Volume 1
Capítulo 1.2: O Céu Sobre Norden
A missão atribuída a Tanya é importante, mas não passa de um trabalho monótono. Tudo o que tem para se fazer é ficar de olho nas rodadas de impacto, usando um rádio e um conjunto de equipamentos de observação. A tarefa de processar os dados em tempo real recai sobre os braços do pessoal da artilharia que os recebe. Um operador do Controle Norden apenas fornece os comandos táticos.
O fato de estarmos ganhando provavelmente tem algo a ver com isso, mas meu dever não passa de assistir a artilharia imperial empregar explosões de ar e continuar as missões de alvo com perícia digna de elogios. De fato, o Império é uma força militar crescente dentre as grandes potências mundiais. E, ao exército que sustenta essa reputação, é fornecido um equipamento relativamente novo, tanto que foram além de acreditar na supremacia do poder de fogo e passaram a obedecê-lo como se fosse uma doutrina.
O Império acredita que "baionetas nunca mentem, tampouco os recursos". Assim, as artilharias são os "deuses da guerra" do Exército Imperial. Para alguém como a Tanya, essas divindades também são muito mais absolutas do que um ser superficial que se autoproclama o Deus supremo.
Afinal, todos do nosso lado estão em alerta para sinais de guerra, apesar das dúvidas iniciais. Em outras palavras, estávamos totalmente preparados para manter a superioridade aérea com uma rede de vigilância antifeiticeiros instalada. Se eu relatar qualquer resistência esporádica ou um lampejo de fogo inimigo aos deuses da guerra, acabarão com toda uma área apenas com um único chamado.
Este é um trabalho seguro e sadio que, no entanto, é bem respeitado. Espero que continue assim. Afinal de contas, posso desfrutar de uma visão privilegiada da vitória do exército, tomando um papel de liderança nos disparos que fazem o Fuji Firepower parecer brincadeira de criança.
Não é desagradável olhar para o nosso exército esmagando o inimigo como se fosse um inseto, estando na segurança do céu. A artilharia agita as coisas, depois a infantaria e os veículos blindados avançam logo atrás. Nós, feiticeiros, nos encarregamos do apoio aéreo e do combate a patrulhas aéreas. Sobrevoando o campo de batalha, o esquadrão misto de caças e bombardeiros segue adiante como a vanguarda para ataques de penetração mais profundos. É difícil dizer se as coisas correriam bem assim em um exercício. Uma salva de palmas ao Estado-Maior por tal façanha magnífica. Não posso agradecer o suficiente por me darem uma maneira tão simples e segura de subir meu posto.
Sei que é um pouco irreverente, mas temo que eu tenha dificuldades para concordar com a citação do General Lee: "É bom que a guerra seja algo tão terrível, ou cresceremos muito afeiçoados a ela". Para mim, a guerra é tão divertida que não sei como me conter.
— Controle Norden para Fairy 08. Artilharia iniciando tiro observado. Envie seus dados.
— Fairy 08 na escuta. Pontos iniciais do impacto confirmados. Enviando agora. Não há necessidade de ajustes de disparo. Eu repito, não é necessário ajustes de disparo. Inicie tiro sobre zona.
Em primeiro lugar, nossa artilharia é incrível pelo modo que adere os dados fornecidos, sua precisão é impressionante. As tropas precisam ser muito habilidosas para fazer tudo, desde o disparo inicial até os constantes acertos quase em cheio que se baseiam na artilharia integrada a nível de campo. Claro, o desempenho deles é a prova de que o Império não é considerado uma potência militar à toa. Minha carga de trabalho ser extremamente leve é um resultado disso. Está tudo ótimo.
— Controle Norden, recebido. Atenção para balas perdidas. Planejamos abrir tiro indiscriminado em duzentos. Câmbio.
— Fairy 08, entendido. Câmbio.
Me movo para o oeste buscando me distanciar um pouco do campo de batalha enquanto tento chegar a uma altitude ligeiramente superior. Duvido que a mira da artilharia falharia assim tão fácil, mas seria absurdo se um aliado acabasse me acertando sem querer. E visto que vai ser tiro indiscriminado, haverá uma grande quantidade de projéteis voando para lá e para cá. Os caras da artilharia irão disparar com toda vontade, e eu vou ficar só olhando com inveja. Preciso ficar fora do caminho para que todos possamos aproveitar nossas funções.
Em pouco tempo, a artilharia disparou uma chuva de ferro tão implacável que despertou as lembranças de cenas de filmes de guerra em minha mente. Pelo tanto que posso enxergar, a partir de onde estou no céu, pontos negros estão chovendo para todos os cantos da terra, e logo depois de suas chamas explosivas dissiparem, pedaços do que costumavam ser humanos voam para todas as direções antes de sumirem de vista.
— Fairy 08 para Controle Norden. Impacto confirmado. Repetir.
— Controle Norden na escuta com inteligência da fronte. Área alfa, blo... Bzzt... zzz.
— Controle Norden, Fairy 08 na escuta. O sinal está ruim. Muita interferência. Câmbio.
Ou há interferência magnética ou meu equipamento está defeituoso. Por que não poderia ter acontecido em qualquer momento que não esse? Só para ficar segura, a Tanya começa a verificar se o problema tem algo a ver com o equipamento em suas costas, tentando se conectar ao Controle novamente, quando captura um sinal inesperado.
— Líder Querubim emitindo um alerta da fronte! Repito, alerta da fronte! Captamos um grande número de ecos de radar!
Não se trata de uma mensagem normal ou expressa, mas sim um sinal desconhecido. É estranho que o controlador aéreo declare um alerta sendo que devia estar patrulhando a linha de frente. E como os alertas normalmente não são emitidos durante combates de interceptação, a menos que a linha de alerta à frente da linha de patrulha seja violada, muita coisa pode ser tirada dessa transmissão.
Talvez um novo grupo de soldados formidáveis tenha entrado na batalha. Bem, é uma guerra. Parece que o inimigo não vai se render tão fácil.
— Controle Norden para todos os interceptadores aéreos de prontidão... Transição ROE¹ da patrulha de fronteira para defesa aérea móvel. Repito, Transição ROE da patrulha de fronteira para defesa aérea móvel.
Logo após recuperar a conexão, ordens para interceptação entraram em seus ouvidos. Obviamente, se ecos de radar não identificados apareceram, essa é a única opção. Por isso que Império não somente estabeleceu enormes formações de linhas de frente, como também possui reservas de prontidão no espaço aéreo.
— Contamos um grande número deles! Detectando fórmulas de interferência! Devem ser sinais de tropas inimigas! Elimine-os imediatamente!
O tom da transmissão mostrava que nada de bom estava por vir, mesmo que essa já fosse uma batalha perdida para eles.
— Controle Norden para todos os pelotões. Controle Norden para todos os pelotões! — Embora quase imperceptível, a mistura de pânico e confusão dava para ser ouvida na voz por trás do falante. Essas pessoas, na maioria das vezes, soavam secas e sem vida mesmo se uma invasão alienígena estivesse acontecendo. Seu desespero era uma indicação da gravidade da situação. — Foi confirmado um batalhão de feiticeiros da Aliança Entente violando a fronteira. Repito, um batalhão de feiticeiros violou a fronteira.
Bem, o relatório da situação é tão surpreendente que até o controlador que o leu parecia confuso. Em geral, é um tabu demonstrar comprometimento parcial em operações militares. Saber a maneira de posicionar os reforços para que possam funcionar como uma força auxiliar é crucial para o planejamento de operações militares, mas, ao mesmo tempo, o comando precisa manter um determinado número de reservas estratégicas disponíveis a todo o momento. Um dilema clássico, mas um dos mais difíceis de superar.
Chega a ser um absurdo a Aliança Entente fazer a infantaria cruzar a fronteira sozinha e logo depois enviar suas forças aéreas. Nunca passaria pela minha cabeça que eles enviariam reservas quando as forças Imperiais já estavam no ponto de trocar a posição de defesa para uma de perseguição. Pensando de forma estratégica, faria mais sentido se enviassem o suporte mais cedo, contudo, é por isso mesmo que o Império foi pego de surpresa.
