Volume 7

Capítulo 4

 

— Bang, bang!

Posso ter alguns problemas mentais. Desde que destruí a “Deadlock Among Mirrors”, ouço repetidamente alguém batendo em uma parede. Isto já dura uma semana inteira agora.

Algo me diz que não devo ignorar este som. Enquanto estou ciente do quão tolo é obedecer a uma alucinação, não consigo ignorá-la por mais tempo. Vou procurar a origem.

Mesmo que o som pareça estar vindo de algum lugar próximo, levei bastante tempo para chegar à sua fonte. Acabo viajando por duas prefeituras antes de chegar a uma estação de trem decrépita em uma cidade suburbana decepcionantemente sem graça.

Enquanto a área é bastante genérica, me sinto em casa por algum motivo. Provavelmente já estive aqui antes, mas não importa, já que não consigo lembrar de qualquer maneira. Ele... não deve importar.

— Bang, bang!

O barulho cresce mais alto. Devo estar muito perto da sua fonte. Ando pelas ruas desta cidade familiar, mas desconhecida e paro na frente de um complexo de apartamentos relativamente novo. Não há dúvida: o som vem de um dos apartamentos. Guiado pelo som, subo as escadas de emergência.

Aah... Finalmente o verei novamente.

— Hum? Quem?

 

Parece que o som está vindo do quarto 403. Tento girar a maçaneta e percebo que a porta está destrancada. Depois de me decidir, abro a porta. Imediatamente reconheço a figura na minha frente e grito:

— ‘O’!

O ser não-humano se vira e sorri para mim. Aparentemente, ‘O’ estava me esperando.

— Qual é o significado disso…?

‘O’ tem a aparência de uma mulher com cabelos pretos longos que, após uma inspeção mais próxima, não parece muito mais velha do que eu. Sua juventude, entretanto, é ofuscada por sua beleza encantadora. Além disso, a aparência de ‘O’ se assemelha um pouco à minha.

— Bang, bang!

Que surpreendente — o som está vindo de dentro dela.

— ...Então você é a fonte desse barulho? Qual é o seu objetivo? Para me atrair aqui? Que maneira estúpida de fazer isso...

De repente, percebo que ‘O’ se tornou um pouco transparente. Linhas profundas de exaustão são esculpidas em seu rosto. Enquanto ainda estou tentando descobrir o que está acontecendo, ela lentamente caminha até mim.

— Maria.

Enrugo minha sobrancelha. ‘O’ nunca antes me chamou pelo meu nome, e ainda assim me faz sentir nostálgica. Incapaz de lidar com esses sentimentos, perco a compostura. ‘O’ delicadamente envolve minhas bochechas em suas mãos.

— Queria ficar ao seu lado, Maria. Eu realmente queria.

— Do que você está falando…?

— Mas parece que não posso mais fazer isso. Chegou a hora de dizer adeus.

— Sério, do que você está falando?! — Grito, confusa por seu absurdo, mas ‘O’ apenas se mantém gentilmente sorrindo.

— É hora de desistir.

— …Hã?

— É hora de desistir do seu ‘desejo’.

Fico ainda mais confusa.

— O-o que...? Eu nunca vou desistir do meu desejo de fazer todos no mundo felizes. Nunca.

Tenho certeza que ela está apenas tentando me confundir com brincadeiras inúteis, como sempre faz. Ainda assim, não consigo me livrar das mãos que estão aquecendo minhas bochechas. Apesar de todas as provações que tenho superado e todos os conselhos que ignorei ao perseguir meu desejo, não posso desprezar suas palavras.

— Bang, bang, bang, bang!

O barulho vindo do interior de ‘O’ cresce ainda mais alto.

— Fomos derrotadas.

— ...Derrotadas? Por quem?

‘O’ apenas sorri silenciosamente, como se quisesse indicar que a resposta deveria ser óbvia.

— Maria. Você não pode mais evitar olhar o passado. — Ela suavemente me avisa com um sorriso. Isso me lembra de...

— Ah.

Agora entendo. Então era ela que ‘O’ estava imitando...

— Não…! Não se atreva...!

As memórias do passado estão sendo empurradas à força em minha cabeça.

O passado.

O passado.

Agito freneticamente a cabeça. Fique longe. Não preciso do meu passado. Não quero vê-lo. Não quero saber sobre isso. Não quero me lembrar disso.

Mas ‘O’ não vai me soltar e aperta suas mãos em minhas bochechas.

— Maria. Você tem que ir para a luta. Você tem que enfrentar seu inimigo mais forte. Temo que é uma batalha que você não pode vencer. Sei disso por experiência. Ele vai te derrotar completamente.

