Volume 1 – Arco 2
Capítulo 14: Cafetinando uma negra borboleta.
Quando ele chegou no hotel, foi abordado por um mordomo, como se ordens anteriores tivessem sido dadas no caso de alguém vestido como Dois Meia chegasse, dizendo que um quarto havia sido reservado e que champagne e um jantar o aguardavam, cortesia de um homem que ele não se importou de perguntar, mas que o mordomo fez questão de dizer que era André Tolaux, político que mais tarde lembraria como o representante executivo final dos distritos não-desenvolvidos.
No prato, uma carta: ‘Errare humane est’. Dois Meia rasgou, não fazia ideia do que essa porra significa. E sobre o jantar, que comeu solitariamente assistindo o telejornal, ele elogiou. Um frango macio que na verdade era pato de uma raça não transgênica, o que o tornava bem caro — não entendia também porque a conservação dos genes originais eram tão valorizados (um gosto da Terra, talvez? O que era a Terra pra começar).
Mas bem, sozinho naquele quarto como já dito, viajou por horas, sem pensar ou imaginar sobre x ou y, como se cansado, bebendo em catatonia, fumando viciosamente, num ócio que trazia pensamentos eróticos sobre pedir ou não uma puta em nome de Mathieu, dos velhos tempos que não viveu, também lembrando-lhe da tristeza, decidindo que não, que puta nenhuma te satisfaria, que mulher nenhuma merecia sua pica, desejando ir pro bar, conversar com algum fodido que nem ele, mas já estava tão bêbado e tonto que simplesmente vomitou no vaso de porcelana e molhou os tapetes de linho.
Eram quase uma da manhã, e ele se olhou no espelho, nessa descrição: em pé, seu terno caro com traços de vômito, rosto inexpressivo. Descobriu o tédio quando um bocejou desaviado o pegou ecoando neste vazio. Sobre o dossiê, já havia lido umas dez, quinze, talvez vinte vezes. A televisão holográfica era um silêncio com imagens. Na janela, a cidade parecia agitada, mesmo assim, teve a sensação de vê-la vazia como River City. De repente, sentiu falta de Anne, vendo o rosto dela no espelho, dessa Anne que era, ou pelo menos parecia, animada, carismática mais precisamente, seu tudo desde que levou uma bala no estômago.
No fim, o tempo passou e ele não fez nada. Cozinhando suicídio, pegou na arma que foi de Mathieu e depois de Anne e agora sua, e pôs o cano na boca, apertou o gatilho. Não tinha balas, o que era fácil. Ele era um covarde — um homem ridículo.
As duas da manhã, bateram na porta.
— Pode entrar. — disse.
E uma puta que havia sido reservada por um político chamado Lantlôs, entrou, dela o felicitando por um suposto trabalho bem feito. Não entendeu nada, olhando nos olhos dela com desconfiança, dessa puta chamada Carol — nome que não era de verdade, mas que não o importou, ou pelo menos não o importou quando viu seus braços frágeis e a pequena bolsa que carregava.
O computador de mão estava na maleta junto de outras tralhas tocando e ela, que apenas disse uma ou outra palavra, entrou no banheiro. Dois Meia a acompanhou com os olhos. No telefone, Anne deu uma risadinha, chamou ele de safado.
— Ouvi que recebeu vários presentes.
Dois Meia até imaginou que cara ela tinha, sua expressão, o sorriso.
— Isso acontece sempre?
— Somos superstars!
Dois Meia ficou escutando Anne falar e falar. Ela já estava em Iron Gate e ia fazer a segurança de um geólogo com conhecimento de grande valor, enquanto este explorasse a fábrica de gases número um em Sinus Sabeus, próximo da fronteira de uma das nações de Marte, chamado Roma, com seus quinhentos quilômetros quadrados e uma fauna e flora que era um orgulho da humanidade, vasto com seus sete rios e nascentes artificiais, e mais de 546 espécies diferentes (esse geólogo planejava introduzir, junto de um amigo biólogo, em 50 anos, mais 325, o que parecia absurdo, mas não tanto para não investir.).
— Isso é muito bom.
— Do caralho né. Amo esses troços.
Aí ela desligou, ou o sinal caiu e a prostituta saiu do banheiro, se sentando na cama. Pegando a mão de Dois Meia, que encarava aqueles gigantes olhos azuis, seus pequenos lábios rosas, seu fino nariz que se projetava para baixo, teve um toque frio, desgostoso, que ela já sabia fingir não a importar — vendo que o pau dele já estava duro, levando aquela infanta mão entre os seus seios. O que você quer fazer? ela pergunta.
— Escolhe um filme para mim.
Sorriu.
— Que tipo?
O que você mais gostar, respondeu.
Ficou o resto da noite agarrado com ela, vendo filmes eróticos (não pornôs) e readaptações de clássicos da literatura (conhecida, ou melhor: não perdida). Ela adormecida em seus braços, exausta de perguntar se ele não queria foder e ele caoticamente vendo aquelas atrizes nuas com seus cigarros, conversando com seus espelhos, languidamente a procurar algo para fazer — entediadas e entediantes na maior parte do tempo. Na manhã seguinte, a prostituta perguntou do porquê ele não querer transar com ela. Ele estava nervoso, o coração parecia querer sair pela boca.