— Intercepte-os de imediato, conforme o cenário previsto! Repito, intercepte-os imediatamente.
A artilharia fez um trabalho meia boca de acabar com o inimigo e, logo quando todas as unidades começaram a mudar as posições e fazer pequenos ajustes, um grupo, maior que um batalhão, formado por feiticeiros, apareceu para resistir em grande escala. Não é como se ninguém tivesse pensado que algo assim poderia acontecer, mas o Exército Imperial imaginou que as principais forças do adversário já estivessem destruídas.
A grosso modo, se o objetivo da Aliança era cobrir a retirada de suas tropas, deveria ter agido mais cedo. Não há dúvidas de que o ataque inesperado dos reforços inimigos deixou as linhas de frente um caos. Apesar de ter reclamado que esta posição medíocre que me deram poderia barrar as chances que tenho de subir minha patente, devo admitir que neste momento minha felicidade é grande de estar perto da retaguarda. Se eu estivesse junto das forças aéreas em prontidão, tenho certeza que estaria voando para um campo de batalha sangrento agora mesmo, entretanto, por sorte, os observadores não precisam ir.
Bzzt…zzz...zzt…
Bem quando estava admirando a minha sorte, um ruído abafa as comunicações com o Controle Norden, apesar de terem relatado a mudança na situação instantes atrás. É o momento mais crítico da batalha e tudo que meu rádio faz é chiar.
Considerando o que aconteceu antes, há uma boa chance dele estar quebrado. O que não deixa de ser desagradável, já que é um aparelho crucial para eu continuar a relatar à artilharia e receber informações do campo de batalha. Porém, de acordo com a memória da Tanya, este rádio sofreu uma boa quantidade de maus-tratos no decorrer de vários exercícios. Valorizados por sua durabilidade, equipamentos de comunicação de combate não era para serem frágeis assim.
É estranho, mas talvez o problema pode ter ocorrido pelo fato de eu estar usando-o em reais condições de combate. No entanto, isso não só me impede de reportar onde os projéteis estão caindo, como também não permite que continue minha função como observadora, mesmo que por problemas técnicos. De qualquer forma, não precisei continuar lamentando a falha do meu equipamento sem fio por muito tempo.
Emissões de radar...?! Foi pura coincidência eu tê-las captado. Mesmo assim, sigo os instintos da Tanya e rapidamente mudo de posição, desviando por pouco de um ataque. Uma série de fórmulas mágicas explodem ao longo do percurso que eu estava voando há poucos segundos. O inimigo chegou.
— Mayday! Mayday! Fairy 08 para Controle Norden! Fairy 08 para Controle Norden! Alerta da fronte! Solicitando assistência imediata! — Saí gritando para o rádio, as ondas colocadas na amplitude máxima; o ruído não se deu por conta de algum defeito, mas sim por interferência inimiga.
Sem dúvidas de que esses feiticeiros são o maior perigo dentre as forças sobreviventes do adversário. A Aliança Entente é considerada uma nação em desenvolvimento no departamento de magia, então seus números não são muitos, porém, para compensar, os poucos que possuíam eram poderosos. Isso foi possível principalmente por causa do suporte das nações posicionadas contra o Império. Simplificando, é o clássico “o inimigo do meu inimigo é o meu amigo”.
No entanto, assumir que as forças mágicas da Aliança deixavam a desejar levou os feiticeiros do Império, isso inclui a mim mesma, a baixar a guarda, mesmo depois de termos recebido a notícia de que eles estavam se reorganizando na retaguarda. De acordo com as informações que tínhamos antes da batalha, a maioria dos feiticeiros de elite inimigos que foram posicionados em Norden ainda estavam se reunindo na região setentrional. Por essa razão que ninguém esperava um adversário perigoso nas proximidades.
Pode-se dizer que isso os permitiu tirar proveito do nosso descuido. De qualquer maneira, a aparição de forças inimigas vai ser relatada de imediato para o posto de comando. Além de haver vantagens táticas, existem várias implicações políticas para considerar. Claro, eu sigo o procedimento e relato eles. Ainda assim, não tenho vontade de agir como um herói e enfrentar o inimigo sozinha. Aqueles com desejo de morte estão convidados a tentar. Minha maior prioridade é sobreviver. A questão é se posso ou não fugir daqui.
— Detectei um grupo de feiticeiros inimigos se aproximando rapidamente. Ao que tudo indica, é uma companhia — falo no rádio enquanto me preparo para combate aéreo ao avistar uma grande quantidade de corpos voadores se aproximando. É quase revoltante quantas pessoas têm. — Coordenadas: Fronte alfa, bloco oito. Altitude: 4,300!
Seja qual for o conflito ou agenda política do outro lado, estão certamente mostrando uma feroz vontade de lutar. Sendo honesta, é um pé no saco o modo com que continuam destemidos depois de perder a batalha, voando adiante ainda que transpirando desespero. Meus adversários são soldados esforçados exalando espírito de luta. Duvido que eles deem a mínima a todo o problema que isso traz para mim.
As forças imperiais continuam ganhando de maneira geral. É natural que essa batalha termine com nossa vitória... Por isso que a situação não pode piorar. Se o inimigo invadiu apenas a área sob minha supervisão quando as forças imperiais dominavam a maior parte do campo, o resultado seria literalmente a única mancha negra do Império em toda a batalha.
— E minha incompetência seria gravada como o único fracasso entre o sucesso de todos. — Estou aterrorizada com a possibilidade dos meus atos serem lembrados de uma forma tão ruim a ponto de eu nem ser capaz de me defender da reprovação que vou levar. É horrível pensar que as pessoas vão me desprezar por causa da minha incapacidade em cumprir as tarefas que me foram dadas. Com as coisas chegando a esse nível, só o fato de pensar nisso já desperta medo. E uma vez que os superiores derem a ordem para interceptar, soldados como eu não possuem o direito de recusar.
Eu começo a executar manobras evasivas irregulares, dando o meu máximo. Com o meu corpo pequeno, é esperado ter uma ligeira redução na força-G. Mas desviar por pouco do fuzilamento de um bando de fórmulas mágicas, que mais parecem ogivas, leva a tensão a outro nível.
Pelo tamanho do grupo a vir em minha direção, deve ter o suficiente para formar um pelotão. Não, isso poderia ser um esquadrão de elite. Estão seguindo o padrão, fazendo chover balas no alvo debaixo de seus narizes conforme utilizam poder de fogo superior para controlar o movimento do inimigo. À medida que se aproximam, seu objetivo é nítido.
Sem ninguém oferecendo apoio aéreo, as baterias de artilharia do Império dão belos alvos táticos. Dado que a força principal da companhia inimiga já invadiu até aqui, seu plano de neutralizar o suporte de fogo, do ponto de vista estratégico, vale o risco. Seja como for, a situação é terrível.
Não seria tão ruim se os corpos tivessem usado as autopropulsadas², porém, a maior parte consiste em artilharia rebocada³. Até para o Império, é pedir demais mecanizar militares de artilharia enquanto preserva as divisões blindadas, tropas mágicas e forças aéreas. Logicamente, a artilharia também carece de tempo para engatar os obuseiros e correr ou se esconder.
Por consequência disso, o destino dessas armas depende do desempenho das patrulhas aéreas. Contudo, será preciso uma grande quantidade de força para parar o avanço de um grupo de feiticeiros do tamanho de uma companhia. Simplificando, a ideia é mantê-los ocupados até que reforços sejam enviados.
— Engajando!
— Controle Norden para Fairy 08! Informe sua situação! — Por sorte, nossa contramedida para interferência deve estar funcionando; as transmissões voltaram a ficar claras. Ahh, é isso. Prevejo cem por cento de chance de dar problema. Dizem que intuição feminina sempre acerta. Mas mesmo parecendo uma garotinha por fora, não me sinto exatamente uma dama por dentro. Então o que é isso? Por que estou com essa sensação ruim?
