Volume 1 – Arco 2
Capítulo 11: Um.
Dois Meia sonhou que era invisível — nada nem ninguém o machucaria. Sofia, nesse sonho, foi uma sombra. Mathieu e Hide sozinhos, em suas cadeiras, sorriam. Ele era invisível, ninguém nunca o tocaria — estava sozinho.
Quando acordou e viu o sorriso dela, por outro lado, se perguntou quanto custaria para realmente estar. Depois soube que não era Sofia, sorrindo com ela, fingindo que tudo estava bem, mesmo que algemas te prendessem à cadeira, e os pratos e potes tivessem odores de baunilha, limão e chocolate.
— Você quase morreu... — escutou claramente. Os lábios vermelhos dela pareciam falar de dentro do seu ouvido. — Um tiro no seu estômago... tivemos que colocar 3mg de Deopax[1] no seu corpo. Ia morrer de choque séptico. Sorte sua que temos bons cirurgiões. Mas bem, não sei por que ela fez tanto caso... você sabe. Era só ter te deixado morrer.
Seu estômago tinha uma ferida. Não tinha reparado até ela falar. Uma ferida que não sangrava, mas doía.
— Ela atirou em mim. — disse.
— Sim. Você não me escutou?
— O que eu fiz?
— Isso não importa.
Dois Meia quis que fosse mentira. O sorriso dela... “você não vai morrer.” Lembrou — ela te matou, não foi...? Era mentira. Ela mentiu para mim, imaginou; olhando para a mulher à sua frente, que pouco parecia se importar com seu silêncio.
— O que foi? — perguntou quando viu que Dois Meia te olhava mais intensamente..
E era engraçado, pois ele a via: tão mais linda que Sofia! Seus olhos castanhos claros lembrava um aconchegante outono e seus cabelos negros uma noite sem fim. Ela tinha olheiras na sua pele pálida. Uma escultura com um pequeno erro, uma falha. Vestida com aquela camisa preta sem estampa, aquela calça cáqui sem graça, botas marrom desbotadas.
— Eu amo essa cor. — Ele disse. — Cáqui, não é.
Ficou sem resposta. O sorriso paralisado dele, o olhar indagante dela.
— Não... — respondeu. — Na verdade não sei...
— Não importa?
— Não importa.
Ela pegou um cigarro; não entendeu o que ele queria. E ele perguntou o que ela queria, porque ele estava ali, como se de repente os papéis tivessem se invertido. Ela, distante em fumaça, apagando-se lentamente enquanto via aquele horizonte holográfico e seus campos de trilhões de pixels, não soube o que responder. Ele perguntou quem ela era.
— Um. — respondeu. — Nada menos que isso.
A grama sintética em seu pé, tinha um orvalho gelado que se entrelaçava nos seus dedos.
— E o que você quer de mim?
Nada, quase respondeu. Observou-o, torcendo seus lábios.
— Foi difícil conseguir informação sua, Dois Meia. — Parecia querer falar de outra coisa, fumando distraída enquanto observava o entardecer repentino das paredes holográficas. — Meus contatos em Redneon mal conseguiram me arranjar duas páginas de Dossiê. Redes sociais inexistem para você, informações de correio eletrônico, cadastro em sítios virtuais. Além dos documentos extraoficiais do ministério da fazenda e departamento de trânsito, não há informação real, quase como se 267.432.157 fosse só um número aleatório gerado por um computador.
— O que você quer dizer?
— Estou te perguntando sobre quem é você?
Dois Meia a observou, também. Ela era parte do crepúsculo, com uma silhueta distante.
— Ninguém. — respondeu.
Ela sorriu.
— Como ninguém tinha contato com um colaborador na Plastic Tree.
— Ele me ajudou quando minha mãe morreu. Simplesmente retribuí o favor...
— Mãe? Não tenho registro disso... qual era o nome dela?
— Ela não tinha. Seu número de registro geral era 267.354.819.
— E a causa de óbito?
— Um bêbado.
Um ficou em silêncio.
— Meu pai tinha nome, por outro lado... era Maxwell. Maxwell Minor. Era um nome ridículo, que o pai dele, meu falecido avô, colocou quando ainda morava na Giant Tree. Meu pai fez parte daquele grupo, você sabe... dos eclesiásticos. Maioria de quem vive em Redneon tem... por isso ainda temos orfanatos... mesmo que os símbolos estejam profanados...
