Volume 1 – Arco 2
Capítulo 13: Os distantes sons de marte.
Naquela tarde, Dois Meia comeu folhados, tortas, se empanturrou de empadas, brioches e cerveja. Nadou no rio, se sentiu vivo — tanto que suspeitou de tudo quando voltou para o carro. Suas mãos tremulas, afivelando o cinto com esforço. Uma coisa ruim no peito parecendo querer matar. Olhou para Anne, ela parecia serena, dando partida no carro, com seus olhos verdes brilhando, com um sorriso no seu rosto, inocente, análogo aquele céu azul de poucas nuvens, lúdico — sem parecer que havia assassinado um homem anteriormente.
O carro correndo por aquelas ruas de ausência, sem gente — um homem havia morrido, isso também era ausência. Curiosamente, ele teve este mesmo sorriso de Anne, este mesmo olhar despreocupado, enquanto comia folhados, tortas... quando nadou no rio como uma criança, sem se preocupar de molhar sua roupa debaixo ou qualquer outra coisa.
E quando Um ligou, o tirando destes pensamentos finados, um sentimento de felicidade acabou tomando sua alma, finalmente, sobre dia ter sido incrível, independente de tudo, memorável, mesmo com os pesares, e sentiu um estranho nojo por si mesmo.
— Como foi a excursão. — Um perguntou.
— Como um passeio no parque. — Anne respondeu, olhando Dois Meia com um sorriso, como se fosse uma piada entre eles. Dois Meia sorriu, também (nunca sentiu tanto nojo de si mesmo).
— Ótimo. — disse. — Até Giant Tree. — Desligou.
Na interface do console do carro, arquivos criptografados em DCW-3 eram postos numa pasta de dupla instância. Anne pediu para Dois Meia realocar os arquivos na nuvem de um servidor chamado PIP. Poucos toques na tela do console e um Pop-up apareceu, com a animação de um cachorro agradecendo. Dois Meia não entendeu qual era a intenção.
— Você tá fodido. — disse Anne e Dois Meia não respondeu nada. Ela deve ter lido o arquivo num servidor portátil, ele pensou.
E lendo o dossiê criptografado, teve certeza — o arquivo no console era um PDF, simples, e na primeira página tinha o nome de um homem e o seu. E ele ia matar este homem. Não era para ser grande coisa (mas era, infelizmente). Os cadáveres que viu nos becos e ruazinhas de Redneon, retornando, sem presença nenhuma — como latinhas vazias num banco ou numa calçada. Os cadáveres que criou (como aqueles homens, naquele carro, conflagrados, retornados ao pó) e criaria, entretanto, e que ajudou a criar, assombraria mais do que dos anônimos que viu. Não importa, ele disse para si mesmo, estou até feliz de ser assombrado. Não desejava ser como Anne, que matava e depois sorria — queria ser como Sofia, matando apenas pelo dinheiro. Se bem que Sofia era pior, cafetinando negras borboletas — sem limites expostos, não diferente de Anne; retornando ao início, em que moral nenhuma havia. Te deixava deprimido pensar, ansioso. Lembrou de Hide, o que, naquele ponto, já era comum. E para Anne, quis saber se ela sentia alguma coisa, quis saber o que ela pensava, do que ela achava dessas paisagens abandonadas, de lotes bem definidos de terrenos vazios, se ela, assim como ele, via uma cidade imaginária passando nesse vazio.
Ela apenas fumava, ele via, sufocado na fumaça alheia e no silêncio, perguntando a ela, de repente, como é Um.
— Você não viu? — Ela disse. — Ela é aquilo mesmo, não tem mistério. — Seus olhos verdes, seus cabelos ruivos. — Quer dizer, não se aproxima demais... mesmo se ela deixar. Ela te fode e tu nem percebe.
O carro ultrapassava os terrenos vazios, se aproximando de um pedágio fortemente guardado por militares com fuzis de assalto, acompanhados de tanques de asseguramento social e artilharia antiaérea. Dois Meia não se importou com eles, mesmo que o fuzil fosse apontado para seu rosto — mais preocupado em observar e acompanhar os movimentos de Um em seus sonhos.