— Fairy 08 na escuta. Entrei em contato. Repito, entrei em contato. Uma companhia de feiticeiros hostis está invadindo nosso espaço aéreo.
— Controlo Norden, entendido. Mantenha o contato e atrase o inimigo. E, se possível, reúna informações.
Ah, isso explica tudo. Eu juro, a situação não pode ficar pior. Combater e conseguir informações? Não, não, atrasá-los é prioridade, né? Mas fala sério, enfrentar uma companhia inteira sozinha? Em céu aberto, sem cobertura? Se a ordem é para que eu morra, pelo menos diga na minha cara.
— Há muita diferença no poder de fogo. Solicitando reforços.
— Controle Norden, recebido. Já estamos reunindo um pelotão de feiticeiros aliados. Uma companhia adicional a postos em espaço aéreo também deve chegar em seiscentos segundos.
Nossa, é mesmo? Parece que os reforços vão chegar em dez minutos. O suficiente para fazer um macarrão instantâneo, comê-lo e lavar a louça. Honestamente, não tem como eu atrasar uma companhia por todo esse tempo.
Se eu levar em consideração a preservação da minha vida, que é o mais importante para mim, a ação mais inteligente seria bater em retirada. É coisa óbvia, não sou patriota o bastante para lutar feito um herói aqui. Posto isso, preciso de uma desculpa para não ser imortalizada na história militar pela desgraça de fugir do inimigo. Se ao menos eu conseguisse a ordem para sair desse maldito espaço sem valor estratégico…
— Fairy 08 para Controle Norden. Requisitando permissão para retirada imediata. Repito, requisitando permissão para retirada imediata.
— Controle Norden para Fairy 08. Temo que não possa permitir isso. Faça seu melhor para deter o inimigo enquanto os aliados estão a caminho.
Argh, merda. Maldito seja esse elitista da central de controle! Você pode tirar uma vida com uma simples ordem de onde está na retaguarda! A minha vontade é de gritar, perguntando se querem trocar de lugar comigo. Deviam vir para a fronte e ver como as coisas funcionam, antes de ficarem dando ordens impossíveis.
— Fairy 08 para Controle Norden. Como está a nossa artilharia?
Dito isso, sou um adulto. Sei que, se deixar a idade física da Tanya levar a melhor sobre mim, começarei a agir pelas emoções e a causar confusão, o que traria problemas mais tarde. Sempre terei a chance de me vingar no futuro. E é exatamente por isso que preciso dar o meu melhor nesta situação.
Meus esforços permitirão que a feiticeira conhecida como Tanya Degurechaff desvie das críticas uma vez que todos irão saber seu grande esforço para completar a missão mesmo em condições desfavoráveis. E, por garantia, caso eles planejem me enviar à corte marcial para jogar a culpa em alguém, mostrarei que agi ciente do perigo de ter que lidar com a artilharia na retaguarda. Posso dizer, mais tarde, que fiz tudo ao meu alcance para resolver o problema. É sempre bom ter uma carta na manga.
— O pelotão de feiticeiros deve chegar na área em trezentos. Ao mesmo tempo, a 7ª Companhia Móvel de Feiticeiros está a caminho para auxiliar. Como dito antes, devem chegar em seiscentos.
Arghh, o pior cenário possível está fadado a acontecer. Maldita seja a lei da causa e efeito por trazer essa situação de merda!
Por que as tropas mágicas inimigas têm que vir justo para a artilharia cujo espaço aéreo está sob a minha supervisão? Que diabos as tropas responsáveis pelas linhas de frente estão fazendo?
Como uma companhia de feiticeiros chegou até aqui sem ninguém perceber? Vai ser inacreditável se me culparem pela falta de atenção de alguém. Se esses caras querem apenas destruir nossa artilharia, não teriam o mesmo resultado se fossem em outro setor? Por que logo este?
Deve ser aquele Diabo maldito. Você ainda está me amaldiçoando? Certo, legal. Se vai ser assim, quero que se foda. Estão aqui para me pegar, não é? Neste caso, não vou cair sozinha. Já decidi. Se for para morrer, vou levar todos vocês comigo. Não estarei satisfeita a menos que leve uma boa quantidade junto.
— Fairy 08, entendido. Controle Norden, vou fazer tudo que puder.
— Controle Norden, afirmativo. Boa sorte.
Irei admitir que gritei meio desesperada… mas “boa sorte”? Sério? Quer dizer, para que esse comentário inútil no final? Não consigo deixar de franzir as sobrancelhas por conta do sentimento sinistro palpitando em meu peito.
A situação me lembra de como, por uma reviravolta do destino, os soldados de Tokugawa que estavam ganhando a Batalha de Sekigahara encontraram as peculiares forças de Shimazu. Em outras palavras, o que quero dizer é: Não cheguem perto. Vão embora. Xô.
Mordendo o lábio, não consigo parar de amaldiçoar minha sorte de merda. Bem, estou sendo tratada feito um brinquedo por seres como o Existência X. Estava preparada para isso, sério mesmo… porém nunca teria imaginado que iria fazer manobras defensivas em um espaço aéreo dominado pelo inimigo.
Cadê o serviço de bem-estar infantil? Não sei se sou tão adorável quanto uma flor, mas pelo menos devo estar perto disso, certo? Sem falar que sou pequena o suficiente para muitos se referirem a mim como “nova” ou “pequenina”. Queria que o inimigo hesitasse em atirar ao me ver, contudo você não pode esperar humanitarismo no campo de batalha.
Qualquer um que saiba o que aconteceu no Holocausto, em Sarajevo e em Ruanda deve ter percebido o quão perigoso é acreditar cegamente nos ideais de humanismo. É fácil para humanos se transformarem em demônios capazes de cometer atrocidades. Isso até pode não ser ensinado nas aulas de ética, mas é a nossa natureza.
Pensando nisso, aquele sensato comentário do ocidente que “um Deus virtuoso tem de existir” justamente pelo fato destes demônios cometerem tamanhas ações malignas, é um tanto intrigante. Infelizmente, já que o Existência X não me passa a sensação de ser muito virtuoso, tenho que discordar.
— “Deus está morto”, hein?
Apesar de controversa, a conclusão de Nietzsche deve estar certa. É impossível Deus existir. As pessoas têm que salvar a si mesmas. Na minha situação, isso significa uma manobra defensiva de contenção.
As ferramentas disponíveis são um uniforme leve à prova de balas, equipamentos de observação e um orbe operacional padrão Tipo 13 da fábrica de armas Volcker. Por estar servindo como observadora, não tenho meu rifle de munição mágica, o qual permite que a vontade do atirador conjure em um alcance maior por meio do carregamento de fórmulas. De qualquer forma, ele é muito pesado para mim.
Como posso atrasar o inimigo desse jeito? Claro, sei que a única opção é encontrar um ponto fraco. Não tenho nenhuma intenção de morrer em silêncio. Se o pior acontecer, planejo me autodestruir ou o que for preciso para levar alguém comigo. Se é isso ou ser morta, não vou me satisfazer até que leve todos eles juntos. No entanto, se for possível, gostaria de continuar viva.
No fundo, sobrevivência é a minha maior prioridade. Sério, quero apenas ir embora. Se eu largar o equipamento de suporte, isso me deixaria mais leve. As tropas invasoras estão mirando na artilharia, então é certo que posso bater em retirada para uma zona segura, abrindo uma distância entre nós. No entanto, mesmo que a fuga funcionasse, não haveria como me safar depois. Não é preciso dizer como o exército pune deserção diante do inimigo... Execução pelo pelotão de fuzilamento. No dia em que resolver desertar, estarei presa em um eterno pega-pega com a polícia militar. Não existe outra opção a não ser lutar, ainda que completamente sozinha, sem sequer um ajudante.
— Receio então que essa seja a minha própria guerra.
No campo de batalha onde a vitória do meu lado está garantida, estou prestes a lutar até a morte. Bem, tecnicamente, o objetivo do inimigo, ao atacar nossa artilharia, é dar suporte para seus aliados recuarem em segurança, não abater soldados. Em outras palavras, para esses feiticeiros, me alvejar não é diferente de esmagar uma mosca irritante.
