Volume 1 – Arco 2
Capítulo 15: O subsolo de marte.
Acho que você finalmente entende, ele escutou dizer, viver é bem mais do que apenas comer e morrer. Matar, ser feliz, depois se entristecer totalmente é tudo que nos resta. Nem tempo você tem para pensar sobre o que significa. É uma coisa boa que esteja conosco. Atiradores se espalharam naqueles edifícios, no caso de você ser incapaz. Ser útil é algo que normalmente não é possível, você sabe, eu sei. Utilidade é uma raridade. Eficiência. Economistas ortodoxos dizem o que é, dizem sobre produtividade. Você é. É só executar o trabalho. Quer dizer, executar o trabalho no menor tempo possível. Você fez com excelência.
— Isso é uma declaração?
Dois Meia olhou nos olhos de Um. Ela parecia feliz, sorridente.
— Você é o que nossa corporação precisa... só isso.
Depois do incidente com Harold Goldberg, Um foi em pessoa até o hotel onde Dois Meia estava hospedado, carregando uma garrafa de conhaque e um documento do qual ela própria afirmou que era pra Dois Meia assinar. Sobre o que é? Ele não teve a oportunidade de saber. Não leu também, bêbado como já estava. Foi gin, reservado por um outro político desimportante, depois cerveja, que roubou do freezer do quarto. Conhaque que Um trouxe só serviu para fechar o caixão.
Ela o observava nesse estado, tinha um sorriso. Disse que era assim como se vivia a vida. Disse também que faltava só uma puta, que se quisesse, ela mesma pedia.
— Para que? — Respondeu. — Estou bem acompanhado.
E ela riu, ou pelo menos tinha um sorriso que ele bêbado não souber entender sobre o quê; dizendo que ele não sabia onde estava se metendo e que aquela dali não era ela, era um corpo feito com a imagem dela, onde talvez sequer memória restasse no dia posterior e que nenhuma memória havia no anterior.
— É um robô.
— Só queria falar com você.
— Num casulo?
— Você matou um homem.
E daí, quis responder. Que momento ele comeria ela. Fosse robô, androide, replicante. Que porra fosse: que momento ela seria dele. Disse que estava bem, se ela não tinha outra coisa para contar. Sim! Respondeu, você deve ir para Iron Gate, Anne está te esperando.
Depois foi embora como chegou, sem dar satisfação alguma. Só deixou o conhaque e um computador de mão com 10 mil RPs jogado na cama.
Dois Meia sentado naquela mesma poltrona, por outro lado, pediu um rico jantar. Depois, vomitou no banheiro. Quando viu que não dormiria, assinou um canal pornô e se masturbou até as cinco da manhã.
Decidiu deixar o hotel quando percebeu que não ia gozar; quando as luzes da manhã entravam docemente através da janela. Não tinha ressaca, só estava cansado. Seu rosto encostado na janela do táxi, cenas familiares que iam se passando. O gerente não te disse adeus, nem os serventes ou as garçonetes — indo embora como francês. Não como se fosse apenas cinco da manhã e ninguém quisesse dizer nada para ninguém. Era apenas ele e esse sentido de ausência. Não soube explicar, entretanto, para si mesmo e apenas se foi, como sentiu que deveria ir.
No heliporto de Frankia, os guardas que te abordaram um dia antes também não o reconheceram. A menina que te ofereceu biscoitos estava lá e apenas pediu, novamente, uma ajuda para outra causa social. Os olhos dessas pessoas descaracterizados de tudo, enquanto se mantinham em suas funções eternas.
ou talvez fosse o contrário, de Dois Meia não sendo ninguém, como se sua própria consciência fosse uma mentira.
Sozinho, olhou o por do sol pela janela panorâmica do heliporto. Naves saíam, gente ia e vinha. Escreveu que era última pessoa do mundo no corrimão que descascava.
