A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 17: O doloroso molde para o corpo.

Foram 3 dias dentro daqueles bosques, observando criaturas nos galhos das árvores, os roedores em multidão, se aglomerando ao redor das raízes; os pássaros agourentos nas placas sinalizadoras, no carro estacionado. E era apenas ele e Anne, o que foi até que suficiente por um tempo. Tiveram, por exemplo, conversas dignificadoras e uma abstinência truculenta, com o veículo balançando vertiginosamente através das trilhas enlameadas e colinas soterradas de verdes árvores. Desejou estar com ela, aliás, o que não vem ao caso. Noites estreladas, onde Anne se recusou a ligar os faróis, te arrebatando — o apequenando de tal modo, que seu entendimento sobre qualquer coisa parecia nulo. Única coisa que pensava, sob esse céu, era que queria salvá-la. Não sabia bem o que o levava a pensar desse modo, mas imaginava se seria capaz. Particularmente, ninguém salva ninguém, por mais que quisesse muito. Deve ter sido o adeus que ela disse assim que chegou na entrada do Bunker. Sua viagem, completou, vou voltar para os distritos. Talvez não quisesse admitir, mas sentiria falta dela. Já estava sentindo, de qualquer forma. Se acostumou com as noites de pura escuridão ao lado de Anne. E, mesmo que fosse estranho, também sabia que não a veria por um tempo. Claro, havia dito adeus para muita gente. Mathieu mesmo. Não se esqueceria dele tão cedo. Porém, no tardar iria e isso o assustava. Somos fúteis a esse ponto. Se vivesse, por exemplo, uma vida, Mathieu seria só uma nota de rodapé, assim como foi Hide. As noites de escuridão total com ela, por outro lado, não. Ele lembraria daquilo para sempre.

E quando estavam apenas ele e Um, a mesa e a colina de seus sonhos, revelou para ela que já sentia falta de Anne. Um sequer deu tempo dele pensar. As coisas passam e o que ela tinha que dizer, diria, como já estava dizendo. Não conseguia, entretanto, prestar atenção. Ela dizia que estar sozinho era uma maldição desses tempos. Relações deixaram de ser uma presença afetuosa, para memórias cuidadosamente selecionadas. Nos odiamos, ela disse, mas na solidão de nossos quartos, nós nos amamos e sentimos falta.

— E onde nós estamos? — perguntou.

— Selecionei memórias quando fiz o backup da sua consciência. Esse cenário apareceu algumas vezes.

O clima de verão no céu holográfico com o orvalho na grama sintética pareceu uma mentira tal qual seu desejo de matar Anne — das suas posteriores crises homicidas se dirigindo contra Um junto da grama que sibilava com a ventilação central. O que é solidão? Um perguntara de repente, derramando chá numa xícara de porcelana e servindo um Dois Meia frígido, distraído, que respondeu tão de súbito quanto, falando que é tudo que nós não gostamos de lembrar. Ela riu, comentou que é desse jeito mesmo. Nesse ofício principalmente, completou, e era sobre isso que ela tinha vontade de falar. O chá não tinha gosto de anfetamina, de forma igual a Franker que não estava ali.

— Dois Meia, você não sabe o que nós fazemos. — disse. — Estamos reconstruindo, aos trancos e barrancos, uma civilização inteira. Agora você só tem um vislumbre, mesmo que pareça sê-lo já completo. O seu fim é tão majestoso e magnífico, que se soubesse iria me perguntar sobre como nós retornamos a esse começo. A terra foi o principal planeta desta galáxia distante, pelo menos antes dos mares invadir os continentes e o céu cair sob nossas cabeças. Esquecidos, essa tentativa em Marte significa nosso total desespero.

Ele se perguntou onde assassinar pessoas entrava em construir alguma coisa, mas lembrou que nada já era muito.

— Dois Meia, como você se sente sendo um merda?

— Como?

— Você sabe... como você sente sendo um inútil de merda?

Estavam sentados num lençol de piquenique, um de frente ao outro. Havia uma cesta com sanduíches e frutas e um isopor com cerveja. Dois Meia não se importou de comer enquanto ela falava, mesmo que fosse ela quem deveria se importar. Mas, claro, não queria escutá-la. Preferia que fosse ao ponto o quanto antes, mas não era bem assim. Como é ser um merda? Pensou; é bom pra caralho, respondeu.

— É por isso que eu te desprezo tanto?

— Como eu posso saber?