É insultante ver a forma com que minha vida e carreira militar estão sendo ameaçadas, enquanto sou tratada como uma peça descartável. Eu devo olhar para os outros de cima; ninguém pode ter a permissão de fazer o mesmo comigo. Sem nem pensar no que poderia acontecer, comecei a me dopar com uma fórmula de interferência atrás da outra. Aprimoramento do tempo de reação, aumento da força imediata. Antes da dor de forçar a abertura dos circuitos mágicos se registrar por entre meu cérebro, eu a alívio utilizando entorpecentes intracerebrais. Ahhh, que sensação maravilhosa. Meu corpo está esquentando de entusiasmo.
Me pergunto se essa é a sensação de ficar chapado. Agora, se as coisas piorarem e o inimigo me dar um tiro, poderei escapar sem desmaiar de dor.
— Quanta honra. Isso é demais. Um momento tão maravilhoso. Ahh, isso é tão, tão divertido. Mal consigo me controlar.
— Fairy 08?
Falei sozinha e em voz alta para que me escutassem, ótimo que o posto de comando atendeu às minhas expectativas. Desse modo, tenho uma testemunha para atestar sobre como lutei até o fim. Estou explodindo de animação. Mesmo com o mundo girando de forma encantadora ao meu redor, o cérebro de um feiticeiro tem a capacidade de manter um pensamento claro. É uma coisa linda.
E impede que os meus pensamentos sejam afetados por drogas ou insanidade. Tenho tanta sorte de ser um… mas não é como se eu quisesse continuar sendo um soldado.
— Tinha medo de que esse seria um trabalho chato, mas agora sou a estrela do campo de batalha, prestes a enfrentar um exército sozinha.
Não posso morrer aqui. O mundo não é justo — e está longe de ser — porém isso é apenas uma questão de deficiência de mercado. Essas falhas precisam ser corrigidas.
Como este problema, no final, resume-se a custo, tenho que aumentar o meu ao máximo. E uma estratégia de marketing é sempre imperativa. Portanto, tenho que mostrar o meu valor. Dando tudo de mim, não deixando uma chance de me autopromover passar. Em outras palavras, aproveitar todas as oportunidades. Se eu fizer isso, a vida vai ficar melhor.
— Temi que ficaria sem ter o que fazer ao lado dos nossos inimigos e aliados na confusão da batalha, mas vejam só: ganhei o papel de destaque.
Isso não me deixa nem um pouco feliz. Estou sozinha e o fato de não conseguir fugir em silêncio só piora a situação. As circunstâncias no campo de batalha me deixaram com pouquíssimas opções. Nesse caso, tudo que posso fazer é agradar a audiência — vulgo meus oficiais superiores — com a minha apresentação. É uma surpresa como os humanos atuam tão bem quando estão encurralados.
— Então essa é a sensação de estar comovida. “Um bom dia para morrer…” Pode crer que é isso mesmo!
Me livrei do equipamento de observação. Os feiticeiros da Aliança, armados até os dentes, planejam um lento combate de longe, porém, ao invés disso, faremos uma dança. Iniciando manobras básicas de combate, eu me animo com o pensamento estimulante. Essa é a melhor opção dentre as minúsculas outras, e, mesmo indisposta a tomá-la, a única coisa que importa é terminar o meu trabalho e sobreviver.
Aparentar ter completado a missão já é o suficiente. Depois de uma disputa acirrada decente, posso fingir que o inimigo fugiu ou me derrubou. O que acontecer depois não vai ser problema meu. Acredito que nem esse grupo, que invadiu o território inimigo numa tarefa impossível de eliminar a artilharia, se importaria em vir atrás de mim se eu sair voando para outro lugar.
Em vez de desertar diante do inimigo, meus esforços apenas não terão sido suficientes, deixando-me incapaz de continuar lutando. O ideal seria cair perto de alguma tropa aliada. E ainda melhor se eu conseguisse deter esses vermes da Aliança Entente. Afinal, tempo vale mais que ouro e os imbecis que invadiram estão tentando conseguir o máximo possível. Seria legal dar o troco, como um prêmio de consolação. Não vou permitir que ninguém além de mim saia ganhando nesse confronto.
Odeio sentir dor e prefiro evitar me sujar, mas não quero morrer. Não há nenhuma razão para isso, na verdade. Eu mergulharia no esgoto se fosse necessário para sobreviver. A vida por si só é uma batalha.
— Comandante Sue! Reforços inimigos! Uma companhia se aproxima depressa! E estou captando um pelotão de feiticeiros bem atrás. Suspeito que também sejam reforços!
Deus, ó Deus, por quê? Por que isso tem que acontecer?
— O inimigo infringiu as defesas da 16ª Divisão Holelstein!
Como que tudo acabou dessa forma?
— O batalhão do Coronel Lacamp está emitindo um pedido de socorro para o grupo de assalto! Eles entraram em combate com um batalhão de feiticeiros imperiais. Disseram que não vão conseguir manter a rota de fuga por muito tempo.
Onde foi que erramos?
— Eu sei! Não temos tempo para isso. Ainda não derrubamos o feiticeiro observador do inimigo?!
Pela visão que tinha do céu, o Tenente-Coronel Anson Sue foi forçado a reconhecer que a situação do exército da sua terra natal, mergulhada nas chamas e em colapso, só piorava a cada segundo. Seu rosto se contorceu de raiva e impaciência, mas mesmo se gritasse para tudo acabar até que ficasse rouco, nada iria mudar.
— Nossos tiros só estão raspando!
Se seu olhar pudesse cuspir chamas, Anson Sue colocaria fogo neste feiticeiro inimigo, voando pelos céus, para queimá-lo até que não restasse nem cinzas. Agh, como isso foi acontecer no espaço aéreo Nordenho, que conhecemos tão bem? Hoje parece que tudo está deixando um gosto ruim na minha boca, até mesmo esse céu familiar.
— O maldito nos deixou em uma posição difícil. Lutar sobre aliados é complicado.
A maior parte de seus homens perseguia apenas uma pessoa. Sue não podia chamar este feiticeiro de covarde por fazer o melhor para sobreviver. Se não estivesse envolvido nisso, teria admirado e respeitado tamanha demonstração de bravura e espírito de luta. Como as coisas estavam, entretanto, não podiam apreciar a coragem dele.
Os ouvidos de Anson Sue escutavam somente os incessantes tiros da artilharia e seus olhos enxergavam nada que não o sofrimento dos soldados da Aliança destruídos pelo bombardeio.
— Aqueles políticos desgraçados...!
Se perguntarem a quem culpar, a resposta era uma só. O xingamento a escapar da boca do Tenente-Coronel já dizia tudo. Queria pegar os idiotas — esses que ridicularizaram o Tratado Londino, ignoraram e fizeram-no parte de suas campanhas eleitorais — e jogá-los no meio dessa loucura. Aqueles sofrendo por causa dessas ideias eram os próprios cidadãos de sua pátria.
— Aproximação! Preparar para avançar!
— Comandante Sue! Vamos usar o plano alternativo e atacar a artilharia! Se deixarmos um esquadrão aqui, não importa o quão rápido esse feiticeiro seja, os que ficarem vão ser suficientes para derrubá-lo!
— Esqueça isso, Lagarde. Reforços inimigos estão a caminho. Seríamos destruídos!
Para o bem ou para o mal, as tropas de Sue penetraram fundo demais nas forças inimigas. Talvez, se tivessem mais homens, pudessem eliminar a bateria inimiga. Porém, quando haviam invadido, ele tivera que deixar várias unidades para manter aberta a passagem de onde adentraram. Seu grupo acabou ficando do tamanho de um pelotão reforçado.
— Cunningham, quanto tempo até que os reforços inimigos cheguem?!
— O mais próximo estará aqui em 480 segundos! Se não nos apressarmos, será difícil escapar!
Caso continuem o ataque, com as unidades imperiais vindo para interceptar, ele não conseguia ver como sobreviveriam a isso. Ainda assim, faria o que fosse capaz com os recursos à sua disposição.
