televisa bicentenária chamada new globe. Ele falava:

— Não vou mentir: dava pra fazer certas coisas, dava pra lutar. Tentamos... eu tentei tanto. Mas no fim, um determinado movimento das placas tectônicas que ironicamente determinou nosso fim. O verão ficou 3 graus mais quente, o Saara passou dos 70, na américa do Sul chovia tempestades todo fim de tarde — tempestades tão arrasadoras que a tragédia foi saber que não havia mais nada no fim do dia — e o inverno foi tão frio, que nevou por dias na Cidade do México, no Texas, na Califórnia, e de tal modo que espécies inteiras de pássaros e animais silvestres foram extintas no período de dias, sem oportunidade de migrar ou recuar, nem nada. E tudo isso nos anos 50. De lá até a grande queda foi um desespero sem fim, ano após ano. Não havia esperança. — A fala foi complementada por um convidado, um homem velho e cansado chamado Samberg Hertzvic, que explicou sobre as relações sociais e econômicas e o pandemônio que foi a transformação atmosférica terrestre. Ele disse:

— Claro, havia Marte! O século XXI foi marcado na vontade irreprimível de colonizar Marte. Nossos problemas, entretanto, nos impediu, problemas como guerras, crises econômicas e sucessivas pandemias. Em Marte ainda não tivemos esse problema, claro, mas bem: tudo pode acontecer.

Uma sucessão de comentários com a referência bibliográfica se imprimia na extensão dos seus neurônios, formatando as frequências do seu hipocampo — ele leu todos os livros de Dostoievsky, Dumas, Hegel, Schopenhauer, Marx, Platão, Agostinho, Friedman, Tolstói e Camus num nanossegundo — viu os filmes de Godard, Truffaut, Akkerman, Bergman e Tarkovsky no piscar involuntário de seus olhos — Os miseráveis foi quase uma canção e o que existe na literatura e na música inglesa foi simplesmente engolida pelos seus sentidos desacordados. Mil anos em Marte, dez mil na terra — e ele queria gritar. O processador simplesmente despejando dados no seu sistema nervoso como se isso fosse nada, como se o ser humano tivesse pleno domínio de si mesmo — como se estivéssemos ao lado de Deus no exato momento de nossa criação.

Sua cabeça dizia:

 — Mandamos várias sondas e astronautas durante o período, e o avanço tecnológico nos permitiu contemplar essa joia vermelha com outros olhos. Entretanto, na proximidade da grande queda, salvar a humanidade era mais importante do que ficar sonhando em colonizar um planeta distante.

Uma tal de Helena Adrastéia quem disse, mas ela não tinha rosto. Estava borrado no seu sonho programado, estava enterrado nos arquivos contínuos e dados confusos, como as imagens que contemplou, como os registros fotográficos salvos digitalmente e disponíveis gratuitamente nos sites distritais, da terra em sua glória e queda, as cidades, as florestas, seu mar infinito e tempestuoso, das suas coisas diminutas, seus satélites. Palavras contínuas e elas diziam, diziam e falavam sem parar.

Escutou, e isso foi importante. Estava sentado naquele sofá bege, daquele Talk Show de tanto tempo atrás. A vida é infinita. O viu e ele disse:

— Conseguimos salvar, por sorte, pouco mais de um milhão e oitocentas mil pessoas. Os grandes satélites-arca subiram aos céus e vimos o planeta azul verter num cinza intenso que rodopiava loucamente nas suas entranhas...

Além do mais, seu cérebro titubeava essa questão, como se fosse uma obsessão repentina, uma vontade herdada, um trauma de gerações. Como se o satélite arca fosse uma sina — seu raio de 8 quilômetros um desespero. Claustrofobia subiu no espírito de Dois Meia, e a voz, como um sussurro, pareceu querer se apagar completamente.

Disseram:

— ...havia antenas de dispersão Hiperconectadas com os satélites terrestres, impressoras 3D de precisão quântica, maquinário separado de indústria pesada — Naves-foguetes de propulsores de íon, assim como drones de reconhecimentos de distância extraplanetária, sensores atmosféricos e robôs de reconhecimento supra anatômicos. Tudo criado sob a pressão da completa extinção humana. Seu objetivo? Genesis abrigara as mentes mais geniais da tardia humanidade por quase 500 anos. E entre os recursos que não citei — esses são vários — o principal, que nos fez sobreviver e prosperar como uma raça perdida, foi o backup de consciência. A eternidade... vos digo: a eternidade que mal consigo explicar com estes lábios.