Ela pegou uma cerveja, também bebeu.

— Sua mãe era uma puta, — disse. — e seu pai era um drogado de merda. Sobre sua mãe, ela ainda tentou te matar, não tentou? Pelo menos antes de estourar os próprios miolos. Hide, seu melhor amigo do mundo, também se matou. As pessoas que você ama se matam e você pensa: “ei, tá tudo bem! Eu estou bem!”. Qual a sensação?

Como um passeio no parque. Um sorria, esperava alguma reação dele.

— Você acha que estou apenas querendo te provocar?

— Longe disso. Mas ficaria feliz se fosse apenas isso.

Por um momento, observou ela encarando o nada, quase como se deixasse de ser e depois retornasse a si. Também disse, de repente, que queria que ele se tornasse alguém. Não é suficiente que ele fosse quem já era. Acabou que não esperou que ela dissesse mais nada. Se levantando, acendeu o cigarro que a dias queria fumar. Apaga isso, ela disse, pare de ficar estragando seu corpo. Por quê? Ela não tinha resposta, ou tinha, mas não queria falar sobre. Não ainda. Dois Meia tragou intensamente e logo que terminou, acendeu outro, jogando as cinzas e a bituca dentro da lata de cerveja.

— Você se sente melhor?

— Me sinto bem o tempo todo.

Ela disse que ele ia se ausentar das suas funções operacionais. Disse que esperava muito dele, bem mais do que qualquer outra pessoa esperaria. Por outro lado, ele deveria aceitar o que ela tinha para ele. Ou pelo menos escutá-la.

— Você me despreza tanto assim? — perguntou Dois Meia, depois de tomar outra lata de cerveja. — É a pessoa mais inteligente do mundo e me despreza. Vou virar seu cachorro, viver sob sua saia, morrer para beber água dos seus lábios.

— Virou poeta?

— Eu sou um arrombado! A porra de um otário!

Eu disse que era um merda, comentou, baixo, num sussurro. Ela terminou a cerveja e se desligou do drama dele, observando alguma coisa além, que ele queria que ela dissesse o que era. Dois Meia se sentou, respirou o ar reciclado. Franker deveria estar te observando. Ele estava fazendo desde algum tempo. Aparecia como fantasma, desfilava através das sombras e então desaparecia. Na verdade, foi ele quem puxou o gatilho. Não queria admitir, por outro lado.

— O corpo é apenas uma casca. Não importa o quanto nós modificamos, o que tem na cabeça é o que define. — Um disse. — Acho engraçado também o fato de que, quanto mais o tempo passa, mais as pessoas se tornam ideias. Sabe o que são ideias, Dois Meia?

— A forma como identificamos as coisas, não sei...

— Quase isso. E se comprova. A sua vida Dois Meia, por exemplo, você mesmo... você é uma ideia de tudo que nós desprezamos... de tudo que deu errado no sistema que nós compusemos. Uma minoria que, desinteressada, acaba sendo prensada entre duas ideias distintas que regem a realidade que você estava inserido, que são os do ideal e da inversão. Tanto que até o fim não soube definir se seria o que é idealizado ou o inverso desta. E agora, também não sabe se o que é. Você é um fracasso que curiosamente é do meu interesse, pois, se tratando em ideias, sua cabeça é como um oco ideológico e sua imagem é disforme. Diferente, por exemplo, de um criminoso que transfere sua identidade de detento para o de um trabalhador, você pode, ao contrário da maioria das expectativas, se metamorfosear no que quiser, desde que haja condições favoráveis para tal. E é quase uma dialética, pois se você é, poderá não ser; sendo fracasso para sucesso, ou, não se sabe. Alguma coisa além dos ultrapassados um e zero. Não deve ser uma dialética, esqueci o que essa palavra significa. Mas bem, você consegue me entender?

Tu é doida pra caralho, ele pensou, o tipo de merda que esperei Anne me dizer. Não reclamou, claro, apenas aceitou. Sempre aceitou tudo que esperavam dele. Só não foi traficante. Que se foda Mathieu. Não venderia sua alma por pouco. Um era maluca? Que se foda também. Olhou para ela, disse que entendia perfeitamente.

— Ótimo... — disse. — O doloroso molde para o corpo é a alma. Você me deixará tocá-la?

Claro. Franker estava atrás de Um. Seus olhos brilhavam de orgulho. Aliás, sentia como se também fosse doido pra caralho, naquele ponto.



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