Essa foi a decisão do Tenente-Coronel Anson Sue enquanto soldado da Aliança Entente, e também o limite do que podia fazer com a pouca informação que tinha em mãos. Era indiferente ao romantismo militar, então, quando se deu conta de que as baterias de artilharia inimigas estariam fortemente protegidas, logo desistiu de atacá-las.
Mas a verdade era cruel. O espaço aéreo acima das baterias estava limpo.
— Eu entendo. Se nós… Porra! Lagarde?!
— Capitão?! Capitão Lagarde?!
— Cunningham, dê cobertura! Lagarde, consegue me ouvir? Lagarde!
Na frente de seus olhos, o Capitão Lagarde se precipitou às cegas rumo ao feiticeiro inimigo. O pelotão, sem saber como reagir, parou de atirar, com medo de atingi-lo por acidente, nesse momento o inimigo conjurou uma fórmula. Lagarde arremeteu acreditando que a mobilidade do alvo seria limitada pelos tiros de seus aliados, agora ele estava muito próximo para escapar.
— Ah não, você não vai fazer isso! Me deem cobertura.
O Capitão foi pego por algo muito mais forte que uma onda de choque — um ataque direto de explosão. Mudar de percurso não ajudaria. Em um instante, a membrana de proteção se desfez e o campo de defesa foi destruído. Teve tempo de apenas proteger o rosto com os braços, porém foi só pela graça divina que ele sobreviveu.
— Droga, esse maldito estava querendo nos atrasar! Thor!
O lado de Sue tinha números superiores e estavam concentrados na linha de fogo. Entretanto, o preço que pagaram por deixar escapar um inimigo, que tinham sob controle, foi caro demais.
— Relatório de baixas!
— Dois abatidos, e o Capitão Lagarde está gravemente ferido!
Com os braços queimados, Lagarde estava caindo, somente um traço de sua consciência restando no meio da dor e da perda de sangue. Primeiro-Tenente Thor também foi atingido pela fórmula explosiva a curta distância quando passou pela linha de fogo, na esperança de proteger seu camarada, então estava incapaz de continuar lutando.
— Grah! Ele não vai se safar dessa. Comandante, vou em direção ao inimigo. Me dê cobertura!
— Agh, droga! Ajudem ele!
— Fogo! Vamos! Fogo!
— Você é meu!
No meio disso tudo, Sue teve certeza que escutou alguém falar “te peguei”.
A voz soava quase alegre, como a risada de um lunático.
— Pare, Baldr! Volte. Esse feiticeiro vai… — O Tenente-Coronel começou a gritar, porém, no instante seguinte, o soldado imperial lançou um feitiço que engoliu toda a área em volta.
— Um… ataque suicida…?
Não queria acreditar no que viu, mas estava ali para testemunhar com os próprios olhos.
— Comandante, acabou o tempo! Estão quase nos alcançando!
— Derrubamos o observador…! Retirada!
ANO UNIFICADO DE 1923, CAPITAL IMPERIAL BERUN, ESCRITÓRIO DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO IMPERIAL, DEPARTAMENTO DE PESSOAL, ESCRITÓRIO DO CHEFE DA SEÇÃO.
Major von Lergen, parte da equipe que controla o Departamento de Pessoal do Exército Imperial, estava fumando para relaxar depois de horas de trabalho. Suas feições bem definidas, que lembravam aquelas da aristocracia Junker, passavam a impressão de masculinidade e inteligência. Neste momento, contudo, o rosto se distorceu em uma careta e ele proferiu um suspiro contra a sua vontade.
O papel do Departamento de Avaliação de Conquistas do Estado-Maior da Divisão de Pessoal era analisar os feitos das linhas de frente e propor as condecorações apropriadas e bônus aos superiores. Era a base dos assuntos pessoais do Exército Imperial. E também o local onde os oficiais de média patente do Estado-Maior eram enviados a fim de ganhar experiência para que, no futuro, tornem-se generais do Império. Claro, a tradição era escolher os melhores.
Como esperado, esses indivíduos eram reconhecidos por suas habilidades. Lergen provou que o superior que o indicou como chefe das condecorações tinha um bom olho ao processar todas as nominações sucessivamente em tempo hábil, apesar das duras batalhas no norte e o incessante envio de recomendações.
Inconsciente, ele parou de mover a caneta conforme virava sua cabeça para alguns documentos, vindos de Norden, sobre indicações de condecorações e aplicações para medalhas, e deixou escapar um gemido. Era natural que seus subordinados enviassem olhares preocupados perguntando: "Será que teve algum problema?"
— Não fazia ideia de que ela estava em Norden… — sussurrou enquanto soltava fumaça pela boca, mostrando preocupação e repugnância incontestáveis para com os documentos.
O nome do oficial indicado ali escrito era “Segunda-Tenente Feiticeira Tanya Degurechaff”. Graduada da Academia Militar do Exército Imperial como segunda de sua sala, envolveu-se em um distúrbio em Norden após seu treinamento de unidade no norte. Lutou bravamente junto ao Exército do Norte, onde seus incríveis feitos e contribuição fizeram que os comandantes da região submetessem uma recomendação conjunta. Se Lergen visse isso como outro papel comum recebido pelo Departamento de Avaliação de Conquistas, era de fato só mais um documento formal. A única coisa estranha, neste caso, seria o quão incomum era para eles atribuírem um título.
Naturalmente, como um membro do Departamento, precisava manter a imparcialidade e a objetividade. Não era como se não valorizasse o ato de autossacrifício da Tenente Degurechaff na batalha de Norden. Ela havia dado tudo de si para deter a unidade inimiga. Embora fora incapaz de segurá-los até que os reforços chegassem, derrotou um e possivelmente mais dois outros inimigos em um movimento ousado que parou o seu avanço. Mesmo ficando coberta de machucados, cumprira a missão e dera suporte aos aliados do início ao fim. Até no enorme Exército Imperial, era difícil achar uma ação tão admirável assim.
A princípio, Lergen carecia de razões para hesitar; pelo contrário, teria preparado um documento para acelerar o processo de entrega das condecorações. No entanto, o Major a conhecia desde a época que a garotinha era uma estudante de primeira classe na Academia Militar. Aquele encontro não tinha deixado uma boa primeira impressão nele.
Aconteceu durante uma das várias ocasiões onde o trabalho da Divisão de Pessoal o levou para o local. Foi quando viu desenrolar. Pequena ao invés de delicada, a menina era tão nova que não seria nada estranho vê-la brincando com bonecas. Mas, no lugar disso, testemunhou a cena surreal dela controlando o orbe operacional e dispersando uma fila de cadetes. Essa havia sido a única vez que duvidara de seus olhos.
Na maioria das vezes uma simples nota mental de “ela é uma feiticeira talentosa que pulou alguns anos” seria o suficiente. Na verdade, sua impressão inicial foi “então realmente existem crianças prodígios precoces nesse mundo”.
Apesar de haverem pessoas que tinham problemas em mobilizar crianças, cuja idade ainda não atingira a casa da dezena, para a guerra, a evidência empírica do exército mostrava que os feiticeiros amadureciam mais cedo. Em tempos como estes, as autoridades não se importavam em enviar crianças no ensino fundamental para as linhas de frente, desde que fossem feiticeiros talentosos e voluntários. Claro, os candidatos que passavam na Academia Militar não recebiam privilégios por suas qualificações. Essa menina-prodígio desempenhara dentro dos próprios limites enquanto demonstrava sua devoção ao Império. Sob circunstâncias normais, seria apenas isso. Sob circunstâncias normais. Mas quando ele parava para pensar sobre, a realidade era aterrorizante.
Essa criança... Essa garotinha... não tinha chegado nem aos dez anos de idade. Pensar nela sobrevoando o campo de batalha como um soldado experiente era algo de arrepiar. Embora não fosse sua intenção falar mal da academia, Lergen queria perguntar aos instrutores da menina se o objetivo era fazer uma boneca assassina em vez de uma Segunda-Tenente Feiticeira.