Às seis da tarde, Dois Meia chegou no heliporto de Iron Keep. O computador de mão entregue por Um tinha ainda 8 mil RPs e mensagens. Ele iria se encontrar com Anne para ser escoltado até um bunker fora dos distritos. Anne disse que eram dois dias de viagem em zona não mapeada.
Prevendo o tédio e a solidão, comprou um livro na biblioteca do heliporto de Frankia. Memórias do subsolo, era o nome do livro, escrito dois mil anos atrás e que fazia parte da seleção dos clássicos recuperados do servidor Aeterna de Júpiter. Era da décima quarta tiragem, com comentários de Franz Méri.
Dois Meia leu sessenta páginas, vinte num café e o resto em viagem na nave particular. Jogou fora, entretanto, quando a prostituta entrou em cena.
Curiosamente, numa feira em Iron Gate, reencontrou num sebo o mesmo livro, mas na edição oitava, com comentários de Maria Vasconcelos. Ele comprou pela bagatela de 3 RPs e terminou de ler. Os comentários foram que Liza poderia ter sido Sônia, mas não havia redenção para o homem do subsolo. Dois Meia procurou num site a respeito de Sônia e acabou encontrando outro livro, crime e castigo.
— Eu li esse, mas faz muito tempo. — Anne o esperava na estação ferroviária, próximo do paredão de controle de umidade. — Não sabia que você gostava de ler.
— Me deu vontade... gostei da capa.
— Eu tenho uma edição de a metamorfose, com comentários dessa mesma editora. Acho que você vai gostar.
Estavam tomando café na estação e não tinham muito o que dizer um para o outro. Anne estava vestindo uma camisa social branca, calça cargo e botas. Dois Meia estava com o mesmo terno de dias, com sua gola manchada de vômito e suas mangas com sangue. Seu cabelo estava desgrenhado e seus olhos tinham olheiras vibrantes. Não tinham o que dizer.
Ela olhava o sol pelas janelas da estação. Depois, disse que era melhor irem para um hotel primeiro, que era melhor tomar um banho. Ele concordou e pegaram um carro.
Dois Meia era sincero sobre isso e apreciava a companhia dela. Não sabia, claro, se ela apreciava também. Mas era bom para ele, andando naquele mesmo T-600, escutando músicas de um passado nostálgico.
No carro, ficaram em um trânsito por quase duas horas. Sem estresse, claro. Ela oferecia cigarros, contava histórias, vezes engraçadas, vezes fascinantes, e cantava sozinha, ou vez ou outra acompanhada de Dois Meia.
No hotel mesmo, chegaram só quando estava quase escuro, num hotel chamado de Marinho, depois de terem comprado roupas. Dois Meia foi direto para o banheiro. Alugaram apenas um quarto.
E lá, se encarando no espelho, viu que seu rosto não era dos melhores, que seu olhar parecia mais cansado e que seu cabelo era uma bagunça completa. Também sentiu seu odor, e considerou que não só de banho precisava. Anne foi educada ao não comentar, ele pensou, se encontrando com ela no quarto.
— Você parece melhor. — Ela disse.
— Faz tempo desde não que me vejo assim.
Ela tinha um meio sorriso, um sorriso incomodado, um sorriso que desabou Dois Meia naquela poltrona e o fez esperar por um longo discurso. Ela tinha um olhar sério e ele também endureceu o seu. Pode me dizer, é o que parecia. E ela disse:
— Você cometeu um crime sem nunca ter sido um criminoso. — Ela repetiu em voz alta a sentença duas vezes. Quando se deu conta que não fazia sentido o que disse, se pôs a continuar:
— Na minha primeira expedição... sabe, eu nunca contei pra ninguém e parece bobagem, mas na minha primeira expedição eu meio que fiquei a dois passos de estourar meus miolos. Me entende. Ficava sozinha em hotéis, com aquelas garrafas de bebida, vendo as naves na noite escura. Também cheirava, gostava dessa merda. Foi só depois de um mês que consegui me recobrar de quem eu ainda era. Foi após uma transa, o melhor da minha vida, que durou a noite toda com uma linda menina chamada Mary. Ainda tenho o contato dela. Nunca foi da mesma forma, infelizmente. O que eu quero dizer é que você vem lidando bem.
