A Voz da Névoa Brasileira

Autor(a): Saber Hero


Volume 1 – Arco 2

Capítulo 16: A voz da névoa.

Eles saíram do hotel marinho no dia seguinte, pegando o trem até a fábrica de gases número 3 quando já era duas da tarde.

Sobre a viagem, Dois Meia viu os grandes lagos e as florestas que se erguiam pelas colinas ao redor daquele anis marcado pelo rubro sol e as lavandas que cresciam pelas suas margens — tendo pássaros como patos e cisnes que nadavam na extensão e urubus, harpias e águias girando no céu.

As pessoas naquele trem, gente bem vestida que lia um bom livro, que bebia um bom chá, pareciam indiferentes à beleza, aqueles cujos mais tarde Anne diria serem os criadores — gente diferente deles que, ao invés de destruir, criava; cientistas do alto escalão social e político, biólogos, geógrafos, físicos e químicos que iam e vinham quase sempre, residentes e arquitetos das grandes fábricas de gases e das florestas e dos grandes lagos. Gente que naquela época planejava retirar do solo de marte toda alcalina água através de uma reestruturação química e topográfica que haveria nas planícies centrais.

Dois Meia havia visto filmes e lido livros em que normalmente um cientista deveria conter certa célula terrorista com algum plano que seria descrito como ecofascista e que, doravante, seria encontrado algum diabólico eclesiástico profetizando que o fim estava próximo, vontade de alguma coisa divina.

Já era nascido quando Juliano Errantes juntou 10 milhões de fiéis para a caminhada até o monte olimpo. Também estava vivo quando aqueles 12 biólogos morreram em Valle Marineris. A guerra contra tudo que havia fora do distrito ainda estava rolando. Notícias de drones bombardeando os desertos saíam quase todos os dias.

Mas era engraçado, ele agora estava lá fora, vendo uma imensidão verde, azul e vermelho. O que há de errado em querer estar aqui. De querer, por exemplo, matar esses caras que nada diziam e nada pareciam querer apreciar.

Anne, na cabine doméstica, falou sobre a eternidade, que eles não eram mais os seres que um dia já foram. Absurdo, a consciência ainda é a mesma, Dois Meia disse.

— Nada permanece como foi depois de mil anos.

Eles encerraram o assunto. O ócio os havia cansado e os livros deixaram de ser apenas histórias. O bar era escuro e preferiram, lá, silenciosamente, olhar um para o outro. Depois de dois drinks, Anne simplesmente disse que ia dormir fora naquela noite.

— Uma garota? — perguntou.

— Uma comissária.

— Não deixa de ser uma garota.

— Pra atender todos esses fudidos? Não, ela é algo além de uma garota faz tempo.

Anne deixou Dois Meia quando já era madrugada. Este, que ficou sozinho naquele bar, comendo amendoins e tomando chopp quente, não tinha o que fazer e, curiosamente, se recusava a dormir.

A bancada brilhava parcamente um branco azulado e, da janela, viu os postes de luz que acompanhavam os trilhos, a lua e as estrelas. A floresta era apenas uma sombra, que a ele se tornou uma imagem aterrorizante, enquanto a bebida batia nos córneos e a azia tomava sua alma.

Se sentou na poltrona da cabine, próximo da janela, e ficou observando a vastidão de sombras, escutando o som dos trilhos que se repetiam como num sonho — delirando outra vez com a solidão que não queria e com os fantasmas de outro dia.

Quando se deu conta, já estava na fábrica de gases número 3, vendo os poucos edifícios da sede final da terraformação marciana — os ululantes, de tantos andares que parecia tocar os céus — e os veículos de tração nas quatro rodas e os jalecos brancos e o pessoal importante trajado de terno, conversando entre si, nas poucas casas de chá, ou fumando um charuto, sem que houvesse expressão em seus rostos.

Dois Meia acompanhou Anne até um edifício daqueles, se envolvendo no meio de uma multidão de cientistas e seguranças, indo até o último andar e esperando. Anne tinha uma reunião e Dois Meia aparentemente era a escolta.

Depois, ela o levou até uma garagem no subsolo, pegou um veículo quatro por quatro, e foi pelas trilhas da fábrica de gases, sem dizer nada para Dois Meia.