— Vocês estão retornando de uma propriedade assegurada pelos Distritos Unificados Humanos e preservada pelo destacamento de asseguramento institucional.
— Tá bom, tá bom. Agora vai tomar no seu cu.
Anne abriu o vidro do carro, deu o dedo no meio para o militar que, aturdido pelo broche, abaixou o fuzil e apontou que deixassem passar. Dois Meia riu e Anne riu com ele, dando partida no carro e seguindo direção a autoestrada.
— Esses cuzões... Quem viria para esse fim de mundo. — disse, com um sorriso. — Toda essa coisa.... você sabe, não sabe? Essa cidade é construída por gente como a gente, então é óbvio que todo mundo já sabe sobre ela. Tentar esconder da mídia, desses políticos de oposição... nada disso faz sentido. Mas é importante, porra (e como é importante). Uma demonstração de força. Todo mundo sabe, mas vão fingir não saber, até o dia que quisermos que eles realmente saibam. Claro, uma putaria generalizada — quer um cigarro, um cigarrinho — e você sabe...
— Quem é que não sabe? — Ela pareceu não entender.
— Foda-se! Liga o rádio, eu odeio essas partes. Nada faz sentido aqui. Não tem gente, não tem música, não tem nada. Um vazio, me entende. — Dois Meia queria saber onde ela queria chegar.
— Não pega sinal.
— Não importa.
Pela autoestrada, prosseguiram em silêncio, atravessando campos verdes e bosques, passando pelo rio através de uma ponte coberta. Ela pareceu distante, como o gado que era criado naquelas colinas, como os campos de trigo e milho que se estendiam, com o céu gelado expondo poucas nuvens. Em algum momento, Dois Meia se cansou, ficou com sono, encostando sua bochecha na janela. O mundo é bem bonito, pensou. Mas isso não é o mundo, nós criamos isso. Anne tinha uma expressão estranha, parecendo estar inquieta, se calando de repente, por todo caminho, só abrindo a boca quando parou, de repente, próximo de uma cerca que dava, adiante, a um lago.
— Sabe o que eu odeio? — Ela disse. — Esse silêncio. Odeio essa quietude, essa tranquilidade. Me dá nos rins, sei lá; prefiro levar um soco no estômago do que isso. Então, não sei... me dá um tempo, por favor, só por agora.
Ela acendeu outro cigarro. A sombra da cidade fantasma ficou para trás a muito e Anne pareceu bem bonita, com aquela fumaça no seu rosto. Dois Meia perguntou o que que havia, ela respondeu que nada, justamente nada.
O carro deu partida de novo, serpenteando colinhas e campos, sem que eles dissessem algo, outra vez, um para o outro. O cheiro do cigarro, campos verdes. Pareceu maçante depois de um tempo. Pareciam solitários, escutando ambos, quase no mesmo tom, que além de cansados do silêncio, também estavam de não sentir nada.
Entretanto, quando pegaram uma transversal, o rádio tocou, com a cocaína no nariz dela brilhando — sintetizadores interpolavam através da batida. Deliraram, enquanto ele olhava para ela e ela não tirava os olhos da estrada. A bochecha encostada na janela. Nunca se importou, de verdade, com nada. Os distantes sons de marte... era o nome da música que estava tocando. Sua mãe amava. E era engraçado, porque desde a morte dela, nunca pensou em escutar outra vez, muito menos cantar os poucos versos que ainda lembrava.
...Distantes sons, meu amor;
Que vem e que vão
Distantes sons de marte, paixão;
Distantes sons do verão;
Pois morri no cuspe de seu desprezo
Dancei ao redor do seu terno peso
E como defunto cantei sobre a mazela
Sobre a falta que tu faz em minhas veias
Anne riu, bateu na perna de Dois Meia com carinho. Disse que não esperava, disse que também gostava da música.
— Ela é antiga, sabe, e eu amava escutar com minha mãe. Era nós duas o dia todo — eu em cima dos pezinhos dela, sendo conduzida. Era lindo.