Ele acendeu um cigarro, sua vista estava turvada. Talvez eu só tenha que foder com alguém, pensou. Anne passou pelos seus olhos, mas não sentia tesão algum. O que eu tenho que fazer hoje para ser feliz?
— Eu tenho bebido todos esses dias. Ninguém me pediu identidade. — Dois Meia se levantou, foi até a janela. — Eles não se importam que uma criança esteja no fundo do poço...
Anne riu. Disse que ninguém era pai dele para ficar se importando com o que ele fazia ou o que deixava de fazer. Se ele fosse uma criança, que tratasse de não ser mais.
— Aliás, você tá aqui porque quer. Não fala merda e segue sua vida, sabe.
Ele se virou para ela, com um sorriso idiota no seu rosto.
— Quem tá falando merda aqui é você. — disse e depois foi até o bar, fez um copo de uísque e continuou:
— Eu trabalhava de meio dia às oito para receber duzentos Rps por semana. Uma cabeça, uma mísera cabeça, me fez ganhar do que eu ganharia o ano todo. Eu estou aqui porque qualquer outro lugar seria o inferno.
Os olhos de Anne eram como frios diamantes, não parecendo se importar, mesmo quem em contrapartida, se importassem completamente. Talvez fosse mais para ela uma questão cotidiana, algo que lidava já vida inteira, perguntando se era assim, se qualquer outro lugar realmente era o inferno, então porque ele se sentia dessa forma.
Ele escutou, abaixou a cabeça. Acabou fazendo, para ela, uma bebida que acabaria sendo recusada. Não fez questão, claro, e bebeu numa golada só o copo de uísque dela. Não pareceu navalhas, foi o que pensou, era como água.
E exausto, ele se sentou naquela poltrona ao lado da cama, olhou nos olhos dela. Disse que estava cansado. O inferno era que havia lutado a vida toda para estar sempre no último lugar onde gostaria de estar.
Ela não respondeu nada.
— Aquele merda do Mathieu... — Ao longo do discurso, ele se alterou poucas vezes. Parecia que tudo de ruim dentro de si estava na flor da pele, prestes a sair como vermes. — Ele me dizia que se importava comigo, que queria que estivesse com ele. Vê se pode, queria que eu fosse traficante. Porra do Hide... esse daí se matou. Você sabe disso? Ele se matou! Dizia que ia fugir comigo, mas na primeira oportunidade rasgou seus pulsos que nem a porra de um arrombado. Não dá para andar sozinho nesse mundo. E as poucas pessoas que pareciam se importar comigo me foderam. Ou sei lá, mas eles queriam me foder. — Anne o escutava com atenção, com seu mesmo frio olhar. — E como segue em frente assim? Você sabe? E Um vem e me diz que é disso que a corporação precisa. O que eu preciso? Harold Goldberg era um homem de verdade. Tinha família, tinha tudo e tá morto! E eu estou vivo, não só vivo: mais do que vivo. Como você pode dizer que estou aqui porque eu quero?! É um privilégio. Também não tenho nenhum outro lugar para ir.
— Então por que você tá se sentindo assim?
Ele olhou para ela surpreso. Não acreditou no que ela disse e também não acreditou que faltava resposta na sua boca. Apenas uma, uma de verdade. Anne o observava e ternamente se aproximou, tocou no seu joelho e disse que estava tudo bem.
— Sabe porque Liza não salvou o homem do subsolo? — Ele perguntou.
— Ela não tinha que salvar ninguém.
Sônia também era uma puta, ele se lembrou.
— Só deixa pra lá.
Por algum motivo, ele sentiu o desejo de simplesmente deitar naquela cama e dormir por uma semana inteira...