Volume 1 – Arco 2
Capítulo 12: Anne.
Dois Meia não sonhou. Ele acordou, como não acordava a séculos, se levantando sem urgência, tranquilamente se erguendo dos lençóis, enquanto as cortinas se abriam.
Na cabeça, sentimentos tranquilos o tomava, tocando seu estômago com dedos gelados, percorrendo aquela cicatriz onde narrava-se uma história de um solitário ato.
— Você dormiu demais.
Ela estava no canto do quarto, sentada de pernas cruzadas numa poltrona branca, aquela menina quase da sua idade. Observava-o com seus felinos olhos verdes, com cabelos encaracolados ruivos, vestindo — o que surpreendeu Dois Meia — legging de ginástica preta com uma regata de mesma cor escrito “Anne”.
Ela disse:
— Como tá a cabeça?
— Bem. — respondeu. — Melhor do que nunca, pra ser sincero.
Dois Meia coçou seus olhos, se espreguiçou. Percebeu-se nu debaixo dos lençóis logo que acordara e não tinha confiança de se levantar, olhar nos dela.
— Onde eu estou?
— River City... Fica fora dos distritos.
Se levantou, foi até a janela. Edifícios que ele nunca viu antes desciam ao longo daquela avenida até pequenos tríplex próximos da margem de um largo rio. O céu era um puro azul, assim como aquelas águas. Ele nunca tinha visto um corpo d’água desses em sua vida. Achou que era mentira, sorriu. Se sentiu eufórico repentinamente.
Sem tirar os olhos da janela, ele disse:
— Pensei que bombardeassem qualquer coisa fora dos distritos?
— Redneon também não fazia parte, originalmente, dos distritos. — Ela respondeu. — Mas essa daqui é uma incógnita. Ela está e não está dentro dos distritos. A variável é o tempo.
Observando, Dois Meia não viu veículos, nem pessoas. Aeronaves pontilhavam o céu, mas estavam distantes. Ao longe, viu um emaranhado de vigas azuis se elevando no outro lado do rio. Parecia o esqueleto de uma Megatorre.
Ele perguntou a ela:
— Onde nós estamos?
— River City.
— Não... geograficamente?
Ela observou o rosto curioso dele, sorriu.
— Estamos a 3 mil quilômetros de Planum Australe e a 329 quilômetros de Human’Behavior. — disse. — Isso deve dá 1237 quilômetros de Redneon.
A televisão holográfica ligou de repente, no canal de notícias da Giant Tree. Dois Meia viu, eles falavam sobre as eleições regionais do polo das relações humanas do subdistrito F. Um político, André Touloise, havia sucedido no cargo de representante executivo final dos Subdistritos não desenvolvidos.
— O que eu estou fazendo aqui?
— Sendo introduzido. — Ela o cortou antes que pudesse prosseguir com uma pergunta. — Um ficou receosa de te explicar. Então decidi tomar a iniciativa. — Jogou uma muda de roupas. — Vista isso. Nós vamos dar uma volta.
Dois Meia não teve tempo de admirar o quarto, nem de arrumar seus lençóis. Ela também não saiu do quarto, enquanto lentamente se vestia.
— Anne?
— Baseado em Anne Frank. Conhece?
— Não.
A roupa era um terno preto, bem encaixado em suas medidas e com um tecido tão macio, que ele podia ficar tocando o dia todo. Anne também o entregou um revólver branco, com seis balas e cabo emborrachado, além de luvas pretas.
— Aqui. — Ela colocou na abotoadura dele dois broches prateados e quadrados, com o símbolo do homem vitruviano esculpido em baixo relevo. — É a nossa marca. Guarde com cuidado.
Dois Meia se viu no espelho da penteadeira, se sentindo elegante, enquanto ajeitava a gravata, a abotoadura da camisa e as luvas em sua mão. Seu rosto, pardo, também parecia menos amarelado, não havendo olheiras, com seu cabelo parecendo mais sedoso, naturalmente penteado.
Nunca se sentiu tão bem em toda sua vida.
Anne o apressou, entretanto.
— Não precisa ficar se namorando. Nós temos coisas para fazer.
Eles saíram do quarto e passearam pela cobertura, com piscina, churrasqueira, e, talvez, a melhor vista para o rio. Faltava algumas coisas ainda, como a instalação da hidromassagem e o arranjo das flores do jardim suspenso. Dois Meia, entretanto, nunca se imaginou num lugar desses.