Um típico cadete, aspirante a oficial, sempre exibia grandes inconsistências entre o que falava e o que fazia. Por toda sua ousadia, oficiais novatos eram, por incrível que pareça, inúteis. Não era incomum que falassem aos cadetes entusiasmados para não atrapalharem os veteranos. Contudo, a Segunda-Tenente Degurechaff era um exemplo perfeito de “uma mulher de palavra”. Desde os seus dias na academia, já mostrava vislumbres de valores extremamente realistas.
De acordo com os instrutores entrevistados por Lergen, após ter aprendido sobre a política para os alunos de primeira classe instruir os de segunda, ela proclamou eliminar os idiotas incompetentes. Entusiasmo não era incomum para esses tipos de estudantes, então os instrutores riram como se não fosse nada demais; porém, Degurechaff manteve sua palavra, a ponto de fazer o sangue sair do rosto dos docentes.
Enquanto fazia um treino de campo, um aluno de segunda classe começou a reclamar e contradizer as ordens da Mentora Degurechaff, subestimando-a por conta da idade e aparência. O Major viu o instante em que ela tentou fazer seu dever como oficial de comando, preparando-se para executá-lo por insubordinação ali mesmo, como escrito na lei militar. Esse incidente marcou o momento pelo qual Lergen sentiu que, entre todos os feiticeiros oficiais do Exército Imperial, Tanya Degurechaff era alguém perigosa que valeria a pena ser lembrada.
Claro, o insubordinado deveria ter sido punido de forma severa. Normas e treino compunham o coração do Império. Se ninguém as seguissem, a fundação do exército desmoronaria. Quando o assunto envolvia doutrina fundamental, a postura comum de um oficial era agir com o pulso firme.
Na realidade, historicamente, a arma de um superior servia como uma punição por deserção ou insubordinação. Não havia dúvidas de que manter a disciplina dos seus subordinados era um dos principais trabalhos de um oficial.
Mesmo assim. Degurechaff foi longe demais ao gritar: — Se você é estúpido o bastante para não lembrar de ordens, o que acha de eu abrir esse seu crânio para enfiá-las aí dentro? — E apontou uma lâmina mágica para o cadete que ela derrubara no chão.
Lergen estava certo de que viu a lâmina descendo no momento que o instrutor correu para segurar a menina. Se não tivesse sido parada, aquele homem estaria morto.
Talvez a Tenente fazia uma boa oficial nas linhas de frente, mas a mente dela decerto não era sã.
Em termos de humanidade, ela tinha um parafuso solto. Talvez isso fosse ideal para um militar durante uma guerra. Na verdade, poucos possuíam um perfil inato adequado para o combate. Por isso que o Exército Imperial, bem como o de qualquer nação, treinava as pessoas para serem soldados por meio de regulamentos e exercícios antes de enfim os reconhecerem como combatentes treinados.
Nesse ponto, Degurechaff foi abençoada com grande talento. Chegava a ser tão óbvio que o irritava, precisamente porque Lergen trabalhava no Departamento de Pessoal. A menina era a personificação de um oficial ideal na perspectiva do exército, desde à forma com que, tranquila, usara uma manobra quase autodestrutiva, ao modo como cumpria seu dever com lealdade. Óbvio, ela era claramente perigosa em certos aspectos.
Em particular, o desejo das forças armadas por unidade e coesão, era algo que passava longe da mente dela. A maneira que a Segunda-Tenente pensava era perigosa o suficiente para não poderem deixá-la agir por vontade própria. Ela tinha fome de guerra. Isso forçou o Major a considerá-la um risco em potencial.
— Isso não é brincadeira…
Percebendo que sua opinião pertencia a uma minoria, Lergen, apesar disso, foi tentado a reconsiderar a proposta de condecoração.
A menina protegeu a linha até os reforços chegarem, sua vida estava por um fio quando a infantaria que vasculhava o local a encontrou. Tal conquista era digna de elogios, mas dado o seu temperamento, o Major acreditava que esse era o resultado esperado. Quanto à sua forma de lutar, não foi surpreendente como seguiu ao pé da letra o que os livros diziam ao resistir de maneira tão nobre. Tinha vários ferimentos causados por tiros nos braços e nas pernas, além de sinais de que segurou o orbe operacional com os dentes. Simplificando, tudo apontava que ela tomou a decisão estratégica e sensata de ganhar tempo e de proteger seus órgãos vitais para atrasar o inimigo pelo máximo de tempo possível.
Entretanto, este era o problema. Ao terminar de ler os documentos, Lergen colocou as mãos na cabeça. Era um fato que Degurechaff representava perigo. E, ao mesmo tempo, baseado no princípio de recompensar excelência e punir inadequação, não podia ignorar esse feito incrível. Seria inaceitável se o fizesse.
Não se sabia o que poderia acontecer no futuro, porém, considerando as conquistas que levaram a Segunda-Tenente a receber essas recomendações, muito provável que ela receberia a gloriosa Insígnia Ataque de Asas Prateadas. O Exército do Norte provavelmente considerava este o maior feito nas fases iniciais da guerra. Durante um momento crítico nos primeiros conflitos, uma crise ocorreu. Uma feiticeira da academia teve a distinta façanha que o exército buscava para levantar a moral. Ela obteve resultados concretos. E a história era perfeita. Era uma honra para um feiticeiro ser recompensado com um título, ainda mais no começo da sua carreira. Ele logo compreendeu que o motivo de a terem dado o elegante apelido de “Argenta” foi porque todos estavam empolgados.
Embora Degurechaff talvez não fosse uma heroína para aumentar a moral, Lergen deveria ser justo. Sempre se orgulhou de ser honesto e verdadeiro com o seu trabalho. Entretanto, pela primeira vez, sentiu-se dividido entre as próprias emoções e os deveres de um burocrata militar.
Uma criança desenvolvida para ser uma arma perfeita é apavorante. A única forma de utilizar a Tenente é apontando-a para o inimigo. A transformarei numa heroína. Vou respeitar suas conquistas. Darei meu máximo para que aja por conta própria. E lhe ajudarei da forma que conseguir para ter certeza que ainda poderá lutar. Farei tudo isso, então, por favor, te imploro, vá para a frente de batalha.
Estou certo em dar honra e influência a um soldado que posso apenas ter esperanças de controlar com orações?
— Se apenas isso fosse um ranque mais baixo… — Lergen resmungou para si. A Insígnia Ataque de Asas Prateadas fornecia grande influência e reconhecimento no exército.
A medalha era uma das condecorações mais valiosas que o Império tinha a oferecer. Claro, prêmios por mérito também eram entregues por honra e cortesia depois de anos de serviço contínuo ou até certo ponto da carreira de um soldado. Ainda assim, aquelas ganhadas por coragem e devoção à nação eram vistas com melhores olhos.
Essa tendência era atribuída à força moral e utilitarismo do Império, porém, estava mais para nacionalismo.
Há muito tempo, cada indivíduo recebia uma coroa de louros pelos feitos corajosos. Mas com a modernização do exército, isso foi mudado para as atuais medalhas. Dentre elas, as insígnias de ataque honravam os militares que lutaram bravamente em operações de campo. Era costume que, em ofensivas de larga escala, a unidade da vanguarda recebesse a Insígnia de Ataque Geral, enquanto os que mais contribuíram ganhavam a Insígnia de Ataque com Folhas de Carvalho.
Um soldado portando uma insígnia com as folhas de carvalho era visto como o membro principal da unidade e recebia uma confiança incondicional de seus companheiros. Entretanto, nem essa se comparava à honra de portar a Ataque de Asas Prateadas. Já que era reservada para aqueles que eram como arcanjos indo ao resgate de seus aliados em apuros. Até os requerimentos de nomeação diferiam.
Aqueles nomeados não podiam ser submetidos pelos seus oficiais superiores. Na maior parte das vezes, o oficial comandante da unidade resgatada nomearia o soldado por admiração e respeito. Embora, na maioria dos casos, fosse o oficial da mais alta patente da unidade resgatada que faria isso.