Eu vivi em mais de 20 corpos diferentes, e minha memória continua a mesma, a mesma constante infinita de sensações, impressões e razões e conclusões. Meu papel se manteve o mesmo desde quando eu apenas estudava agroflorestas e seu impacto nas mudanças climáticas por vir, e na construção dessas fábricas de gases atmosféricos, essa estrutura maciça que vai desde suas pequenas criaturas, até o verde que cresce que cresce e que nos faz respirar esse ar puro e beber essa límpida água que por tanto tempo estava presa no subsolo de marte.

E agora, eu não sei mais. Estudei outros componentes importantes enquanto estava na arca. Mas sinto que não importa mais. Pensa, Marte é plenamente habitável, por que eu faria alguma outra coisa? Também estou cansado.

Vivi mais vidas que alguém deveria ter vivido. — Franker Médzsci, fala da semana da memória humana, 686 Depois da Queda.

Dois Meia olhou para aqueles olhos marejados, para aquela boca imóvel e pálida. Quem é você, ele perguntou e nada foi respondido. Sua cabeça estava uma loucura também. Dados massivos se entranhavam a vista e ele via tanta coisa contraditória em tempos contraditórios, desde história até fantasia. Ele perguntou de novo, em alto tom e Franker o olhou com aqueles olhos de lágrimas, não dizendo nada — se erguendo e indo através da relva, das nuvens e do sol. Dois Meia o acompanhou como um espectro, ao seu lado, com uma mão naquele ombro. A loucura foi quando tiveram os mesmos olhos. E o que Franker seria, se no fim das contas Dois Meia observara as inúmeras atrocidades cometidas por ele. Franker era mais, e tinha um plano. Dois Meia perguntou:

— Tudo que você me disse é mentira, não é? Eu sou fraco, eu sei. Eu sou um merda? Eu também sei. E te digo que sempre achei estranho você sempre dizer justamente o que eu pensava. Mas tem uma coisa aqui que sempre me foi estranho — o fato de que você realmente sempre foi algo além de mim.

Dois Meia estava numa sala, uma sala que era a colina de seus sonhos. Havia uma falsa árvore de plástico, um laguinho com carpas que deslizavam e giravam na cristalina água. No centro daquilo tudo, tinha Dois Meia e um pau fincado na grama sintética na sua frente. Um estava sentada na sombra da árvore e dizia palavras de alento, palavras de verdade, coisas como: “é inimaginável” ou “você realmente está trabalhando como um homem de verdade”. Ele socava o pedaço de pau com seus punhos nus, e socava e socava. O ângulo mudava, vez e outra, seus ombros mudavam a forma que arqueava e nos nós dos seus dedos havia sangue. Ele não sabia o que estava fazendo.

— Era para ser assim. — Franker apareceu ao seu lado, numa forma que nunca pensou vê-lo, num corpo infantil, de grandes olhos e morenos cabelos cacheados. — Alguma coisa mudou, claro. Mas era pra ser assim. Era aqui onde você aprenderia que o doloroso molde para alma é o corpo, não o contrário. É aqui onde se faz os homens.

Dois Meia não prestou atenção nele. Pelo contrário, continuou a socar o pau com suas mãos nuas, mesmo que o formato quadrado, cheio de pontas, fizesses seus dedos, seu punho, verter a carne viva. Ele continuou:

— O doloroso molde para o corpo é a ideia. E o que elas são? Imagens que representam a suposição do nosso mundo? Talvez. Para Platão, as ideias são a única forma verdadeira de conhecimento. Saber como destruir esse objeto, por exemplo, é mais importante do que socar esse objeto e destruí-lo de fato. Veja bem, a partir do momento em que você souber como destruir, você não vai precisar soca-lo desse jeito, apesar de, se você realmente socar e destruí-lo é bem capaz de saber como o fez realmente, pensando em coisas como se o seu esforço fosse o responsável, e o esforço físico, bem, o esforço físico é uma redundância. Seu corpo precisa saber como destruí-lo, também. Mas aí vai entrar uma questão que nem Platão, nem ninguém disse, além de mim: do que adianta saber fazer se não o faz. É engraçado, pensa. Apenas um homem louco socaria esse pedaço de pau. E você o fez. O esforço físico é uma redundância, mas a consciência também o é. Todos os nossos dias o são. Platão também disse que seria uma vergonha para um homem envelhecer sem saber a real potência do seu próprio corpo. Não que importe. O que eu estou querendo dizer é que o homem antes de ser uma ideia, é matéria, e a relação entre essas duas formas é uma coisa bizarra, por que antes de termos alguma conclusão do mundo, nós primeiros existimos. Jean Piaget definiu que o desenvolvimento cognitivo começa na inteligência sensório-motora, depois vem toda aquela coisa da passagem do pensamento indutivo, nossos medos, a forma como enxergamos nós mesmos, do pensamento lógico e da lógica operatória abstrata. É uma teoria, uma teoria bem aceita. Mas vou além: o conhecimento sempre emana da nossa interação com o mundo dos sentidos. Eu não deveria falar isso dessa forma, principalmente porque há fenômenos que não podem ser descritos pelos sentidos, mas já vou chegar nisso. Porque Dois Meia, pensa, você viveu muita coisa e entre elas, a principal coisa que seu corpo soube do mundo, foi que o medo e a frustração sempre serão o principal. Deprimente, não é, mas pensa... Dois Meia... pensa... me escuta... por favor...

