Volume 1 – Arco 1
Capítulo 2: Dois Meia.
E quando já não sabia mais que horas eram, ele olhou para sua cama bagunçada e fedida, tendo na boca aquele gosto merda de cigarro e na cabeça a lembrança de quem realmente era. Seu rosto transtornado pelo cansaço e a febre, o nome que disse para si e cujo era Dois Meia.
Deitado e encarando o teto — ele esperou o sono vir naturalmente — repetiu inúmeras vezes que era um número, um quase três, é o que é, não um nome de verdade, o número de minha identidade provisória, recordara, número esse que perdura já a 17 anos e do qual mal consigo me lembrar de cabeça, sendo 267.439.158. Apelido? Dois Meia, ou como já dito, meu nome.
Ele era apenas um garoto (claro!), que observava da sua cama a maioridade com muita desconfiança — uma criança ainda, travada pelas tragédias das quais não teve controle, e que veio viver no orfanato da escola eclesiástica de Santa Maria há mais de um ano. Também viveu na rua, por um tempo. Viveu, aliás, pelas casas dos amigos de seus pais e parentes distantes, além de motéis.
Seu antigo patrão, um cara chamado Mathieu, que te botou no orfanato, quando o recomendou para uma vaga de estágio numa fábrica de baterias da Níquel Power que curiosamente pedia em seu requerimento uma situação econômica estável, do qual mais precisamente dizia respeito a um processo que eliminava crianças de rua, ou que incentivava estas a buscar ferramentas do estado para serem devidamente acompanhadas por órgãos sociais.
Era uma merda, entretanto, e não sabia o que pensar sobre sua condição, nunca soube, nem de antes ou de agora, sentindo nelas uma miséria que as tornavam semelhantes, mesmo que em sua totalidade fossem diferentes. Era como essas crianças — tão hipocondríacos e existencialmente doentes quanto —, vivendo nessa particular miséria e eterno conflito de pobrezas. Mas diferente dele, estas fugiam quase sempre na alta noite, fosse para transar, para brigar, se drogar ou apenas pela fuga, pelo prazer de não respirar mais aquele ar, de não ver mais aqueles rostos e, de algum modo, ao poder de ser, de se afirmar.
Dois Meia nunca foi assim. Tinha medo, tinha raiva — se odiava — e escutava as histórias, claro, em ódio. Ele não era assim. Ele não tinha nenhum interesse nessas merdas. Trabalhar, estudar era tudo que havia. Não como se estivesse em algum lugar, aliás, lhe restando apenas desprezo. Um desprezo que, ao seu rosto afundando no travesseiro, pareceu significar pouco também, pois no fim as traças devorariam igualmente suas carnes, moscas pousariam em seus frios cadáveres.
Ainda olhava o teto, sem sono, escutando os sussurros, as vozes. Estava cansado, infelizmente não ao ponto de dormir, sentindo um ódio que não deveria ser seu.
Observou — era o que fazia, era a única coisa que fazia — e viu a garota da cama da frente mexendo no computador de mão. Por um tempo, foi mais interessante que o teto, percebendo posteriormente o modo como não te importava — assim como a visão do sorriso dela, das mensagens convergindo em felicidade. E tão igual foi o menino do outro lado, se masturbando — como a freira à porta, desaparecendo em seguida.
Estava tão cansado que todas as pessoas do mundo poderiam morrer. E foda-se se houvesse só eles três ali. Não há conexão, não há nada. São três pessoas independentes, com suas próprias vidas para governar, o que por si só já é suficiente para nunca os tornar a falar uns com os outros. A própria menina, ele pensou, poderia aparecer grávida no dia seguinte, indo se mudar para a casa do seu marido, e o menino poderia ter uma overdose de cocaína ou entrar para uma facção, mudar seu nome e nunca mais aparecer em Black Light.
E quando as pálpebras se fecharam, pensou mais a fundo, imaginando se também não pudesse ter um fim idealizado desses, como conhecer uma pessoa especial num outro dia, ou, quem sabe, ganhar uma porrada de dinheiro por algo provido pela sorte — idealizando os detalhes que se encaminharia da sua vida com essa pessoa, dessa vida, abrindo seus olhos em lágrimas, puto que ainda não conseguia dormir e triste para caralho.
Por uma terceira vez, fechou seus olhos. Os sons se tornavam cada vez mais irritantes e a febre parecia mais intensa. Não soube quando pegou no sono, o que é normal, mas soube que acordou desesperado, num campo de lavandas, sob um céu puramente azul.
