Volume 1 – Arco 2
Capítulo 18: O doloroso molde para a alma.
Mas o que são os loucos? Gente realmente desesperada? Ele não sabia. Pensava sobre, mas não sabia. Tinha dias que simplesmente não sabia de nada. Observando Um, vendo-a por completo, também não sabia. Tudo era desconhecido até então. Mas era engraçado, pois vezes vendo-a desaparecer completamente, sabia, isso é, tinha o conhecimento preciso do que ela realmente era.
Maioria das noites sem conseguir dormir naquele pequeno quarto reservado apenas a ele dali para sempre — um pequeno, mas bem apessoado, parecendo o de um dormitório de estudante — sendo uma câmara, dele para ele, onde pensava, basicamente, enquanto deitado exausto na cama. Se revirava, ansioso... apreciando o teto, sua figura branca, mínima, relembrando também de Franker ou este mesmo te aparecia e te dizia palavras de alento, palavras sobre o corpo e a alma. Era o contraste, sabe, porque Um durante aqueles dias disse sobre o que era o homem — sobre o que ele é — sobre máquinas que superam a carne e computadores mais humanos que a própria humanidade; e Dois Meia sentia medo, medo que fosse embrulhado em cobertores de polímero e o que quer que fosse ele, isso é: Dois Meia — sua consciência — estaria reservado inteiramente num servidor estático do céu estralado.
Vivia no bunker, nos seus corredores... e ela explicou bastante nos primeiros meses o que era aquilo, como ali funcionava, sobre como cada setor se dividia em asas, sobre como se localizar através das tubulações industriais que se amarravam no cabeamento estruturado; de como o piso era feito de ricos materiais que não existiam mais e de como conservar a cerâmica ou trocar os tubos fluorescentes ou polir o que devesse ser polido — além de infindáveis outras tarefas que pouco ou quase nada tinha a ver com qualquer proposta feita a princípio — descobrindo dela sobre o que é o homem, pois ela te disse que somos uma pilha de outras coisas — não sabendo, aliás, o que é uma pilha de outras, imaginado que ela é burra, que ela é uma idiota, incapaz de dizer com simples palavras que a humanidade é um mistério e que não nos importa o que ela é de verdade — fato que, logo quando o quarto te foi apresentado, logo quando não havia dúvidas sobre o que cada zona significava e o que o um quilômetro de bunker era realmente, fato que te contemplava pois Um desaparecia e aparecia, e os salões pareciam vazios, e a riqueza dos quadros sem detalhes nenhum, e o design dos móveis e as salas externas com suas janelas panorâmicas, seu vidro na rocha que de fora parecia nada e que de dentro dava para ver toda floresta impressa e as colinas além até o lago azul e as nuvens que pairavam pois o bunker ficava numa altitude muito alta e o mundo era muito lindo, fato que ele se apaixonou em ver as naves naquelas salas de escritório vazias e salões arábicos abandonados e que logo no primeiro mês sentiu que iria enlouquecer completamente naquele silêncio e naquele ócio, pois lia, pois ela não te permitia fazer nada, e apenas retomava para explicar as pequenas coisas que não mais o importava, como por exemplo a se comunicar com o mundo externo, com os guardas posicionados no sopé da montanha, ou com a guarnição ao longe, na sede final da terraformação marciana.
No segundo mês, entretanto, ela explicou o que era, o que faria, e te apresentou Amantana.
— O seu corpo — disse — entrará em meus moldes. Isso é, você não vai destruí-lo mais, enquanto eu estiver aqui.
Não fumaria, não beberia, foi o que realmente disse — comeria os carboidratos, as proteínas, beberia diariamente quatro litros de água. Seria, como ela mesmo pontuou, um deus adornado de sílica.
— Você entende, ou pelo menos deve entender, o que esse lugar significa. Aliás, se não entender, morrerá. Não é uma ameaça, mas se nem aqui você conseguir ser algo, alguma coisa — não ser o merda que você se habituou a ser — então, em que outro lugar conseguiria?