Não consigo pensar no nome do meu inimigo, mas sei com uma estranha certeza que ele está disposto a sacrificar a si mesmo e a todos os seus amigos para esmagar o meu desejo.

O que é ainda mais aterrorizante, no entanto, é o fato de que meu coração está se aquecendo por alguma razão. Estou paralisada diante dessa terrível descoberta. ‘O’ de repente me abraça, e eu não posso afasta-la.

Aah... Devo estar alucinando, mas uma mistura de vários óleos e perfumes — uma mistura de aromas — está afetando no meu nariz. Esta fragrância nostálgica, é —

É o cheiro de Aya-oneechan.

— Agora, Maria, faça o seu melhor.

Afundo lentamente em Onee-chan.

O corpo de Onee-chan. É como se eu estivesse presa em teias de aranha. Pouco a pouco, sou consumida por seu corpo. Este lugar é o nosso santuário. Nosso mundo que ninguém deve invadir.

Contudo.

Ainda há um som.

— Bang, bang!

— Bang, bang!

 

Estou caindo... caindo... caindo tão devagar, mas o fundo ainda está longe. É como se eu estivesse flutuando nas profundezas do oceano, mas é tão brilhante como o dia — posso claramente fazer pequenas bolhas na água transparente.

Este lugar é tão puro, tão justo, tão justo. Aah, que lugar confortável! Pode ser frio e sufocante, mas ainda é o meu paraíso.

Posso ouvir vozes: hahahaha!, eles riem, hahahahahahaha! Eles riem de alegria. Embora falho, este lugar é cheio de felicidade. Ao afundar mais fundo no oceano, passo por vários pequenos mundos. Como cada um deles está cheio de felicidade, começo a sorrir. Afinal, minhas ações não eram fúteis.

À medida que afundo mais, de repente toco um desses pequenos mundos. Me encontro rodeada de luz e sou atraída.

Como o próprio Deus — se posso dizer — estou flutuando no céu e posso ver o mundo inteiro de uma só vez. O mundo é construído em torno de um casal amoroso. É o seu pequeno mundo. Os dois estão sentados na margem de um lago, encostados um no outro. Posso ouvir fracamente o voo de aves selvagens na floresta verde que rodeia o lago. A superfície do lago é cintilante na luz do sol como se para celebrar o seu amor.

Sim, pode chamar de falho se quiser, mas este é sem dúvida um mundo de felicidade.

— Hm?

Como um efeito colateral de usar a “Flawed Bliss”, eu deveria ter esquecido sobre este casal, mas por algum motivo, talvez seja porque eles estão bem na minha frente, talvez seja porque estou dentro da “Flawed Bliss” — eu os reconheço. Usei minha caixa neles no mundo real.

É Nana Yanagi e Touji Kijima. Eles eram um casal, mas seu relacionamento já estava quebrado quando os conheci. Havia simplesmente muitas questões não resolvidas entre eles.

Eles estavam sofrendo por causa de seu relacionamento anormal. Nana Yanagi estava em um estado particularmente horrível. Ela ainda considerou matar seu namorado porque seu relacionamento estava terminando de qualquer maneira. Simplesmente impedi que o ato violento que só teria atacado os sintomas sem abordar o problema. Consequentemente, conclui que não havia nenhuma maneira de aliviar seu sofrimento e usei a “Flawed Bliss”.

Eles foram salvos e agora vivem neste mundo pacífico.

— Esta…! Esta é exatamente a paz que eu queria conceder!

Não haverá mais problemas — só coisas agradáveis e gentis existem aqui, afinal. Sua afeição de uns pelos outros permanecerá pura e sem distorções para a eternidade.

No momento, minha caixa pode ser falha e só é capaz de criar felicidade em mundos isolados, mas se conseguir criar uma versão perfeita, vou ser capaz de realmente cumprir o meu desejo.

(Não vou deixar isso acontecer.)

— Hã…?

É como se uma voz estivesse falando diretamente na minha cabeça.

 

Splat!

De repente, uma coisa grotesca cai do céu, embora deva existir somente coisas bonitas neste mundo.

 

— Eeeh? O que é isso? — Nana Yanagi pergunta enquanto inclina a cabeça, percebendo a coisa feia que acabou de aparecer.

É um pedaço de carne vermelho escuro que se assemelha a um emaranhado de órgãos internos, e está pulsando de uma forma misteriosa como um coração. Thump thump thump!

— Eww... isso é nojento.

Tinha pouco tempo para dizer algo a mais: o pedaço de carne vermelho-escuro e pulsante começa a crescer rapidamente e preenche todo o lago em pouco tempo.

— Eek! Não…! Fique longe! É nojento!

A massa faz com que as árvores apodreçam, transforma a água em lodo e arrasta os dois. Ao soltarem um grito ensanguentado, são enterrados sob a massa. Em questão de momentos, o belo mundo se transforma em um grotesco.