Pensou estar morto, no paraíso como diziam as freiras. Nunca soube se era mesmo verdade. E quando viu aquelas duas cadeiras de vime, encostadas debaixo de uma árvore, quase teve certeza do delírio, observando as sombras místicas que se tornavam sombras graças as baixas e solitárias nuvens que uniformemente dançavam acima da campina; imaginando realmente o paraíso.
Um bule de chá, ele sentiu o odor perfumado, também viu as xícaras ao lado, com o velho (o mesmo que tragicamente veio a falecer) na sua frente, vestido de túnica branca, além da barba feita.
— Inesperado, não acha. — por algum motivo, se viu sentado na cadeira de vime. — É engraçado essa forma como enlouquecemos. — não respondeu. — Você sabe, se tudo estivesse bem, do jeito que você acha que está, eu não estaria aqui, para começar.
Esboçou um sorriso — ele estava certo em alguma coisa. Não que importasse, aliás. Apenas fechou seus olhos, suspirou. Não era a primeira vez que tinha um sonho desses, de merda. E bem, isso funcionava, ou pelo menos tornava mais suportável viver. Acordaria no dia seguinte com raro sorriso. Veria as pessoas que odiava, que sempre odiou.
Sentado e, aparentemente exausto, observou o velho, a campina. Você está morto, foi o que o coroa disse.
— Foda-se? — respondeu.
— Vai continuar morto se ficar negando a verdade.
Não há verdade, comentou. Claro que há, o velho continuou, a verdade que você é um merda.
— E daí?
— Bem, eu sei que você se importa. — O velho acendeu um cachimbo, mas o cheiro de fumo não subiu. Continuou:
— Você odeia sua vida, odeia as pessoas ao seu redor. Isso, claro, é um problema. Mas você se importa, pois tem uma recusa na sua cabeça. Uma que, claro, não vai admitir pra mim, mas que sei que é o que te motiva a vestir suas calças pela manhã, a andar todo o caminho por aí, a trabalhar na fábrica, a ir pra escola, a se esforçar em tudo aquilo que você diz ser inútil.
Bebeu um gole do chá, olhava a distância.
— E daí?
— E daí? E daí que você vive contra suas vontades. Você se inibe, achando que nunca será mais.
— A pergunta continua a mesma. E daí? Foda-se minhas vontades, você sabe. Luto pelas coisas ao meu alcance. Vezes nem isso. Mas a vida é assim.
O velho não respondeu. Olhavam o horizonte e um silêncio os também atingia; e Dois Meia apreciava, sozinho. Se sentia sozinho. O céu com aquelas nuvens que nunca batiam umas contra as outras, tinha feixes maravilhosos que escapavam das frestas, com a brisa da tarde batendo amenamente em seu rosto. Não queria escutar uma palavra a mais, claro: a tarde estava linda. Também não queria acordar. Acordou pela necessidade da verdade. Isso é, não no sentido literal — ainda sonhava. Queria era a verdade. Veritas. Uma verdade que se configurou na pergunta sobre quem era ele. Um erro.
— Eu? — pareceu surpreso, ou pelo menos considerou minimamente inesperado. — Eu não sou ninguém, a princípio. — respondeu.
Porém, mesmo sem uma resposta, Dois Meia sabia quem ele era. O nome aparecia encrustado no rosto, assim como a ocupação, lendo claramente que ele era Franker Médzsci, fundador de uma escola de estudo materialista em Human’Behavior e ex-representante parlamentar da Megatorre 1 durante um tempo. Não entendeu como, nem quis se perguntar, olhando para o sorriso dele, esperando uma resposta.
— O homem... ele é louco o bastante para matar seu semelhante, mas não o suficiente para beijá-lo. — Dois Meia falou, como se de repente invadisse sua cabeça.
— Parece que já descobriu quem sou.
Olhou para o rosto dele, Dois Meia, parecendo haver certa diferença na compostura. Para ser sincero, também se sentia desconfortável, percebendo como sua blusa ficava coberta de um suor repentino e de como sua perna se mexia maniacamente, dos seus lábios que tremem e seu olhar se tornando fixo no de Franker.
— Você morreu em Redneon. — lembrou, e sua boca descascava e os lábios grudavam. — Como alguém tão importante pode morrer assim, sozinho, nesse fim de mundo?
— Longa história. — Seus olhos eram vermelho puro e um calor subia pelas orelhas. — Mas acho que não importa tanto. Primeiro porque simplesmente não morri, me mataram. E de resto, um homem pode morrer em qualquer lugar no mundo que ele ainda assim vai continuar sendo um morto.