Nos corredores do que descobriu ser mármore, nas paredes brancas pintadas como sonho — mesinhas feitas de rara madeira envernizada, mogno, carvalho entalhado — mesas de cristais segurando vasos de cerâmica com orquídeas, ou cabeças de gente antiga — divãs em salas distantes, bibliotecas infinitas — conheceu Amantana, aquela figura silenciosa e que foi-se revelando extraordinária. Amantana, também um nome extraordinário. Deitado na cama, relembrou da pálida face e suas maçãs rosadas. Como um grande lago, azul e vermelho eram seus olhos — uma íris cujas bordas se tornavam rubras enquanto o centro, a parte mais fixa de sua existência, era um marinho tão intenso, que Dois Meia pensou ver nela uma sombra de algo fantasticamente remoto. Não te disse muito no primeiro encontro, infelizmente. Apenas explicou que esperava que se dessem bem. Tinha o cabelo Chanel também. Suas unhas não tinham esmalte, seus lábios não tinha batom —e eles eram pequenos, assim como tudo no seu rosto parecia sê-lo.
Aliás, era ela quem cuidava da sua alimentação, do seu sono, dos seus horários; ela quem cuidava do seu corpo. E nesse tempo, principalmente — tempo esse que Dois Meia desconhecia — onde, a pedido de Um, ele era, ou pelo menos veio a ser e isso de algum modo é curioso, pois se a vida toda sempre se sentiu um merda, naquele momento ele vinha deixando de ser, o que pareceu bizarro.
Treinamentos físicos, longas corridas nas quadras subterrâneas, dando voltas e mais voltas com pesos em suas pernas, braços e abdômen — pesos sendo erguidos lentamente; 10, 15 quilos. Flexões, abdominais; piscinas em cavernas sendo percorridas, sustentando seu corpo em barras com seus lânguidos braços — fibras musculares inchando, algumas vezes rompendo e logo em seguida sendo restauradas, seja por nano robôs ou as impressoras 3D que naquela época chamavam de Regeneradores Celulares, ou Médicos Mecânicos, sendo o nome oficial Auxiliar de Recuperação de Miócitos ou ARM como constava em documentos de fé; vendo uma armadura de carne se tornar seu corpo, lentamente — tão lentamente que vezes se questionava sobre o que era dor — tendo igualmente vezes em que dor nenhuma sustentava seu corpo.
Agradecia quase exaustivamente a Amantana. Era ela quem manuseava a máquina; quem massageava seu corpo e ia após cada sono chama-lo para cada dia. Foram seis meses apenas ele e ela, mesmo com as vindas casuais de Um — que nada agregava. Ela também lhe trazia livros, contava sobre a vida, explicando sobre as dúvidas que Dois Meia carregava em relação a si mesmo, sobre o que os sonhos com Franker significavam.
— Você sente vontade de poder. — disse certa vez:
— Você tem sede por algo maior que suas mãos. Necessidade que infelizmente te digo ser eterna — suas falanges querem o mundo por inteiro.
Amantana explicara também que essa totalidade é feita de coisas menores, que estamos atolados dessas diminutas, e aceita-las é uma questão de sanidade. Grandes homens, disse, se perderam em loucura. E aí contava a história, a única que havia — a história cinza da Terra e seus antigos senhores. As guerras, a fome, o capitalismo tardio e a busca por alternativas econômicas que simplesmente falharam. Para cada sucesso, inúmeras falhas, era o que ela dizia. Nero, Hitler, Genghis Khan, Mao Tsé Tung, Churchil... que erro Otto Von Bismark cometeu? A fúria de Aguirre. A história se tornou uma tragédia apenas depois de tanto tempo.
E, ainda tentando dormir, lembrou: seu rosto parecia o de um anjo de gesso — sua pele era branca, mas tinha traços róseos — seus olhos um oásis no deserto marciano. Quando ela te tocava, seja pelo seu braço estar deslocado ou algum ligamento rompido, e ela vinha e tudo voltava ao lugar, ele sentia, não sabe, como se um vaso de rosas espiasse em sua barriga. Amantana lembrava Um, aliás. De algum modo, até no falar. Mas eram diferentes, muito. As massagens definia gentileza — a história da qual o informava era definitivamente um aviso — não era os edifícios ululantes e abandonados de River City e, muito pelo contrário: megalomania era uma mentira, segundo os olhos dela.
E naquela cama em que estava deitado, lembrou finalmente daquilo que o incomodava, porque disse que a amava e ela respondeu que não, que ele não a amava, que não era isso, que não era, no seu tom frio, que só descobriu realmente ser frio apenas ali, quando expressão alguma marcava aquele rosto.
— Gentileza — explicou — você ama a gentileza, essa coisa... como explico: esses símbolos que me transformam num alento. Você não me ama, mas como estamos sozinhos, sente necessidade de me amar.