Dois Meia também sorriu.
— Eu nunca soube do que se trata a música. Na verdade, só me lembro dela por conta da minha mãe.
— Escuta ela toda, ela é assim...
Os distantes sons de Marte, querida
Sons daqui para toda vida;
Distantes sons que dançamos, amor,
Tocando mãos calejadas de ferida.
Canção que vem, que vai e não fica,
Rodando através da avenida
Como o baixo que canta conosco
E desaparece logo em seguida.
Distante tão como seu beijo,
Distante tão como ficamos,
Estranhos em delírios constantes
Que nunca vão adiante.
Pois morri no cuspe de teu abandono;
Dancei sob a solidão e o cosmos;
E cantei aos defuntos sobre a ponte,
Com meus dois passos, a cachaça e o imbróglio.
Anne disse que era bem popular, que tocava direto nas rádios, o que era incomum, já que só tocavam músicas gospel na época. Os eclesiásticos controlavam quase todas as rádios, ela disse. Não à toa, essa também se tornou uma música de protesto, mesmo que Dois Meia não entendesse assim. Para ele, essa era uma canção de conformidade, de viver sua vida como um ninguém, dançando uns nos pés do outro. Não disse para ela. Pensou enquanto a bochecha estava encostada na janela, onde adormeceu. Anne, curiosamente, o deixou dormir; não cantando, não pondo músicas, no silêncio que disse odiar. Não dormiu muito também, acordando depois de uma hora, no estacionamento de um heliporto que ainda estava em construção, com vigas de metal expostas e paredes incompletas de concreto e aço. Nenhuma nave ali chegava ou saía, havendo apenas alguns trabalhadores e máquinas. Anne, o cutucou, disse que era hora de ir.
— Eu tenho que ir para Irongate ainda essa noite, então vamos logo. — disse.
Tudo bem, Dois Meia respondeu, sem responde-la realmente, saindo do carro com o corpo pesado, indo com Anne até os corredores inacabados do heliporto, passando por trabalhadores suados, máquinas em exaustivo ofício, debaixo de fuligem, fagulhas e fios expostos, até a saída que dava num pátio amplo onde uma pequena nave estava estacionada.
Essa nave, um paralelepípedo (talvez um pouco torto), tinha duas asas, quatro motores laterais que se reclinavam e duas metralhadoras .50 na parte frontal. Na porta de entrada, Dois Meia viu escrito: “Dela para eternidade”. Achou engraçado, entrando e pensando em algum motivo pelo que estava escrito. O interior, que se consistia em dois bancos, um de frente ao outro, com uma mesa entre eles, não era tão apertado, sentando confortavelmente. Até um frigobar tinha, ao lado da mesa, onde Dois Meia pegou uma cerveja para ele e para Anne. Não havia piloto, entretanto.
— Não tem cinto? — perguntou, com Anne respondendo com um sorriso:
— Pra que? É um passeio no parque.
Pela voz da Anne, a nave deu partida e assim que as luzes ligaram, os distantes sons de marte tocou novamente. Dessa vez, entretanto, ele não cantou. Ficou olhando Anne tomar uma cerveja e se enrolar com os fios de uma caixa de um dispositivo que ele nunca pensou existir.
— É um computador. — respondeu ao vê-lo curioso. — Um neurolink. Quem tem esses trecos aqui... — Apontou para o pescoço. — Quer dizer, não dá pra ver, mas finge que tem um negócio preto com umas luzinhas... é uma CPU, basicamente, que processa dados biológicos, dados digitais e quânticos, até certo ponto (tem dificuldade com dados polinários de 8 instâncias ou mais). Depois que você terminar, Um vai te oficializar também, então não precisa ficar me encarando assim.
Alguns garotos da sua antiga escola, ficaram birutas depois de ter fritado o cérebro com dispositivos ilegais. Seis Nove, Trinta e três... lembrava o números deles ainda, mesmo que o contato com eles fosse quase nulo. Neurolinks, essas merdas, eram muito caros e a confiabilidade era pequena, caso a instalação fosse feita por qualquer um. Ele não desejava ter uma merda dessas na sua cabeça.