Segundo Anne, todo aquele edifício pertencia a Um. No futuro, Anne gerenciaria. O hotel era chamado de River Plaza.
— A cidade está vazia agora, mas metade dos terrenos foram comprados por certos empresários e grupos de crédito. — Ela disse, enquanto desciam pelo elevador. — Um é dona da metade dos terrenos, entretanto. Ela assinou um contrato de concessão com a Megatorre 1 enquanto a cidade estava sendo construída. A outra metade pertence a Shinji Pédria, ex-ceo da Níquel Power.
— Por que você está me contando isso?
— Um é uma das 4 pessoas mais ricas dos Distritos Unificados. Se você quer participar disto aqui, você precisa saber o que significa.
Dois Meia não fez mais perguntas. Um silêncio persistiu durante os 5 minutos ou 67 andares que desceram até o estacionamento. Anne estava com aquela roupa de ginástica, que revelava um pouco de suas costas e ombros. Quando ela tomou a frente, Dois Meia viu uma cicatriz de bala saindo de seu ombro.
— Sinceramente, eu não acho que você vá se dá bem. O ofício é meio... demais... Trabalhava com a Plastic Tree, certo?
— Não. Trabalhava numa montadora de eletrônicos. Mas conheci Sofia através da Plastic Tree. — disse, a contragosto. — Um ataque aos capitães da Plastic Tree que me envolveu.
— Sofia é... ela que atirou em você, não foi. Sinceramente, também acho que ela foi responsável pelos ataques, mas só acho. Desde que se desvencilhou, ela vem fazendo todo tipo de coisa.
— Isso não faz sentido... — respondeu, confuso. — Ela mataria os capitães pra depois matar os assassinos dos capitães?
— Queima de arquivo. Ninguém sobreviveu né... Júpiter é meio cabeça quente e não presta atenção nos detalhes. Se ele tivesse autorizado a digitalização da consciência de um ou outro, daria pra saber o que se passou. Agora, fica a dúvida.
Dois Meia tocou seu estômago.
— Ela suspeitava de mim?
— Não. Eu vi os registros. Ela atirou em você porque achou que você fazia parte dos idealistas. Aquele revólver que você estava, era um presente de Um para o pai de Mathieu. Eles trabalharam juntos em 62...
Eles andaram pelo estacionamento subterrâneo até se aproximar de um veículo negro. Na parte traseira, Dois Meia leu T-800, com o brasão de um grifo no centro do porta-malas.
— Por isso ela me levou até Um?
— Basicamente. Um te acolheu por osmose, entretanto. Estamos com falta de pessoal faz um tempo já.
O carro deu partida. Os modelos T-800 eram silenciosos, espaçosos. Eram sedans executivos, com um certo charme. Tinha um potente motor de indução, com rotação máxima de 15 mil por minuto, podendo ir de 0 a 100 em 1,1 segundos.
No lado do carona, um monitor holográfico se estendia por cima do porta-luvas. Dois Meia não mexeu. Um mapa com um ponto vermelho destacado estava lá, não indicando o nome das ruas nem suas posições geográficas. Só tinha o plano da cidade nele, além do ponto. Dois Meia não disse nada, enquanto Anne virava três ruas, estacionando debaixo de um viaduto inacabado.
Lá, ela o olhou, sorriu. Dois Meia ficou receoso.
— Pega sua arma e vai até o porta malas.
Hesitando, ele o fez. Uma brisa gelada passava por aquele viaduto mal iluminado. O asfalto imaculado, as calçadas brancas — ele se sentiu deslocado por um momento, enquanto caminhava despretensiosamente. O símbolo do grifo novamente. Um clique. A arma estava apontada. O corpo desacordado de um homem ensanguentado estava lá, vestido com um terno sujo de poeira e suor. Dois Meia pensou que ele já estava morto, mas seus olhos abriram, ele se contorceu um pouco. A arma tremia em suas mãos. Seus dedos flertando com o gatilho.
— O que você tá fazendo? — Anne gritou. — Não faz isso no porta malas, porra!
Ela saiu do carro, parecendo estressada — batendo fortemente a porta do veículo. Ao lado de Dois Meia, ela pegou a arma das mãos dele.
— Puxa ele pra fora do carro! Anda! — gritou.
O homem meio desacordado não mostrou resistência, sendo arrastado com dificuldade até uma distância do carro. Ele abriu complemente seus olhos, tentou falar alguma coisa. Anne disparou nele duas vezes antes.
