Volume 1 – Arco 1
Capítulo 1: Marte, 780 depois da grande queda, cidade de Redneon — subdistrito F.
As portas se abriram automaticamente e as luzes atrás dele se apagou — tendo a cada passo, o som das despedidas ecoando naqueles fabris e cinzentos corredores — apertos de mão como um triste alento, e seus abraços, ternos (com olhares impacientes volvendo a eternidade), e nosso desconhecido protagonista acostumado a esse frio mundo, observa a multidão neurótica atrás de ti, passando ao lado das trades de doces e cigarro — se segurando para não arrebentar-lhe o vidro e saciar o mais precioso desejoso (o de destruir a própria carne) — onde espera, quase que exausto, o fiscal distrital, trajado no seu distinto e gasto terno, deslizar as notas, te dizendo bom descanso. Uma pena, entretanto, que este apenas tamborilasse com um sorriso a mesa bagunçada, assobiando certa música do passado, com o teclar do moço do R.H ao seu encalço — chamando, aliás, ao ritmo, aquelas boas pessoas — sendo a sinfonia do fim enquanto operário atrás de operário converge — se tornando um deserto intransponível os rostos — de brisas como bocejos e oásis como lagrimas — sabido dos homens, enquanto as máquinas e as peças e os embrulhos e as caixas de papelão de cânhamo se apagam nas mesas de metal e prateleiras de plástico.
A vida um absurdo, pensou
E ele já estava cansado.
Naquela sala cinzenta, sozinho, vendo os quadros com frases motivacionais, as fotos de gente trajada de terno e uma pintura da antiga e abandonada cidade do Rio, o homem do R.H te disse que estava tudo certo, que o pagamento havia caído na conta. Infelizmente (e isso ele percebeu bem), o moço não desejou o bom descanso. E fora do aviamento da fábrica, punhetou, pensou, martelou, enquanto pegava a saída mais rápida daquele labirinto.
Curiosamente, ninguém mais deseja nada de bom nem para ninguém. E é foda: o dia terminando com aquela chuva, não tendo nada para se proteger contra. O anuncio dos cliques, dos ruídos, das gotas que batiam contra janela já era por si particularmente desanimador. Vozes dizem: lágrimas marcianas. Que fossem.
Debaixo da marquise mal iluminada, onde táxis esperam os engenheiros e os gerentes, observou de perto a torrente escorrer pelas calhas, levando o lixo pela calçada, e as faces cansadas que, como a dele, se imaginavam já sob a chuva, correndo como um louco até o ponto de ônibus. Não tinha o dinheiro da passagem, infelizmente. Havia sido roubado naquela manhã. O que tinha era sua bicicleta e uma raiva contra tudo e todos que até aquele momento não tinha reparado.
E a chuva cai, complicado. Um lago inverso — um peixe de cabeça pra baixo. Se afogou — um homem disse pra não ser doido, que ia ficar resfriado — e seus pulmões se encheram de água lamacenta, de água podre, de esgoto e merda. Não ficou puto com isso, não! já estava chateado suficiente por não ver, como era costume ver, os últimos filetes de um poente sol — seus pés escorregando; o pedal sucessivamente batendo contra a canela — ignorando qualquer coisa logo após de virar a primeira rua e sentir-se livre ao saber que aquela fábrica era apenas uma sombra às suas costas — querendo sentir a saliva de alguém como ele, na avenida e com frio.