Pensa...

Dois Meia imaginou se o seu corpo não seria capaz de desabar em si mesmo, que toda aquela merda não fazia sentido nenhum e que sua espinha implodiria o restante de sua estrutura. Era como o pau fincado, sua espinha, levando sucessivos golpes que era a retransmissão dos seus fluídos e o constante estímulo nervoso.

Franker disse:

— Dois Meia, eu disse para você fugir, eu não disse? Sofia, você não a conhece — capaz de tudo, minha doce flor de cheiro. Ela me mataria se soubesse que estou nos seus braços e te mataria apesar de você ser inocente. Aliás, não pense em nada. O objetivo de Um é que você morra e que suas cinzas sejam areia do deserto para nós pisarmos.

Dois Meia preparou um soco, um último — seus ossos estavam trincados e mesmo assim seu braço foi num giro perfeito, com o nó do anelar e do indicador tocando em fúria a superfície lisa do sangue coagulado e madeira — e no toque, a estrutura pareceu rachar, e no movimento, partir-se completamente (os estilhaços destruíram sua pele, penetraram sua carne e o impacto fragmentou seus frágeis ossos). Ele caiu no grito, ao som das palmas que Um batia incessantemente, dizendo que ele tinha conseguido, que ele era realmente especial, que ele era um homem entre os homens; e ele pensou que havia falhado, que havia falhado com Um, que ele deveria ter resistido mais, que o seu corpo era um erro e que sua existência era facilmente substituível.

 Franker disse:

— Dói, não dói? Você sempre se esforça tanto, sempre se esforça. Pessoas que te veem ficam com isso na cabeça: por que ele se esforça tanto? E imaginar que você não tem objetivo nenhum. Você quer dinheiro, quer um pouco de poder e um lugar para morar e morrer? Eu de minha parte te desprezo. Todo esse esforço empregado em coisa nenhuma é uma das coisas mais decepcionantes que já vi na minha vida.

E é decepcionante, Dois Meia, por que vi muita gente sem as forças que você tem, indo bem mais longe, e num sentido geral mesmo, como sua mãe, que por você começou a se deitar com homens, começou a se vender por pouco e que ficou histérica, mas que soube te manter por muito tempo — até o que, os seus doze? Ela te manteve, te criou, te alimentou, mas não conseguiu, Dois Meia, por que ela era fraca, ela não conseguiu ficar contigo por mais tempo — o vício corroeu ela, não corroeu? A completa ausência de amor, além do desprezo coletivo que pessoas iguais a ela tinham. E isso é engraçado porque nada era mais doloroso do que esses seus olhinhos — de quando ela chegava no meio da noite e te via no colchão improvisado da sala, ao lado da cama dela, com os seus livrinhos espalhados ao redor do piso, fingindo que estava dormindo, fingindo que não tinha esperado todo aquele tempo para vê-la chegar naquele estado, vestido de puta, cansada e drogada (mal conseguindo se aguentar em pé), se jogando na cama, suja de sêmen, cocaína e vômito — ela morria quando você levantava, ajeitava as pernas dela e a cobria; morria quando você acordava cedo no dia seguinte e preparava a marmita, café da manhã e os remédios para a ressaca; ela morria quando você ria com ela assistindo os programas matinais naquele velho monitor holográfico; ela morria quando você fazia os recortes de dia das mães, separava os doces que recebia da escola no dia das mulheres e o presente que nunca faltou em nenhum dos 7 aniversários que vocês ficaram juntos. E foi assim que ela morreu, não foi, porque mesmo quando ela pegou aquele revólver e afundou na sua bochecha, você a perdoou — ela era a única coisa do mundo para você não era? Ela era a única mulher que você se importou... e no fim das contas, morta com esses seus olhos de perdão, ela cheirou com aquele bêbado sem nome, conhecido como orelha, e ele afundou a cabeça dela com um tijolo, pois sentia ciúmes e dizia que faria tudo por ela.