Contudo, essa não era a única particularidade da Ataque de Asas Prateadas; a maioria das pessoas que a receberam já estavam mortas. Em outras palavras, os requerimentos eram tão altos que a insígnia só seria entregue caso o soldado tivesse lutado de forma heroica em condições muito arriscadas.
Poderia um indivíduo salvar toda uma unidade em apuros? Como alguém conseguiria isso? E era possível realizar tamanha façanha por meios normais? Não havia necessidade de pensar muito sobre o assunto, apenas um olhar para as fotos tiradas em comemoração aos que a ganharam servia de resposta. Na maioria delas, as insígnias se encontravam em um capacete repousado sobre um rifle. Os regulamentos oficiais diziam que o único ornamento pelo qual poderia ser entregue ao capacete e à arma no lugar do morto era a Ataque de Asas Prateadas, isso mostrava que não era exagero chamar esses requerimentos de quase impossíveis.
Como resultado, não importava a patente do portador, era apropriado que oficiais e soldados mostrassem respeito a ele. A insígnia evocava este nível de honra.
Devo admitir. Receio o que poderá acontecer se dermos tanta influência a Degurechaff. Essa garota é muito anormal. No começo Lergen suspeitou que a menina havia se conformado bem demais com as vontades excessivas da agência de recrutamento. Perguntando-se se ela passara por alguma doutrinação patriótica fanática. Chegou ao ponto de enviar um conhecido do Departamento de Inteligência para investigar o orfanato. Mas a resposta foi clara. Era um orfanato comum que poderia ser visto em qualquer lugar, de padrões também normais e funcionários adequados. A única coisa que se destacava era que conseguiam providenciar uma nutrição mediana para as crianças, pois as doações deram uma flexibilidade maior para a administração.
Em suma, a base para a lealdade e a vontade de lutar da Segunda-Tenente não eram nem meios para escapar da fome e tampouco uma disposição à prática de violência provocada por abusos. Por curiosidade, o Major checou as respostas da menina no exame de admissão da Academia Militar e acabou descobrindo que ela — este monstro em pele de uma garotinha — havia dito: — Não há outro caminho para mim.
Repleta de devoção e lealdade à nação. Nada menos que uma exibição magnífica do que os militares procuravam em um soldado ideal. Treino contínuo e desejo de se melhorar. Essas coisas eram dignas de elogios. Um militar com qualquer um desses traços faria Lergen perfeitamente feliz como um oficial imperial na administração de recursos humanos.
Se um oficial tem uma combinação dessas, estamos satisfeitos. É exatamente o que o exército quer. Porém, ironicamente, ver essas qualidades encarnadas, o fez perceber que o desejo supremo do Império era apenas outra forma de descrever um monstro. E isso o encheu de medo.
Não sabia o que a menina quis dizer com “não há outro caminho para mim”. Uma de suas teorias era que não passava de um jeito de transformar a sede de sangue, a qual ela tinha guardada dentro de si, em algo prático. Quem poderia afirmar que a garota não nascera faminta por guerra e o exército fosse o único meio de saciar seu apetite?
Quem poderia garantir que não era uma bomba relógio capaz de se deleitar com a imagem do sangue derramado e de sair voando deixando carnificina em seu encalço? Mesmo que se comportasse como o soldado ideal, o quadro geral sugeria que era louca ou, pelo menos, anormal.
Sem dúvidas, ele entendia que não se vence a guerra com gentileza. Sabia, por experiência, que apenas os que enlouqueciam — ou que já eram loucos — podiam não se enojar com algo assim. Mas e se alguém gostar desse sentimento?
Ouviu uma vez que, para um assassino, a teoria e a prática eram apenas uma diferença a nível de estética. Melhor dizendo, um serial killer confundia suas ideias com a aplicação efetiva delas. Na época, rira disso como se fosse apenas uma opinião louca, mas agora a entendia muito bem. Infelizmente, compreendeu. No mínimo, Degurechaff é uma anomalia, diferente de forma intrínseca do resto de nós.
Talvez isso seja um herói... Alguém que diverge do que consideramos normal. Não há nada de errado em admirá-lo, mas jamais iremos ensinar a “seguir o herói”. Não podemos incentivar algo assim. A Academia Militar é uma organização de desenvolvimento dos recursos humanos, não um lugar para criar lunáticos.
MESMO DIA, ESCRITÓRIO DO ESTADO-MAIOR DO EXÉRCITO IMPERIAL, SALÃO DE GUERRA.
O Estado-Maior decidiu premiar um certo feiticeiro oficial com uma medalha, uma das raras ocasiões em que a Insígnia Ataque de Asas Prateadas era entregue a alguém vivo, o julgamento foi proferido com uma velocidade sem precedentes. Também foi dado um título ao portador. Porém, ao passo que uma área estava agitada por conta da cerimônia de premiação após a vitória, um debate intenso acontecia no Primeiro Salão de Conferências de Guerra do Estado-Maior, onde os guardas impediam a entrada de qualquer pessoa não autorizada.
Para ser mais exato, dois Generais de Brigada de uma estrela⁴ se punham em firme oposição.
— Está errado! Se agirmos dessa forma, perderemos a flexibilidade para responder de maneira rápida, um risco que supera em muito os benefícios! — Um soldado másculo no auge de sua idade se pôs de pé e gritou em protesto. Os olhos azuis-claros transbordavam uma confiança que o fazia parecer arrogante, entretanto todos que encontravam seu olhar viam que estava sempre voltado para a realidade. O Estado-Maior considerava o General de Brigada von Rudersdorf um oficial cujo balanço entre confiança e habilidade o tornava excepcional. No momento, este homem ignorou a própria reputação e tudo mais, bateu na mesa e prosseguiu: — Nós já temos tropas o suficiente em campo para enfrentá-los enquanto fogem! Precisamos manter uma tática versátil ao mesmo tempo que aplicamos um grau razoável de pressão neles. Nada mais!
— Igualmente, também devo expressar minha opinião. Tivemos sucesso na destruição das forças inimigas em campo. O que mais podemos ganhar com a guerra? Já atingimos nosso objetivo de defesa nacional. — O homem concordou com a ideia de manter a flexibilidade tática. Quieto e de uma aparência erudita, o General de Brigada von Zettour passava uma impressão moderada, característica de uma pessoa que se portava como um soldado. Ele se juntou ao debate, falando com naturalidade, tal como faria um matemático checando o resultado de suas contas.
— Ambos apresentaram ideias válidas… Gostaria de comentar, General von Ludwig? — Presidindo a sessão, o Ajudante de Ordens Marchese sentia que os argumentos apresentados pareciam muito razoáveis para simplesmente desconsiderar. Claro, ele era experiente o bastante para ignorar pontos de vista opostos no debate se achasse necessário.
No entanto, não era como se Marchese não tivesse seus próprios motivos para ficar preocupado. Considerando que a posição tomada pelo Estado-Maior teria uma influência direta sobre o comandante no escritório chefe, valeria a pena ir mais a fundo. Portanto, perguntou ao General de Divisão von Ludwig, chefe do Estado-Maior, que defendia uma ofensiva em larga escala. Tinha a intenção de ouvir os dois lados.
— Sei que é bom ter prudência, mas não há sequer um cheiro de mobilização de alguma nação vizinha. Se quisermos executar uma investida em larga escala sem essas restrições que temos, essa não é uma oportunidade de ouro?
O chefe do Estado-Maior se levantou com um olhar complicado no rosto. Aparentava estar confuso pela posição contrária vinda dos dois subordinados pelos quais ele tinha altas expectativas. Contudo, também sentia raiva. Por estar tentando organizar as suas emoções, tudo o que os outros viram foi sua expressão estranhamente perplexa.
— Mas senhor, ao menos, seria prudente limitar o tamanho da mobilização! Se usarmos todos os nossos recursos iremos destruir a premissa fundamental do Plano 315⁵! — Rudersdorf contestou.
Essa crítica era o resultado da situação geopolítica do Império, a única potência cercada por outras grandes forças globais, assim, em termos de defesa nacional, encontrava-se numa posição difícil de sempre ter que considerar a possibilidade de uma guerra em múltiplas frontes.