Numa cobertura de um viaduto mal iluminado pelo neon da fachada de um barracão que servia de puteiro, descansou, rindo no íntimo, pois nas letras garrafais de um outdoor dizia-se que ali era a “zona”, tendo escrito debaixo e piscando “do prazer”, onde mais frequentemente estava apagado. Achou graça. Também chamativo. Zona do prazer, onde o prazer é uma variável. Uma palavra comum naqueles dias, assim como escravidão também o se tornava — e seu esforço sempre seria recompensado — com seu corpo desintegrado em cansaço na virtude mais da anestesia que é estar exausto — não sentindo o tesão dos odores, nem ouvindo os gritos ou sentindo a porrada que levou no ombro (mesmo como se acordado de um sonho); também não sentindo os leves pontapés dos seguranças que disseram que ali não era lugar para ele — se questionando posteriormente em que outro lugar poderia estar naquele mundo. Lugar nenhum, talvez. E é injusto pra cacete. Se faço as mesmas merdas que esses putos, ele pensou, por que caralhos ainda estou restringido do mundo deles (impossibilitado da mesma degeneração, do mesmo prazer?), apenas vendo as ruas se tornarem mais escuras e as avenidas tão abandonadas quanto, sem veículos transitando ou gente vagando e uma solidão completa em cima dos meus esforços?
No retorno lá na altura da rua debaixo, sentiu-se mais pessimista, observando o aguaçal, as casas alagadas que se estendiam, mal conseguindo passar através — também verificando a comoção das janelas que se fechavam e das luzes que se acendiam nas varandas de todo semelhante cortiço de cada semelhante rua que o bairro de Less Light tinha registrado em si.
Uma pontada posterior — essa ele não soube definir — que sentiu talvez por ser da pura contemplação ao testemunhar a correnteza parda levar veículos e eletrodomésticos através de casas já abandonadas, se misturando à lama e tornando-se sucata — com lágrimas semeando as ruas e a caricatura do desespero nas miseráveis faces que ele, nosso protagonista, igualmente tinha, mesmo que inadmitido. Uma despersonalização talvez. Não sabia o que significava essa palavra, aliás. E é o que acontece por aqui, ele escutou um homem idoso uma vez dizer.
— A vida dessas pessoas começa e termina em tragédia.
Podia ser verdade. Mas bem, estava apenas no caminho, imaginando, por exemplo, a dor que é perder tudo — lembrando em sarcasmo que na verdade nunca teve nada.
E com lama devorando seus tornozelos e as luzes atravessando o ambiente, um pensamento solitário e cansado te metamorfoseou na pária mais desgraçada — num niilista com câimbras e que se despedia do sol, desejando perversamente um cigarro — imaginando como podia ser possível ainda idealizar aquele gosto amargo na boca — sonhando com fumaça chumbada enquanto seu olhar catatônico passeava pelas viaturas de uma polícia distinta — dizendo pro escuro realizar seu desejo e depois dizendo para o clarão de luz que a máquina pública aponta para seu rosto, que já é tarde — passando em frente de um daqueles puteiros com a mão no bolso, segurando seus poucos trocados, onde sentiu, aliás, o exalar fodido de almíscar, dum tipo que não saía da roupa, pele ou carne — continuando em frente como se nunca tivesse desejado nada (por mais que as tetas das putas tivessem-no feito ejacular em suas próprias calças).
O cenário na Light Avenue com os feixes sensuais de um centro movimentado, da qual a majestade de seus edifícios te faziam sentir ser menos gente que Redneon — do seu único desejo se realizando de repente, com uma guimba meia acesa na mureta de um daqueles edifícios caros. A vida se ajustando a sua paranoia, talvez — ao seu desejo: parando e fumando — perdendo talvez a única coisa que realmente respeitava em si mesmo.
À beleza, foi por isso. Entretanto, ao ser expulso depois de encostar num homem gigante, trajado de terno caro e com dois robustos braços que só podiam ser biônicos, achou a feiura — entrando num beco dominado por luz parca, gente vadia e olhares torpes e odiosos — com aquela sua mochila encharcada e sua roupa pesada — sendo um Atlas, só que um Atlas que carregava nas costas todo peso de Marte.
Olhou de um lado, depois para o outro, se regozijando com as lentas tragadas. O velho mesmo foi uma imagem posterior, esparramado entre as lixeiras. Engraçado, atrás dele tinha uma enorme pichação, escrito: “daqui para a eternidade”. O coro de lonas ecoavam das fachadas neon; ouvia o som da queda de mil corpos e ficou surpreso, pois a chuva marciana cai, é: e era bonito pra caralho. Sangue gentilmente ondulando nos pingos e seu cigarro parecendo um alento barato.