— Quem te disse isso, uma freira?
— Sim. — acenou. — Minha mãe não tinha nome... e nunca pôde ter um. Quando tentou, descobriu que o número dela estava vinculado a 5 crimes contra a humanidade, o que era absurdo. No fim, ela desistiu da ideia quando soube que teria que passar por um processo de desvinculação.
— E seu pai?
— Ele morreu bem antes disso. Foi morto a tiros e seu corpo foi coberto por cascalho. Minha mãe queria que eu tivesse um nome... meu pai não se importava muito.
Um balançou a cabeça, já era noite. O céu estrelado parecia uma pintura e a escuridão que reinava foi seguida de velas que simplesmente se acenderam.
— Por que você está com a aura de Franker?
Sua face a luz de vela se tornou um quadro incandescente — mais linda do que imaginou que alguém poderia ser.
— Eu não sei... — respondeu. — Nem sei mais quem sou...
— É normal... — Ela voltou a fumar; olhar a distância. — Um dia você se encontra.
Não acreditava, permanecendo em silêncio.
— O que você quer de mim?
— Nada. — Uma lua azul, que parecia pulsar, estava acima da cabeça dela. Quis matá-la. — Você quer alguma coisa de mim?
As algemas se soltaram.
— Eu não sei. Acho que só não quero voltar... não tem nada para mim... mais....
Ela riu, parecendo debochar dele. Dois Meia não se importou. Seus pulsos coçavam. Ele queria matá-la desde o princípio.
— Tudo bem, acho que tenho alguma coisa para você... uma coisa mínima... que pessoas como você morreriam para ter.
— Pessoas como eu?
— Miseráveis. — O cigarro se apagou. — Pessoas à deriva.
Ele não sabia o que responder, nem o que sentir. Olhou-a com o canto dos olhos. Além de matá-la, queria beijá-la, possuí-la naquela mesa. Também estava irritado.
— O que vai ser?
— Tudo bem... — respondeu, sem querer fazê-lo; fingindo que tudo estava bem. — O que eu faço?
Sorrateiro, Franker pegou em seu ombro, falando no pé do ouvido que ele deveria fugir. Um o observava. Ele viu e ela se levantou, lentamente se aproximando. Os lábios vermelhos dela se tremendo, estando quase tão perto dos seus que poderia beijá-la. Um apenas tomou entre seus braços a cabeça, acariciando os cabelos de Dois Meia, cujo, atordoado, viu lágrimas embaçar seus olhos enquanto a mão de Franker ainda repousava em seu ombro.
— Você ainda está aí, não está. — Sua mãe disse o mesmo, tendo aquele revólver afundado na sua bochecha. — Você tem que ser forte!
Dois Meia se soltou dos braços dela, repentinamente, dando passos lentos e hesitantes para trás, tendo cuidado para não cair em nenhuma rocha protuberante ou escorregar no orvalho do gramado de plástico. Um era a coisa mais linda que existia. Mataria por ela, viveria por ela... a mataria, para que ninguém pudesse encontrá-la.
— O que foi? — Ela te disse.
— Nada. — respondeu, com um sorriso.
Ela se aproximou uma segunda vez. Seu corpo próximo dele, seus lábios próximos do dele, suas mãos subindo pelo peito.
— Seja forte. — repetiu.
O dedo dela surgiu no fígado dele e seu sorriso bobo desapareceu no ar. Dois Meia apagou, basicamente. Quem restou, por outro lado, foi Franker. Ele disse que era melhor correr e estava certo. Pelo menos, morreu no amanhecer, com aquele sol alaranjado tecendo sua subida pelo horizonte holográfico. A ferida no seu estômago parou de doer, o que era bom. Apenas se arrependeu de não ter comido os bolinhos de baunilha, ou beijado aqueles lábios, ou visto mais do sorriso dela. Desejou que chovesse também. Infelizmente, o dia estava lindo para caralho.
Nota:
[1] Antibiótico de agentes Nano robóticos, produzidos por impressoras de precisão quântica, não programáveis após produção. Sua função primária, antibiótica, os torna agressivos e caso haja grandes dosagens, podem ferir tecido interno e irritar órgãos. Não recomendável para cirurgias de alto risco.