Dois Meia riu. Seu braço estava torto, suas mãos cheias de sangue — seu corpo desabado

Ela era a única, de verdade. Ele deitou na grama, viu o céu de holograma — sua mãe era a única. Ficou pensando nela, coisa que, desde algum tempo sempre evitara ao máximo. Talvez fosse os dados, talvez fosse sua repentina alteração eletroquímica, que seja — ele começou a chorar que nem uma criança lembrando do rosto bonito da sua mãe, lembrando das suas pequenas mãos, seu corpo meio cheinho, seu sorriso branco e bem cuidado. Aceitar que ela se foi completamente era parecido com levar um soco bem dado na boca do estômago e ficar sem conseguir respirar por um longo tempo. Franker também estava certo, ela era a única mulher para ele. A única. E vê-la todos os dias chegar bem era a coisa mais feliz do seu dia. Ela nunca mereceu o que aconteceu com ela, ela não merecia a vida que levou. E o único arrependimento que Dois Meia sentia por trás daqueles olhos vermelhos de lágrimas era o fato de nunca ter tido a oportunidade de fazê-la se sentir realmente amada.

Para ela sempre foi assim

Que pena.

E pensar que poderiam ter sido felizes juntos, que poderia ter cuidado dela — e pensar que no futuro teria encontrado Um tão repentinamente — e pensar que quando pequeno brincava que era traficante, e levava comida para os vigias das bocas de fumo e ria com seus filhos, seus amigos, jogando e falando merda no lance de escadas de sua rua. Por ela, faria tudo, até fingiria ser simpático, até viraria traficante, faria o que poderia para ela nunca mais ter que se deitar com outro homem por grana.

Franker o observou daquela forma, perguntou:

— No que você tá pensando?

E Dois Meia não respondeu nada.

Seu braço já estava melhor, não havia sangue na sua mão. Os dados continuamente atravessavam sua espinha e se espalhavam sistematicamente pelos nervos do seu corpo, o que dava uma sensação engraçada de espasmos e uma convulsão extraordinária.

— Você parece melhor do que antes. — Franker disse.

— Claro, tem coisas que a gente finge que não existe, mas infelizmente é isso.

Ele se levantou, limpou a sujeira das suas roupas e olhou diretamente nos olhos de Franker, dizendo com um sorriso radiante:

— Você é um pedófilo, não é? Um merdinha que se exilou dos distritos unificados para repensar suas ações. Minha cabeça tá acessando um estranho banco de dados que não é das Megatorres nem dos servidores além H.U.D. É um banco de dados com informações de verdade. Sobre Os fundadores, a vida e todo resto.

Franker não disse nada.

— Você que começou, não fode: você tá provando do seu próprio remédio. Você é um merda! A porra de um zé ninguém. Você fodia crianças e botou a porra da culpa nos pais delas — você era um merda, uma pessoa doente, a porra de um pederasta de merda. O homem é capaz de matar outro homem, mas nunca de beijá-lo nos lábios! Você disse isso, disse, disse em promoção a paz... mas que merda! Que porra! Você que disse pro filho da puta do Elijah qual era a solução! Por que. você que tá fazendo isso? O mundo é um suspiro muito breve... breve de quê...? Oh! Agora entendi. As fábricas de gases são suas, só suas. Entendo, Koltrain... entendo... Humberto de Arões... sim... e a guerra.

Franker não era ninguém mais na sua frente e Dois Meia foi quase insone, vendo tudo que podia ver, lendo tudo que podia ler, escutando música que pensou não existir, vendo filmes que ninguém poderia ver. Franker na sua cabeça martelava, martelava, parecia que ia rachar seu crânio em pedaços. E a voz de Um foi linda, com seus tons enervados de sempre, seus olhos profundos que rasgava de dentro pra fora. O que você quer Dois Meia? Dizendo em poesia:

 

Será no deserto, apenas

Em dois passos

Tudo que já fora, claro

E o que era nosso

 

Onde nas planícies, você

Mantenha o foco

Pois tu és de fora, o estrangeiro

 

Aquele que almejas!

Na Solidão Desértica dos ventos carmesins

Ser Judas, o homem!

 

Cujo se mata

Num torto galho

Nas areias torpes

Da Carmen Arábia.


Seus olhos eram azuis, debaixo daquele teto desabado, daquela lua — o cinturão de Deimos no céu sem nuvens. Ele sabia seu nome, que não era mais nenhum. E ele sabia onde estava, apesar de parecer confuso. O som não sintonizado na sua cabeça, sua boca tremendo com o frio do vento noturno. O dossiê esculpido nas suas sinapses. O assassino de profetas sem nome. Um filho da puta!

O judas de marte.



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