— Que diabos está acontecendo aqui…?

Tudo aconteceu tão rápido que eu só podia assistir. Acabou. Meu ideal foi destruído. Uma massa diabólica e grotesca estragou tudo.  Incapaz de manter sua felicidade artificial, o mundo explode e eu sou jogada de volta para o oceano brilhante.

— O que aconteceu…? O que está acontecendo…?

— Bang, bang!

Aquele som novamente, me viro e descubro uma sombra nebulosa, ondulante, que tem a forma de uma pessoa e parece estar à beira da dispersão.

(A... ah...)

Sua voz se assemelha à voz que ouvi na minha cabeça mais cedo.

— Aquele era você? Você destruiu esse mundo?

(Pare com isso!)

— Hm?

(Pare com isso!)

Continuo ouvindo, mas a sombra não diz mais nada. Então tento alcança-la. A sombra desmorona e desaparece.

— …Do que se trata tudo isso?

Ele claramente não foi criado por mim. Mas enquanto a sombra era tremendamente frágil, tenho certeza de que é o criador daquele pedaço de carne vermelho escuro. Olho ao redor. Há sombras humanas em volta de mim que não notei quando estava focada nos belos mundos.

Quando presto atenção, ouço suas vozes:

(Sou solitário.) (Não quero ficar sozinho, odeio a solidão.) (Alguém? Por favor, alguém?) (Apenas me mate.) (Pare com isso pare, pare com isso!)

— ... Sério, o que...

Não há nada além de agonia em suas vozes.

Enquanto estou pensando em sobre a identidade dessas sombras, minha visão se torna branca de novo. Sou atraída para mais um pequeno mundo e me encontro novamente em uma posição em que posso olhar para tudo.

Vejo um parque espaçoso e tranquilo com brilhantes campos de trigo dourado nas proximidades. No meio do parque, dois rapazes e uma menina estão tocando juntos. A menina de cabelos negros, que está quebrando vidros, é claramente uma jogadora horrível. Os dois meninos estão jogando as bolas em arcos suaves, mas ela ainda não consegue pegar nada. Dito isto, eles estão se divertindo de qualquer maneira e riem sem parar.

Não precisei prestar atenção de perto para reconhecer que o menino bonito e a menina estão apaixonados um pelo outro. O segundo garoto, que é mais alto do que o primeiro, está os observando com um sorriso caloroso.

Aah, entendo. Isto é —

— O mundo feliz de Daiya Oomine.

Quando ele se tornou ‘portador’, Oomine tentou mudar o mundo fazendo os tolos conscientes de seus pecados, mas ele falhou. Ele cometeu pecados durante esse tempo, acabou ficando encurralado, e foi esfaqueado por um crente fanático antes que ele pudesse chegar a uma maneira de expiar seus erros.

Eu corri quando ele estava morrendo, e usei a “Flawed Bliss” nele.

Seus companheiros são as versões de ensino médio de Kokone Kirino e Haruaki Usui. Oomine e eu nos juntamos para realizar seu desejo, mas agora eu sei bem, o que ele realmente queria não era uma revolução, mas apenas isso: um lugar simples onde Kokone Kirino pode sorrir sem preocupações.

Seu desejo se tornou realidade neste mundo. Não há esperança de que isso aconteça na realidade. Por um lado, Oomine não pode sobreviver, e por outro lado, Kirino tem uma mente muito quebrada e não seria capaz de lidar com a notícia da morte de Oomine. Usui também continuaria sofrendo com seus trágicos destinos.

A realidade é muito extrema e muito cruel. Mesmo que seja apenas um sonho doce, é o resultado mais feliz que pode haver.

Ah, e ainda —

— E ainda assim você quer que enfrentemos a realidade?!

Splat!

Mais uma vez. Mais uma vez, um corpo grotesco invade esse mundo feliz.

— Não... Não...!

Não tente destruir uma felicidade que só pode vir acontecer com a ajuda de uma caixa!

— Oomine é seu amigo, certo? Certo?! Você deve ser capaz de entender que Oomine precisa desta caixa, mesmo que seja falha! Por favor, pare... por favor!

Eu grito —

 

— Kazuki!

 

O nome dele.

— Ah!

Certo, eu me lembro agora. Este é o meu inimigo.

— Hm? O que é isso?

Quando a versão mais jovem de Oomine percebe o corpo estranho, o pedaço de carne já começa a se expandir.

À medida que a massa cresce, os campos de trigo dourado apodrecem e perdem seu brilho, o solo saudável se transforma em lama. O céu acima deles está manchado de preto e roxo, e os três são capturados pela carne cada vez maior. Não importa o quão alto eles gritam, a massa vermelha continua crescendo. Em pouco tempo, os absorve e grotescamente cobre o mundo inteiro.