Parecia histerismo, Dois Meia imaginou, ou quem sabe um ataque de pânico. Também podia ser luto, mas nem o conhecia. Se fosse mentira, teria tirado esse nome idiota de onde? Nem sabia escrever Médzsci e mesmo assim, toda vez que dizia, aquela quantidade de letras surgia na cabeça. Uma loucura, que se fosse verdade, ia ser o pior dos delírios. Mas como não era, apenas olhou pra cara dele, enquanto sentia vermes sair dos poros de sua face.
— Você não existe...
— Você inverteu o assunto. — Olhou nos olhos dele. — Eu quem disse que você estava morto, a princípio.
Foda-se, era o que diria se Franker não tivesse continuado.
— Mas se esse é o caso, eu posso provar que estou vivo e que, aliás, que estou mais vivo que você.
Quem era Franker?
— Pois tenho certeza que se fosse me contar sobre você, iria apenas se resumir a sua insônia, em que tu fica perambulando pelas madrugadas de um lado ao outro procurando algo; sobre as manhãs de sono, em que tenta não dormir entre as aulas; sobre seu chefe, aquele porco chamado Leonardo, que te botou pra mamar no banheiro da fábrica; sobre Mathieu e a vontade que você tinha de seguir seus passos — sobre o tempo em que viveu na rua. E, aliás, me sinto até incomodado, pois, como pode alguém que nem mesmo tem um nome pra chamar de seu, ficar debatendo sobre minha existência? Você acha que existe pois forma palavras na sua cabeça, porque acha que consegue sentir os estímulos ao seu redor? Mas me diz Dois Meia, me diz sobre quando tu anda na rua, me diz: alguém realmente olha para você? E não, não estou falando desses merdas que se aproximam e te batem, e te roubam — esses não importam. Alguma vez na sua vida você já se sentiu amado? Por algum dia já foi tomado por enorme contemplação por uma criação tua? Você é um ninguém e sabe disso — você é uma pária dominada de lástimas, só que isso não deveria importar, e você sabe disso, Dois Meia.
A reação foi estranha. Primeiro Dois Meia riu, depois gargalhou. Ele não tava legal. Sua cabeça doía, a respiração parecia limitada. Inspirava, expirava, inspirava e em vez de expirar, inspirava de novo. Estava abafado na campina, e o sonho bonito, dominado de idílicas nuvens, se tornou um turbilhão que parecia querer matá-lo.
— Sai da minha cabeça. — disse.
— Não...
— Se é real... se existe... por que fica na merda da minha cabeça?
— E em qual outro lugar eu poderia estar?
— Você não é nada.
— Por que eu estou na sua cabeça?
— Sim?
— E os axiomas que foi forçado a aprender são baboseiras também? Os algoritmos são uma merda sem sentido? — Foda-se Franker e tudo parecia criptografado nos símbolos que em alto céu surgiam. — Não é porque algo está na sua cabeça, que ela simplesmente não exista.
— Não. Elas se manifestam. Não tenta me enganar. Porra! Todas as coisas que estão na minha cabeça existem...
— Então eu existo?
— Não. Você é um nada.
— Então, alguém chamado Franker pode ter existido, e alguém com minha instrução também. Como você me explica, que tipo de fenômeno eu sou? Vamos dizer que tenha me tirado de algum dos filmes ruins que tenha visto. Sendo assim, sou fruto de uma carência inexplicável. Sou o mentor que debate contigo e que busca uma conclusão que lhe tire dessa suposta miséria. Do que eu seja feito, inacreditavelmente, você precisa acreditar que sou real, pois se não, quem verterá em nada será justamente você.
— Isso nem faz sentido…
Dois Meia tomou um gole do chá, depois outro e mais outro. Tinha gosto de mijo e anfetamina. E o pior de tudo é que não conseguiu afastar o desconforto que sentia.
— Você quer reprisar aquela mesma história? — Franker pegou na sua mão. — Eu não. Mas vamos observar alguns fatos sobre mim. Primeiro, você sente esse toque, não sente? — que merda ele estava falando. — Se disser que não, estará mentindo, pois o que acontece é exatamente isso, meu toque, depois o sentido, e então os seus olhos vem ao meu. O sentimento ruim passa, não passa? Gostaria de te dizer o porquê..., mas bem, o que eu poderia te dizer?
— Me diz tudo... sobre você...
— Como eu poderia?
— Você sabe sobre mim.
— Sei, Dois Meia, e como eu sei...
— Mas não por que me conhecia...
— Então você já sabe?
— Não.
Tentou dizer algo de suma importância, mas a campina de sonho se despedaçou. E também, Dois Meia tinha ideia de que caso ele conseguisse escutar, seria apenas silêncio, enquanto as lavandas murchassem, apodrecessem, se tornando pó, tal como Franker, como ele próprio, tal como as paredes, seu sorriso, cada palavra e cada coisa.