— Me dá outra cerveja. — Anne conectou um cabo numa entrada discreta na sua nuca. — Porra! — gritou. — Filho da puta! — Se desconectou.
No resto da viagem eles não se falaram. Apenas um “me dê outra cerveja” ou, “quer um pino” foi dito, ao longo das horas. Quando a noite chegou, por outro lado, ela disse para ele se cuidar, que noutro dia eles se reencontrariam. Dois Meia ficou ainda mais duas horas na nave, com ela, antes de chegar no heliporto de Frankia, subdistrito C, com aquela despedida prévia ainda na cabeça. Fazia sentido, foi o que se passou. Depois, claro, ela se despediu de novo, fez um sinal de okay com a mão, enquanto ele se afastava do pátio de naves, sendo escoltado por guardas armados até as luzes fluorescentes do heliporto.
— É uma bela noite, não é? — Ninguém o respondeu, prosseguindo através dos agitados corredores e lojas, até as filas intermináveis no terminal de passageiros.
Curiosamente, algumas pessoas o observavam, outros apontaram para ele. Causou certo burburinho sua passagem. Depois, se perdeu em mais corredores, até outro grupo de seguranças (quase civis, armados apenas de tasers e rádios) o abordar e escoltar até uma sala na ala de comunicação do heliporto, pequena e abafada, com ladrilhos brancos desgastados e uma mesa de metal que ficava bambaleando, quase como uma sala de interrogatório.
Dois Meia se sentou sem pressa, bastante ansioso, todavia, enquanto os seguranças se reuniam ao redor dele.
Um homem baixo, calvo, que parecia ter entre 40 a 50 anos, se sentou com ele na mesa, carregando uma maleta
— Tudo o que ela pediu está aí. — Ele disse.
— Obrigado.
Dois Meia pegou a maleta e se levantou, se dirigindo para fora da sala. O homem disse para esperar um pouco, que o táxi não ia demorar. Dois Meia disse que pegaria um por ele mesmo.
— Você não deve pegar qualquer táxi por aqui.
— Eu sei o que eu faço.
Não era bem verdade, mas ele não queria que ninguém soubesse do seu paradeiro. Uma impressão, que acabou por levar a sério. O revólver de Anne no bolso do seu casaco... a maleta pesava. Dois Meia poderia ter o mundo se fizesse tudo certo, o que era inédito. Ele já havia se tornado um dos engenheiros (um daqueles engravatados que, quando a chuva vinha, esperavam languidamente pelos táxis amarelos, fumando um bom cigarro, na mão aquelas maletas de couro, no pé aqueles tênis sociais pretos... e ele era um deles.)
Uma jovem, nos seus dezesseis, dezessete anos (idade dele), se aproximou, perguntando se ele não queria comprar biscoitos para uma causa social que ele não fez questão de escutar. Eram 10 Rps cada biscoito, uma facada. Porém, comprou 10 pacotes, sorriu — disse para ela que podia ficar, que era pra causa.
— Leva pelo menos um senhor, só para provar.
— Tudo bem, tudo bem... eu provo por você.
Quase um velho flertando, sem noção que quando tardasse, ela ia seguir em frente, abordar outro homem como ele que, com gracejos, gastaria uma nota por biscoitos que não comeria, apenas por um sorriso dela. Ele era patético, se dirigindo para a fila dos já ditos táxis com um sorriso bobo na cara, em frente a entrada coberta do heliporto — onde homens e mulheres também esperavam, fumando um cigarro, inertes na realidade em que se contrapunham, com seus olhos quase bêbados observando os hologramas das redes sociais e notícias que o processador convertia em dado biológico, transmitido do cérebro à retina — tendo, inclusive, um discernimento importante, sobre ser mesmo um homem patético, com um sonho patético (depois descobriu não haver sonhos, nem desejos, só estava dançando conforme a música).
— Ei, ei! Ei, você aí! Quer um táxi?