Ela era realmente uma infinidade de outras coisas. Parecida, como veio descobrir depois, com Anne. Lembrava dela, por exemplo, quando Amantana o observava, sentada na colina de sonhos, na grama de plástico e no orvalho de água destilada — e ele a olhava com um sorriso enquanto corria de um lado ao outro, exaustivamente.
Seu corpo parecia um saco de batatas.
Amantana... No primeiro mês desde que havia a conhecido, Dois Meia sentiu-se revigorado: tudo era novo, as coisas, o lugar. No segundo, o bunker pareceu mais do mesmo. Havia mistérios, claro, como Amantana, cuja quem perdidamente se apaixonou. No terceiro os poucos mistérios se tornaram a rotina. Levou sete meses pra fazer algo além de estourar os próprios músculos. Um disse:
— O doloroso molde para o corpo é a alma.
Ele sentia não ter. Não era essa, descobriu depois. Alma não é o espírito infindável do ser, é a consciência, ela explicou.
— Sua consciência é do tamanho da palma da sua mão e você é um verme.
Lia livros, lia. Não quis depois ler mais nada. Tinha um computador de mão. Passava maior parte do dia o observando, exausto, aprendendo programação por incentivo próprio — odiava as pessoas naquela época e via pornografia e via filmes e escutava música pois eram as únicas coisas que aprazia.
O bunker uma infinidade de outras coisas. Amantana a única.
No final do primeiro ano, Um disse para Dois Meia estudar, que era parte do que se diz consciência. Estudar o quê? Ele não sabia. Voltou a ler, mas não havia qualquer gênero de prazer naquilo — lia didáticos, enciclopédias, artigos. Havia um esquema: Amantana te falava o que era e o que não era. Diferente, sabia, da sua antiga escola. Não havia ataques de ansiedade, não havia medo; não havia ninguém e Dois Meia sentia prazer, gostava de ter suas dúvidas saciadas no tocante do que é o mundo e as coisas que ali constituem.
Não à toa, no período de seis meses conseguiu resultados positivos nos exames do Distrito Único. Um o elogiou, disse que estava num bom caminho. No fim daquela temporada também fez outras quatro provas, e, mesmo que as notas oscilassem, sentiu uma segurança extraordinária em si, como se fosse o homem mais esperto vivo.
Era feliz.
Mas foi na Memória da Grande Queda[1] do seu segundo ano isolado, que Dois Meia comeu sanduíches de Amantana e trabalhou num compilador quântico de 5 instâncias (havia terminado o estudo sobre binários e 4 instâncias). Nesse dia, ele também disse a Amantana que realmente a amava e que estava doido, louco pra caralho. Ela, como sempre sem expressão, o observava do outro lado do console holográfico e ficou sem resposta por um tempo. Depois, respondeu que ele não a amava de verdade, e com seus olhos impassíveis, se despiu e indo até ele, o envolveu em seus braços, o beijo. Naquela noite, ela fodeu ele completamente.
Ele demorou um tempo pra acreditar. Estava e esteve atordoado, pois o corpo dela parecia ter sido moldado justamente para atender cada desejo seu, para encaixar em cada perversão. Dos seios às nádegas — seu rosto esculpido em silício. Parte do seu cérebro derreteu naquela noite e do segundo ano em diante, cada dia, fodeu ela cada vez mais intensamente, cada vez mais hedonista. Ela nunca dizia nada, nunca reclamava, apenas (e ele pensava que fosse por ela própria e mais ninguém) gemia e gemendo tinha momentos de pura ternura ou vezes de alento, cujo desde o princípio sempre desejou ter dela.
Infelizmente, Anne apareceu uns meses depois, dizendo estar de férias.
— Você é louco pra caralho! — disse, esbravejou, comentou. Ela era assim.
Passou primeiro uns dias bagunçando, bebendo e fumando através dos corredores apertados, sujando e/ou profanando os salões, os quartos, a mobília. Mostrou muito para Dois Meia, revelando os detalhes, os pequenos, que tornavam aquela instalação enorme tão importante.
— O bunker tem uns dois quilômetros de raio. — disse — Tu deve ter percebido que tem muitas entradas e saídas para lugar nenhum. Estamos na asa externa, como chamam. Na interna fica a usina de fissão a frio e na outra asa (a norte) ficam as antigas instalações industriais. Quando eu ficava de saco cheio eu ia pra lá. Não havia uma androide como você tem aqui. Era só eu e Um por muito tempo. As outras crianças já tinham ido embora... era um saco...
