Volume 1 – Arco 1
Capítulo 3: 267.435.157.
E no fim, apenas viu o fio de luz perfurar a poeira negra, acordando com uma dor de cabeça que destruía, ensopado do suor que se misturava com as traças e poeiras do cobertor. Outras crianças acompanhavam, soando seu coro de bocejos enquanto freiras invadiam o quarto, acordando cada um indisposto de acordar por si mesmo.
Dois Meia levantou, cheirou a própria camisa, não sentindo o odor de lavandas nem de nada maravilhoso, enquanto se dirigia pelos corredores cinzentos, dominados por lama, corrimões enferrujados e tinta gasta, havendo, aliás, uma imagem de Jesus perto do refeitório, que o impressionava, mesmo que não por todo o simbolismo religioso que esse contém — o que impressionava era a postura, em que braços se contorcem, mesmo alinhados naquela cruz e as pernas se agitam, incapazes de se moverem e seu corpo exausto arfa, sem parecer haver ar em seus pulmões. Uma pena a face se fazer ausente e ninguém mais saber como era. Ou melhor, as freiras ainda se lembravam, não revelando, entretanto, como se por medo de algo, ou porque elas tinham, normalmente, esse jeito reservado. Sobre essa última parte, Dois Meia era cético. Para ele, todas elas eram putas. Uma opinião polêmica, talvez, mas ele não se importava. Errado de toda a forma e tolo por se castrar desse modo, mas o que ele podia fazer, enquanto, com sono, era obrigado a olhar languidamente para tantas e diferentes pessoas? Acabava de acordar e ainda estava cansado, e quase com certeza poderia matar-se até o fim do dia, ou surtar pelo mais simples detalhe.
Quando, no refeitório, tentou pensar melhor sobre, foi engolido pelo cheiro dos feijões transgênicos e linguiça vegana. As pessoas são, por objetivo, estranhas, era tudo que conseguia discernir, concluindo com apenas um grande foda-se que te ilhava no mesmo lugar de sempre. Era um problema sério, mas da fome que já passou e das ruas em que já dormiu, nunca precisou pensar sobre tanta coisa, e, certamente, não estava acostumado.
Olhava de um lado ao outro, curiosamente, percebendo como havia se habituado a todos aqueles rostos que nunca se dirigiram a ti, a princípio — saindo do refeitório depois de mais um suspiro.
Numa trade[1] próxima do corredor, comprou um pacote de doces hidrogenados. 0,33 RPs apenas, e iam te deixar ligado o dia todo. Depois, tomou um banho, foi pro guardador de roupas que alugou do zelador e pegou seu uniforme branco como neve, de gola alta engomada, e uma calça cáqui, porque simplesmente curtia a cor. Olhou num espelho, depois voltou ao corredor. As pessoas são estranhas sim, e elas deveriam me olhar, disse para ninguém quando retornou para o quarto em que dormiu, buscando a carteira que havia esquecido.
Ninguém o olharia, pra começar. Ele era um merda, um fodido. E não atoa, ninguém tava com ele — ninguém simplesmente se dignificava a ele. Algumas memórias nostálgicas te enganavam num abraço torpe, que se desmanchavam na mais leve brisa, sendo, aliás, perseguido por uns idiotas da rua debaixo desde que era mendigo, que te chamavam de viado, que te chamavam de filho da puta, que socavam seu estômago e quebravam seus dedos.
Um específico, chamado de Heichi, um moleque branco que nem papel, alto pra idade, com olhos verdes bem característicos, era o líder desses fodidos, andando pra cima e pra baixo com o computador de pulso que havia te roubado, falando merda, falando mal de suas roupas, de como andava, respirava, de toda sua existência.
— Ei, ei. Fica calmo aí, caralho. Tá me vendo te chamar não? — E ele repetia, insistentemente, naquela manhã. — Porra: te chamo e tu para. Tamo entendido?
Era um dia como todos os outros. Olhou nos olhos de Heichi, aquele verdejante e hipocondríaco olhar, que sentiu desejo de macular com seus dedos, ou arrancar com algum instrumento não cirúrgico. Era apenas um minuto de coragem. Depois, hesitantemente, se tornou silêncio. Nenhuma voz te socorrendo, nenhum fractal capaz de te salvar. Questionou que talvez tivessem a mesma altura e que talvez fossem tão anêmicos quanto. Entretanto, sabia também que te faltava algo, e não entendia bem o quê. Percebeu depois, quando finalmente se lembrou da vez em que tentou desafiá-lo, que na verdade faltava muita coisa, lembrando também dos hematomas, o gosto de sangue e seus dedos quebrados.
— Me escuta filho da puta, sei que você tá cheio de dinheiro. Então, porra, tô precisando de uns trocados, sabe: só o troco do pão, me entende. — Se tivesse um revólver, teria estourado o rosto daquele merda.
— Não… —Depois imaginou como seria a sensação de vê-lo morrer. — Não tenho.
— Qual foi, tem sim. Para de dar uma de viadinho. Hoje mesmo não comeu no refeitório. Para de ser cuzão.
— Eu não tenho.
No beco, entraram outros dois jovens que ele não fazia ideia a numeração. Mas os apelidos eram 38 e East Taurus. Meninos pardos, de traços robustos. Antes eram chamados de gordinho e gordão, até os dois se juntarem num filho da puta do cortiço de baixo, e deixá-lo dois meses em coma.
— Como assim tu não tem. Tu tem sim pô. Tá ficando rico naquele trampo lá na fábrica. — Disse 38.
— Bem lembrado, bem lembrado. — East Taurus o apoiava.
— E aí, viadinho, tem dinheiro mesmo não? — Heichi parecia já puto.
— Não.
— Porra nenhuma.
— Não mente pra gente, caralho, vai se foder!
Dois Meia não sabia o que dizer. Foda-se, podia dá uns trocados e se mandar. Não o fez, preferindo tá lá, encolhido, tentando dizer alguma coisa, enquanto aqueles dois putos te encaravam. Heichi se aproximou, disse no seu ouvido: — Seguinte, tô com pressa. Então, preciso de 20 Rps, e tu vai me dá essa merda.
— Não…
Olhou nos olhos de Heichi, fechou seu punho. Engraçado, podia ver Heichi suspirar. Depois o quê mais? Asco? Um ponto de não retorno talvez? Raiva, muita raiva. Sabe, Heichi até preparou um soco, mas não socou. Desistiu quando viu Dois Meia se encolher por nada. Não vale a pena, pensou. Queria dizer algo e disse! Claro o de sempre, “você é uma bichinha!” e então se mandou. Dois Meia lá, exasperado, olhou para os brutamontes e para o resto dos detalhes.
— Você não passa de um merda.
Não teve motivo para sorrir, quando ele se foi. Na verdade, depois chorou. Também riu, mas principalmente chorou. Foda é que quando pensou que estava tudo bem, East Taurus e 38 apareceram, e como já premeditado, desceram o cacete, te surraram, lhe jogaram pra lama e roubaram suas últimas notas. E foi aí que sorriu. De verdade: foi aí que sorriu.
[1]Máquina de lanches.