— O que é um homem de verdade? — Lembrou de um velho amigo e, sem perceber, negou a contemplação, tomando os cuidados da ferida, estancando o sangue , retirando os vermes da velha carne.
E ele acordou, olhou ao redor, perguntando quem era, o que o levava até ali, com sua voz sendo grave, uma voz definida por cigarros, cansaço e velhice. O menino responde:
— Não tenho nome. — Com seu tom nem grave nem agudo. Chato de escutar (doloroso até).
O velho o observou. A chuva... disse, a chuva... mas da chuva, o menino disse não gostar. Feição engraçada, pensou o velho, e que porra a chuva tem a ver? Pensou e gritou para ele:
— A chuva que é o verdadeiro alento!
Que porra de alento, o menino sorriu, que porra tu tá falando?
— Realmente... — disse. Seus olhos estando imóveis. — Tem um cigarro? — perguntou.
— Eu tenho é nada.
Sangue espirra... o céu azeviche... apenas eles dois.
— Foda...
— Foda.
Olhando para ele, o velho também disse que discordava, afirmando que essa chuva era tudo, que ia ser uma merda morrer sem uma gota d’água.
— Só de morrer já é uma merda. — respondeu.
E o velho riu, disse que ele tinha razão, mesmo que ainda gostasse da chuva. Era um réquiem, comentou, um verdadeiro réquiem a ele. A foda mesmo são suas mãos nessa porra de ferida.
— Dói pra caralho, aliás.
— Não vai deixar de doer se eu tirar...
— Tu não entendeu, moleque: não deveria doer.
— Por quê?
— Nem tudo é dor, no fim das contas. Mas bem, a forma como você tenta me ajudar certamente dói.
De que modo não deveria doer, ele pensou.
— Deve significar alguma coisa, eu acho — talvez o fato de você ainda estar vivo.
— A vida sendo dor, então? Não fode!
— Quase isso. Mas também acho que ameniza, com o tempo. — Não pensou em muita coisa. — Chega um momento em que você se acostuma, sabe, até morrer.
— É, acho que pode ser... — O velho dirigiu seu olhar pro céu. — Mas também acho que não importa. — Era impossível ver qualquer coisa além de clarões relampejantes e uma escuridão sem fim.
— Queria um cigarro, aliás.
O velho morreu sem fumar um último. Curiosamente, no bolso de seu casaco tinha um isqueiro e um maço. Talvez fosse isso, não ter forças nem pra realizar o mais simples desejo. Suas mãos estavam sujas de sangue e a chuva não lavava nem por um caralho. E o maço estava molhado. Não era tão diferente do velho, sentiu. O sorriso abandonado que tinha ainda no rosto, os olhos cansados que fez questão de fechar. Não foi o primeiro cadáver que vira, todavia se sentiu um pouco desconfortável. O céu vertia a uma limpidez também, dominado por faróis distantes das naves que atravessavam, tão iguais as estrelas que não pensou ver naquela noite. Pareceu como se o velho fosse nada. Pareceu também como se ele próprio fosse nada. As pessoas são estranhas não são, escutou-o dizer. Pra caralho. Quis fumar um cigarro em memória dele. O cigarro dele, mais precisamente. Engraçado, pegou a carteira também, mas não levou contigo. Uma moral que não pensou haver. Estava cheia. Podia ter bebido em memória dele, comido uma puta em memória dele. Se bem que foi tudo muito estranho. Ele tocou no seu pulso, disse que viveria bastante dessa amargura ainda. Que amargura? Alguma coisa pareceu clicar no seu cérebro ao mesmo tempo em que a face do velho desaparecia de suas memórias. Estava apenas ele sozinho e com frio, observando a rua sentado nas escadas do seu orfanato — sentindo como se não tivesse nome — sentindo como se fosse nada. Adeus, lembrou do que disse para si mesmo. Só não deixe a névoa comer o seu cérebro, foi a última coisa que o ouviu dizer.