Quando acendeu um cigarro, um homem jovem o abordou. Ficou puto, mas disse que sim. E esse homem, com barba por fazer, tinha seus olhos escondidos por óculos escuros. Dois Meia achou engraçado, já estava de noite. O homem jovem o observando com cuidado, parecendo mais um pederasta do que propriamente um taxista ou assistente de taxista (o que não sabia bem se existia). Pela curiosidade, ou pela comédia, aceitou novamente esse suposto táxi, que no fim descobriu não ser amarelado e que possivelmente não tinha registros ou documentos que poderia consultar após um assalto. Era cômico, uma sátira atrás de uma sátira, e se sentou no banco traseiro. Esse carro (um T-60), se encontrava no estacionamento do heliporto. Naves não distantes sobrevoavam, com aquele som de algum estrondo, ou voz divina, ecoando no apertado e abafado banco de trás.
Para onde vamos, o motorista pergunta. Dois Meia responde:
— Red Velvet, para a Giant Tree.
O carro dá partida e no silêncio, Dois Meia verificava os itens da maleta, retirando o dossiê escrito do alvo, uma submetralhadora não registrada, dois mil RPs. Mataria um homem, ele pensou, e quase que havia se esquecido. Um homem chamado Harold Goldberg, um funcionário público que fazia parte de um grupo pouco relevante, mas que cultuava símbolos e rituais religiosos. Normalmente, as instituições se faziam de burros sobre essas coisas, mas quando esses grupos passavam a tomar partidos, tornando a coisa mais política do que propriamente religioso, gente como Dois Meia ia lá, matava dois, ou três, e o grupo se mantinha na linha. Mas claro, ele não sabia sobre isso. Para ele, para Dois Meia, ele apenas mataria um homem de sucesso, com um bom nome, de uma linhagem antiga, bem conhecida nos anais da Giant Tree, pai de 5 filhas bonitas e amante, até onde se sabia, fiel da sua adorável esposa. Dois Meia faria seu cérebro espirrar pelo asfalto e seu crânio esfarelar com o tempo.
— Você é um empresário? — O ‘taxista’ perguntou, tirando Dois Meia dos pensamentos dele.
— Como soube?
— Que tipo de negócios?
— Funerais.
O ‘taxista’ não perguntou mais nada, só disse que a corrida daria 40 Rps. Dois Meia, que sorria miseravelmente, passou a nota pra ele — apenas uma, sólida, de 50.
— Fica com o troco. — disse e outra vez se esquecia que iria matar um homem.
O dinheiro no bolso do terno dele, fazendo volume numa carteira de couro que ele não namorou muito. Tinha 2000 Rps em notas de 100 e 50 — as pequenas e amareladas notas do distrito. Também tinha uma carteira de identidade, que só quando chegou no hotel que foi capaz de estudar. Mas ele ainda não havia chegado lá.
Estava preso no trânsito da Giant Tree, com aquelas luzes vermelhas e laranjas, os sons de buzinas e gritos. Policiais de trânsito bem vestidos, indicando quem podia e quem não podia passar, tendo, ao longe, a revelação quase bíblica da silhueta dos edifícios, dos feixes dos clubes e um céu estrelado. Dois Meia continuou a ler o dossiê. Lembrou que mataria um homem. E é engraçado, pois enquanto sentia a vida desta pessoa hipotética estar completamente atrelada a sua falange, os distantes sons de marte tocou, na rádio do motorista, bem baixinho, sem as batidas eletrônicas e os sintetizadores, com um solitário violão e seus acordes lentos, com um vocalista velho discorrendo a letra no seu grave que, naquele momento, Dois Meia compreendeu e cantou, lembrando de sua mãe, sua imagem precisa — seu rosto pálido, suas olheiras, os cabelos desgrenhados e suas roupas sujas, dançando com raro sorriso e ele nos pés dela, com também raro sorriso. Ele lembrou e foi tomado por lágrimas que não deveriam ser suas, sentindo-se miserável, sentindo-se realmente sozinho, esperando que o cigarro aceso fizesse o milagre de livrar-lhe de todo mal, ou, talvez, de si mesmo.