Existia também o contexto histórico de como a nação havia construído sua reputação de uma nova potência militar. Obrigado pelo medo e pela necessidade geográfica, o Império teve que almejar por uma superioridade militar capaz de suportar uma guerra de duas frontes.
— Não quero apenas repetir o que o General von Rudersdorf disse, mas não seria bom alterar nossas políticas de defesa nacional, incluindo o Plano 315 — acrescentou Zettour.
Assumindo que estavam cercados por potenciais inimigos em todos os lados, mobilizar e administrar as tropas de forma efetiva ao longo das linhas interiores se tornou a única opção de defesa. O plano detalhado exigia a mobilização em massa para neutralizar o exército de um único inimigo em potencial com forças superiores em número e qualidade. Depois disso, os militares iriam se preparar para enfrentar as outras nações hostis. Este era a política de defesa do Plano 315. A fim de sobreviver a uma guerra de duas frontes, quase impossível de ganhar, o plano tinha sido polido até os mais específicos horários de trem... A estratégia era considerada um obra-prima para o Império. Colocando de outra forma, levaria muito tempo para formar um novo plano se jogassem este fora.
— Zettour, temos que evitar o envio de forças fragmentadas. Não é preciso repetir isso.
— Estou ciente da tolice que é uma mobilização gradual, mas acho questionável a ideia de mobilizar todas as nossas tropas agora que destruímos o exército de campanha do adversário.
Por outro lado, o argumento de Ludwig também fazia sentido. Levando em consideração que o Reino de Ildoa, a República de François e a Federação Russi não apresentaram sinais de mobilização, o palco estava pronto para a derrota absoluta da Aliança Entente. Se o Império fosse atacar, tinha que ser com toda a força.
Todavia, quanto ao lançamento de uma ofensiva imediata, a opinião de Zettour, de que a vitória em Norden já era o suficiente, batia de frente com a ideia do chefe do Estado-Maior Ludwig.
— Concordo com o General de Brigada von Zettour. A vitória está ao nosso alcance, devíamos nos perguntar em como explorar seus frutos! Se mobilizarmos as tropas sem um plano claro, o objetivo tático será ambíguo demais, não vejo como isso beneficiaria nossa defesa nacional. — Rudersdorf não sentia necessidade de aumentar as conquistas. A questão era apenas saber a melhor forma de utilizar os ganhos uma vez que tivessem entendimento da situação. Mesmo que não fosse o ponto principal de sua proposta, o comprometimento da sólida política de defesa nacional sem plano algum também lhe preocupava.
— Enquanto o comandante-chefe não nos passar orientações, Rudersdorf, o Estado-Maior pode apenas buscar aumentar os ganhos militares.
— General, com todo o respeito, seria inconcebível conduzir uma operação militar sem um objetivo tático evidente. Sou totalmente contra uma invasão imprudente que pode arruinar a nossa política de defesa nacional. — Rudersdorf rebateu.
Zettour assentiu com uma expressão amarga no rosto.
— A oportunidade não espera ninguém! Estamos preparados para acabar com a disputa territorial em Norden de uma vez por todas nessa próxima expedição! Podemos resolver o problema geopolítico do Império!
Os aplausos que soaram de alguns dos participantes não eram injustificáveis. Zettour imaginou um belo futuro onde seu país estava livre do eterno problema de ser cercado de todos os lados por outras nações. Se dessem um golpe devastador na Aliança Entente, poderiam eliminar de vez uma de suas ameaças em potencial. Era uma oportunidade única de solucionar o obstáculo geopolítico que os assombrava por séculos.
— Discordo! Não podemos seguir essa ideia à custa de nossa defesa bem estabelecida! — O ponto de Rudersdorf atacou direto no cerne da divergência dos dois lados. Deveriam buscar um futuro seguro arriscando comprometer seu atual plano de defesa? — O objetivo do Império é a segurança nacional. Tendo em vista que estabelecemos uma fronteira graças ao Tratado Londino, talvez esse problema nem exista mais.
Zettour chegou até mesmo a dizer que deveriam esquecer a Aliança Entente. Em outras palavras, não queria abrir o buraco que o tratado havia tampado.
— Não há necessidade de fazer o que o inimigo quer! Não seria melhor seguir o nosso próprio plano? Pretende jogar fora todas as nossas preparações?!
Sobretudo, assim como Rudersdorf havia argumentado com veemência para aqueles ali presentes, essa decisão afetaria a base da defesa nacional do Império.
O Plano 315, alterado constantemente pelo Estado-Maior no decorrer dos anos, era a única política viável para proteger a nação dado a sua situação geopolítica. Cercada por inimigos em potencial, a decisão foi — não importando qual país iniciasse o efeito dominó que seria a primeira invasão — defender o território por meio de contra-ataques coordenados. Na realidade, eles não conseguiram criar outro plano com as mesmas chances de sucesso.
— Quer perder a chance de sair deste cerco, mesmo que parcialmente?
— Se conseguirmos enfraquecer a Aliança Entente, poderemos nos concentrar mais ao leste. E a oeste, poderemos tentar construir uma linha de defesa menos tensa contra Albion e François.
No entanto, eles continuaram com os argumentos um após o outro, o fim parecia longe. O debate originou-se do desejo incontrolável do Estado-Maior em abraçar essa oportunidade; poderiam finalmente escapar desse impasse. Se agirmos agora... Neste momento, pela primeira vez desde a fundação do Império… Poderemos acabar com esse obstáculo de uma só vez.
— Temos sorte de nenhuma potência mostrar sinais de mobilização. Acredito que se agirmos agora, eliminaremos a raiz dos problemas da nossa nação.
Não tinham como saber se essa seria a melhor decisão a se tomar... Pelo menos, não nesse momento da história.
Notas:
1 – Regras de Engajamento. São os meios pelos quais o Comando de uma Força Armada, empregada em uma operação de guerra (bélica) ou de não guerra (não bélica) mantém o controle sobre o uso da força no cumprimento da missão recebida do Poder Político.
2 – A artilharia autopropulsada (AP) ou artilharia automotora consiste na artilharia de grande mobilidade, equipada com armas montadas em veículos terrestres, que podem disparar a partir deles. Este tipo de armas inclui, normalmente, tanto as peças de artilharia, morteiros e obuseiros autopropulsados, como os lançadores autopropulsados de mísseis e foguetes.
3 – Artilharia a tratores ou rebocada: constituída por armamento que se desloca rebocado por tratores mecânicos, que podem ser veículos sobre rodas ou sobre lagartas, blindados ou não. Algum do armamento rebocado pode estar montado em reparos que dispõem de um motor auxiliar que lhes permite deslocar-se autonomamente em distâncias muito curtas, o que facilita a alteração da posição de tiro.
4 – Através de pesquisas extensas, soubemos que estes chefes do exército ocupam posições que não existem no exército brasileiro. Levando isso em consideração, como o local baseado e a época que se passa a obra, tivemos que adicionar a quantidade de estrelas do General de Brigada. No Brasil não há um General de Brigada de uma estrela (OF-6), somente General de Brigada de duas estrelas (OF-7). Como a obra se passa antes da segunda guerra e baseada na Alemanha, nem havia outras divisões de forças armadas (como aeronáutica e marinha), que só foram formadas em 1956.
Em futuras menções, quando os cargos deles subirem uma estrela, ainda estaremos utilizando General de Brigada, adicionando a ênfase que é "de duas estrelas", mesmo que na Alemanha seja "General-major".
5 – Este plano faz referência ao Plano Schlieffen do exército alemão no início da Primeira Guerra Mundial, em 1914. Foi concebido pelo chefe do Estado-Maior alemão em 1892 a 1906. O plano previa resolver uma questão que preocupava os alemães em caso de conflito: uma guerra em duas frentes, ou seja, uma guerra contra a França e, muito provavelmente, contra o Reino Unido, na frente ocidental e, simultaneamente, uma guerra contra a Rússia, na frente oriental.