Na viagem, não fumou, como se fosse obrigada a se controlar. Também não cheirou. Quando Dois Meia decidiu que queria, que precisava fumar, ela disse que não, que o cheiro ia espantar alguma espécie de animal e ia foder pra ela.

— E essa porra de uma tonelada não deixa cheiro?

— Não. É adaptado. Motor não faz som, o pneu é de material biodegradável... os bichos daqui pensam que é só um animal muito grande. Eles não se aproximam, mas também não ficam espantados.

— E o cigarro?

— Sei lá porra.

Anne não ia muito rápido também e o carro balançava entre as trilhas no meio da fábrica.

Esta, idealizada com árvores transgênicas de ciclo breve, tinha como objetivo enriquecer a atmosfera com metano. Haviam 39 cepas diferentes de fungos e bactérias, cujo transformava matéria orgânica em gases de efeito estufa. No coração da fábrica, por exemplo, era possível o trânsito humano apenas com tanques de oxigênio. Esses decompositores, criados pela empresa The tree of saviors, foram idealizados primeiramente por Franz Meri, no ano 536, depois da grande queda, ou pelo menos foi o que Anne disse.

— Você vai ter que estudar também. Saber de que forma deixamos de ser exploradores da galáxia, para uma pequena civilização subdesenvolvida. Eu ficava fascinada. Tanto que metade do dia eu dormia. Quando acordava, magicamente sabia todas as respostas.

— Você é uma gênia.

— Pra caralho, né.

Dois Meia havia estudado sobre a grande queda na escola. Pensar nisto, ou melhor, na sua classe, naquela cadeira rabiscada, entretanto, parecia ruim — naquela gente, nos seus rostos. Preferia, por outro lado, lembrar-se de nada. Tudo é uma constante e passado é passado. Claro, sentia também que estava morrendo. Aliás, sentia que o mundo estava acabando. De todas as formas, era melhor do que saber que quem estava arruinado era ele. Se bem que nunca esteve tão bem em toda sua vida.

— Eu gosto daqui. — Anne disse, como se incomodada com o silêncio. — É diferente de lá. Aqui tem som, sabe. Pássaros, coisas nos espreitando entre os galhos e os arbustos. Nunca é silencioso. Vozes vem e se tornam o que nós pensarmos que é.

— Eu não quero admitir. — respondeu. — Aqui não parece ser lugar nenhum.

— Não é!

As trilhas se tornavam mais estreitas, enlameadas. Marcas de pneu anteriores eram como fantasmas e uma névoa parca dançava junto com as folhas das árvores.

— Um dia eu estava vindo para cá, à noite. Pode parecer loucura — eu parei o carro, desci, e próximo de umas raízes, repousei. Era uma noite tão escura quanto todas as outras.

Ela parou por um momento, refletiu. Disse que não era tão escura quanto todas as outras, que era mais, uma noite de puro breu.

— Eu fechei meus olhos, tentando saber o que era mais escuro. No fim, a cegueira pareceu claridade. Não sei se já experimentou, mas parecia como se eu estivesse a ver coisas. Formas, melhor dizendo, se tornando, e outras sendo perpetuamente intangíveis. Quando me dei conta, o som da névoa começou a se moldar e eu pensei que estava louca.

— O que é o som da névoa.

— Você sabe, é a voz do escuro.

Dois Meia olhou para ela. Esperava uma resposta de verdade. Ela, por outro lado, não se importou, tagarelando ainda sobre como aquela sensação de pura escuridão a tomou e a forçou a dançar entre as raízes expostas e as estrelas.

— Eu não tinha cheirado, nem fumado. Tava tão pura que o momento parece ser puro. Não quero pagar de inocente. Tudo estava tão escuro e maravilhoso. Eu não sabia de nada.

— Parece loucura.

— O que?

— Uma voz para o escuro.

Para a névoa também, ela disse. É a voz da névoa, que lentamente vai rondando, distorcendo os sentidos, te consolando.

— Eu menti, — Anne continuou — não fodi com ninguém. Você sabe, quando te falei sobre querer estourar meus miolos. Sexo não nos livra de nada, só piora as coisas. O que houve foi isso... repousei sob as estrelas e me esparramei no breu.

Dois Meia entendeu porra nenhuma. Ficou pensando, porém, numa escuridão sem tamanho. Talvez essas luzes fossem um pecado, ele disse para ela, e ela, sorrindo, confirmou.



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