— Não gosto de putas.
Seria virgem pra sempre. Entretanto ela riu. Disse que não gostava, também, de foder com adolescentes. Era até contra lei, mesmo que ela tivesse sido contratada por gente acima disso tudo.
— A noite foi divertida, pelo menos.
Dois Meia sorriu, disse tchau. Devia ter pego o número dela. Devia ter transado com ela. Até anal ela ofereceu — tudo, disse com um dedo na boca, com aquele olhar que pensou ter visto apenas em pornô. Ela até o fez se esquecer do seu destino, daquilo que havia aceitado sem saber, mas que, enfim, sabia muito bem desde o princípio. A arma estava na maleta. A puta estava no peito. Toc Toc, batiam novamente à porta e infelizmente não era ela, com aquele sorriso — retornando para ser tomada, para ser, como desejou, fodida — era apenas o mordomo, com uma carta e outro jantar pomposo (que não comeu).
— O homem caminha.
E Dois Meia também caminharia.
Ele saiu do hotel de manhã cedo, pegou um táxi e se dirigiu para o centro da Giant Tree. Lá, ficou no parque central, cercado pelos edifícios do centro comercial e shoppings center. A cidade, como sempre, estava lotada, parecida com os filmes que viu (mesmo que fosse um dia frio).
As pessoas passando através das estradinhas ao longo dos campos verdes e árvores, os carrinhos de lanches, os balões, os piqueniques, as fontes. No bolso do casaco, uma arma. Era branca. Mataria um homem. Ao seu lado, sentou-se um idoso sem nenhum aparato biônico, nem marcas de enxerto, nem cicatrizes aparentes de cirurgia no rosto. Um homem puro, como ele, que lia um livro físico, coisa que nunca viu em vida, apenas em filmes e séries. Livros digitalizados eram imensamente mais baratos e acessíveis, então Dois Meia supôs que ele tivesse dinheiro, que fosse um velho rico e conservador, um velho que te diria sobre a ética, sobre a moral — um homem com as palavras certas.
Infelizmente, o velho não ficou ao lado dele nem por dois minutos, indo embora assim que Dois Meia perguntou sobre o tempo. O dia está frio, disse, recebendo de resposta uma bufada e uma despedida. Foda-se, pensou, também se levantando daquele banco e caminhando pelo parque, sem direção.
Mataria um homem. Um homem feliz. Um homem que não era ele.
No computador de mão, viu que eram já duas da tarde. Com fome, procurou um restaurante no centro, comendo por preguiça um sanduíche de rua, num café, sentado na parte externa, numa daquelas mesas com guarda-sóis, de madeira. Fingia ser um distinto estudante de uma escola particular que obriga os alunos a ter uniformes caros que apenas empresários bem-sucedidos ou políticos poderiam pagar. Algumas estudantes, nesta descrição, até perguntaram se ele fazia parte dessa escola ou daquela outra, ou se já era um estudante universitário.
— Não tive tempo para isso. — disse. — Minha escola foi a rua — se importam que eu acenda um cigarro? Não... quer um também? Ótimo. — trabalho numa empresa, funerais. Negócio lucrativo. Se eu não sou jovem? Claro que sou...
Às quatro da tarde ele se despediu delas, pegando um táxi até o bairro de Village Vilvadi, onde o alvo estaria comendo num bar japonês (o que ele não fazia ideia do que era).
Ele viu esse homem, Harold Goldberg, saindo do táxi às cinco da tarde. Dois Meia sentado num banco, o observava do outro lado da calçada, acompanhando seus passos até o restaurante, onde, por burrice, ou capricho, ou apenas uma desilusão com alguma segurança divina, sentou-se próximo da janela.
Dois Meia foi até ele. Luzes Neon de propagandas de refrigerantes e outdoors gigantes azuis, roxos, verdes, brilhavam contra o vidro embaçado do bar e contra o rosto cujos tons e linhas Dois Meia foi incapaz de discernir, parando em frente enquanto pessoas passando atrás de ti tinham também seus rostos feito um borrão.
É um dia frio, a arma no bolso do seu casaco te disse, e você vai matar esse homem. Parece loucura. Tenha calma, também a ouviu dizer, sua mão treme, entendo, mas você vai arrebentar o rosto desta criatura. Me escuta, essa face verterá ao nada simbólico e também ao nada divino. Boa sorte.
Dois Meia congelou, observando os pauzinhos se mexerem, a cerveja gelada numa caneca, os símbolos indistinguíveis. Era uma pintura que significava tudo, com as cores sendo e também se tornando e depois, em algum momento, te devorando, não havendo nenhum instante em que o tempo voltasse e o seu dedo agisse contra essa coisa e o matasse.
Foi assim, por um, dois minutos.
Depois o vidro quebrou e Dois Meia se foi, sem observar a cabeça sanguinolenta e a multidão se aglomerando. La vie em rouge, era o título de um filme que queria ver mais tarde. E não, não falava sobre assassinatos. Na verdade, só soube mesmo o que fez quando se sentou na poltrona do hotel e ligou a televisão holográfica, comendo uma coxinha de frango frita, acompanhado de uma cerveja IPA. Mesmo assim, sentiu nada. Cafetinou a negra borboleta e não sentiu nada.