Dois Meia, que ainda estava do lado do homem, pulou quando escutou o ruído da arma, absorto em seus pensamentos.
— Que porra! — gritou. — Que porra! — Ele não entendeu.
Anne parecia satisfeita ao conferir o sangue, o corpo desacordado.
— Entra no carro, nós vamos embora agora.
Ele o fez. O corpo do homem nem se contorceu. Ele apenas morreu. Parecia até como se já esperasse. Não, na verdade pareceu como se ansiasse. Dois Meia estava sentado no banco do carona de novo, tremendo enquanto colocava o cinto. Anne entrou em seguida, jogando a arma para ele.
— Era um jornalista. — disse. — No futuro você também vai lidar com eles. — Colocou o cinto, tirou um pino de cocaína e deu um raio. — É um saco. Fiquei meses rastreando o filho da puta.
Dois Meia olhou para arma. Era um simples revólver e estava mais leve do que antes. Ele colocou de volta no bolso do seu casaco.
Anne o observava, parecia indignada.
— O que foi? Pensei que soubesse com o que estava lidando. — disse.
— Eu sei... só é estranho.
Ele olhou pela janela enquanto o carro se movia, se imaginando como uma cidade sem gente. Era engraçado. Não há razão para uma coisa assim existir. Mas existindo, o que seria dela?
Também ficou pensando no homem. Mais sobre como três minutos antes, ele mal sabia da existência. A morte dele seria insignificante, como a morte de uma formiga num copo de café.
Olhando para Anne, perguntou:
— Por que matamos ele?
Ele queria ser sincero, dizer que se importava.
— Ele estava se metendo onde não devia. Você sabe, esses jornalistas sempre querem nos foder. — Anne respondeu. — Um já tinha preparado uma compensação caso ele cooperasse, mas parece que era contra a ética de trabalho dele. Heh, foram dois meses rastreando. Estava sendo protegido por uma Hacker, então conseguia acessar a rede de boa.
Tudo no mundo tem um motivo. Caso Anne dissesse mais um milhão de coisas, aceitaria, como sempre aceitou.
— Como pegou ele?
— Ele parou de pagar a Hacker. Em dois segundos uma tropa de retaliação invadiu a casa dele.
— E por que viemos até aqui para matar ele?
— Você faz muitas perguntas. Certas coisas acontecem, porque esse era o destino delas. — Tirou outro pino que guardava no porta malas. — Mas se quer uma resposta lógica, bem: ele ia expor sobre a cidade. Mais precisamente, sobre como recursos públicos essenciais foram depositados em certas contas para a transformação desse fim de mundo. Nós queremos manter isso em segredo, claro. Mas bem, pelo menos ele viu que valeu a pena.
Ele não viu nada. Naquele viaduto, para ele, poderia ser qualquer lugar no mundo.
— Se sente mal?
— Eu quero me sentir. Não sinto nada.
Ela abriu o porta-luvas. Dois Meia viu vários dispositivos e um emaranhado de fios. De lá, entretanto, ela tirou outro pino. Parecia haver em todo carro.
— Cocaína misturada com SNC-Down. — Ela deu pra ele. — Não fica namorando. É como beber cachaça. Vira de uma vez que você não sente nada.
Eles estavam na avenida do rio, próximo de uma ponte. Um parque verde se estendia por toda a margem, com árvores, arbustos, trilhas, além de balanços, escorregas, áreas de recreação, quadras poliesportivas.
O carro parou no meio da rua. Dois Meia encarava o pino com ansiedade, enquanto Anne não tirava os olhos deles. Dois Meia demorou a reagir, mais de uma vez só, fungou toda a cocaína do pino. Seu nariz pareceu que ia derreter. Depois, ficou dormente. Não sabia se o peito batia forte pela emoção ou pela droga. Mas sorriu, entregando o pino pra Anne.
— Vai se sentir melhor. Agora me ajuda aqui.
Ela saiu do carro e Dois Meia a seguiu. No banco de trás, pegaram uma cesta de piquenique e um balde com cerveja e gelo.
No parque, andaram pela trilha, até se encontrar próximo das areias coradas do rio. Anne ajeitou o lençol sob a superfície e debaixo da sombra de uma amendoeira, ela abriu uma garrafa de cerveja e brindou com Dois Meia.
— O que estamos fazendo? — Ele perguntou.
— Aproveitando.