Dois Meia olhou para ela, perguntou sobre a androide, quem ela era.
— Você não sabe? — Não, ele realmente não sabia.
Sua noite de núpcias roubado como um sonho.
Nos dias posteriores, não visitou Amantana. Pensou que ela o amasse. Se não o amava, tudo bem — não era algo importante.
E para não pensar muito sobre, passou boa parte do tempo com Anne, indo pelas instalações abandonadas, outras esquecidas.
Quantas vezes não viu o nascer além do vale daquela montanha, sentado numa cadeira de escritório cujo couro gasto incomodava suas costas nuas — quantas vezes não viu aquelas pedras verdes que eram os olhos de Anne no reflexo da luz oblíqua?
Infelizmente, não bebia. Mas passava as noites conversando com Anne. E ela falou o que se passou.
— Sofia matou muita gente. Por isso tu tá aqui. Acho que Um vai te efetivar logo, sei lá — babaquice dela te fazer passar por isso tudo.
— Ela voltou para os distritos aliás. River City não existe mais, agora se chama Human’Vein... A Megatorre de lá foi finalizada e o desejo é transferir o parlamento para lá, mover de Human’Behavior. Tá uma puta briga entre os partidos tradicionais, um saco. E não só isso, to trabalhando esse tempo todo, puta que pariu! Doze políticos foram pro saco, e o pessoal da terraformação tá sumindo aos montes. Um tá doida, porque tá te atrasando. Ela ia te apresentar a um pessoal, uma galera importante. Mas parece que vai te deixar por baixo dos panos, para não foder seu desenvolvimento.
Aliás, parece que vamos todos morrer de repente.
Anne foi embora alguns dias depois. Disse para ele não se preocupar. Que era enlouquecedor estar sozinho, sim! É enlouquecedor fingir que todas as outras coisas não existem. Somos constituídos disso. Só mais alguns meses, tudo ficaria bem.
Passou, entretanto, mais um ano sozinho e não pensou sequer uma vez em Um ou Anne, ou em Hide, em Mathieu ou Franker (ele não te apareceu nenhuma vez, ele não te disse nada). Foi um período áureo, um período em que fodeu Amantana 225 vezes, onde conseguiu finalizar os primeiros códigos do que imaginou ser sua primeira I.A — onde leu Irmãos Karamazov e chorou que nem um filho da puta.
Mas foi um ano, e não sentiu nada.
Na verdade, naqueles salões, naquele labirinto de coisas abandonadas — naqueles escritórios cujo nascer do sol parecia queimar a carne e nem bebida nem cigarros pareciam ser para ti um alento — viu a imagem de Deus e descobriu que assim como ele, não sentia nada.
Um apareceu apenas no sexto mês do seu terceiro ano, curiosamente.
De malas prontas, olhando para ele de cima abaixo. Disse:
— Você tá mais bonito. Amantana vem cuidando de você né, do seu cabelo, vem fazendo sua barba. Suas unhas estão bem cortadas, sua tez não é aquela doentia cor pálida — mais moreno, claro, é redundante, sua pele tá mais bronzeada, parecendo na verdade agora um mestiço de fato, não aquela coisa doente que você era antes. Seu corpo também não é de se jogar fora. Seu abdômen tem seis gomos, eu vejo, o seu peito é de aço — seus ombros mais largos, coxas e glúteos rígidos, salientes. Até seus lábios parecem ter outro sabor. Foder minha androide te fez bem... se bem que eu, que a fodo a anos, já deveria saber. Não achou graça, é? Foda-se; uma nave nos espera e agora você será meu pequeno deus de estimação.
Alias, vamos viver para caralho ainda, mon amour!
Não se desespere agora.
Dois Meia quis socar a cara dela ao relento, pois chovia e na chuva normalmente seu humor era imprevísivel. E, infelizmente, vendo-a com aquele sorriso, com aqueles olhos — vendo-a te menosprezar como já era costume, quis fodê-la ali mesmo, morder a carne sexual do seu pescoço.
Não se sentia o mesmo.
[1] No dia 15 de outubro o feriado final dos Distritos Unificados é celebrado em memória ao grande colapso ambiental terráqueo.