Este mundo também terminou.

O mundo da felicidade de Daiya Oomine não existe mais. Mais uma vez, sou jogada de volta para o fundo do mar.

— ...Por que, Kazuki...? Por quê…?

Diante de mim ainda há a sombra nebulosa. Não é Kazuki, exatamente, mas sei que está relacionado com ele.

— Já chega...! Quem você pensa que é?! O que te dá o direito de arruinar a felicidade dos outros?! — Grito com raiva, mas a sombra continua repetindo a mesma coisa.

(Dói, dói, dói ...)

Toco a sombra e ela se dispersa novamente. Isso provavelmente significa que minhas palavras não chegam até ele.

— Kazuki... o que você fez com a minha caixa? O que você está fazendo agora…?

Olho em volta. As misteriosas sombras começam a se reunir ao meu redor como se quisessem caçar sua presa. No entanto, as sombras apenas repetir as mesmas palavras sem sentido.

(Não... não...) (Me salve) (Me mate) (Estou sozinho) (Desculpe, desculpe, desculpe) (Alguém, por favor, alguém me olhe) (Ughhhhh) (Quero te ver!)

(Maria!)

(Maria!)

(Maria!)

Cerro os dentes e balanço a cabeça.

As sombras se dispersam ao mesmo tempo.

 

Eu continuo afundando no mar. Sem fim. Quanto tempo tenho andado por aqui, me pergunto? Um bom tempo deve ter passado. Enquanto afundava e afundava, visitei vários mundos pequenos e felizes. Todos eles eram agradáveis ​​e cheios de riso contínuo, e cada um deles foi corrompido por este grotesco pedaço de carne vermelha.

No começo, eu estava com raiva. Por que Kazuki faria algo assim? O que há de tão bom em me atrapalhar? Mas então lentamente comecei a ficar com medo. Notei a loucura horrível escondida atrás dos métodos que ele deve ter empregado. Comecei a ficar preocupada com Kazuki. Ele estava bem depois de fazer tudo isso? Ele poderia manter sua sanidade?

Depois de ver outro mundo sendo devorado pela massa de carne, sussurro:

— Kazuki... Eu quero falar com você.

O que você está pensando? O que você está fazendo? Quero saber. Pensei que continuaria afundando, mas aparentemente estava errada: a água não é mais transparente, mas começa a assumir uma cor escura e está pegajosa, muito parecida com alcatrão de carvão. Todas as emoções negativas que nasceram dentro dessa caixa se estabeleceram aqui. Esta camada sedimentar de angústia forma o fundo do mar.

Aqui eu descubro mais um pequeno mundo.

Parece que este mundo é a culpa dos incidentes estranhos e da acumulação de angústia. Faço minha decisão e entro neste pequeno mundo.

Desde o momento em que entrei, senti uma diferença fundamental de todos os outros mundos. Seu ar belisca minha pele como se houvesse grãos de areia flutuando, o céu está manchado de sangue vermelho. O solo é coberto por inúmeros pedaços de carne desde o início, mas nenhum deles está crescendo ou pulsando.

Como esperado, sou apenas uma espectadora aqui também. De repente, porém, algo se aproxima de mim enquanto estou flutuando no céu. É uma distorção no espaço, um “sedimento”, que mal se parece com um ser humano.

(Maria)

Essa voz e esse nome...

— Kazuki! É você, não é?!

Mas o sedimento apenas diz:

(Receio que não possa responder a você, uma vez que esta é apenas uma mensagem que deixei para você na esperança de que um dia você possa vir aqui. Não... realmente não deixei essa mensagem de propósito, é apenas um eco do passado.)

— Que lugar é esse? Ah... você não pode me responder, hein?

(Você deve estar se perguntando que lugar é este, Maria. É o mundo onde eu estava preso pela “Flawed Bliss” e onde eu deveria ser feliz.)

O sedimento corta sua explicação e flutua como se fosse para me guiar a algum lugar. Eu sigo silenciosamente.

Chegamos ao telhado do prédio da escola.

Olho para baixo e começo a observar. Como nos outros pequenos mundos, sou um espectador que pode “ver” mais que apenas aquilo que está na frente dos meus olhos. É difícil descrever essa sensação peculiar, mas posso sentir o mundo com todo o meu corpo.

A escola está mais barulhenta do que me lembro. Aparentemente, um festival escolar vai ser realizado, e os alunos estão ocupados com os preparativos finais. Entre eles estão os rostos que eu reconheço.

Também descubro Oomine e Kirino. Eles parecem estar em condições muito boas neste mundo. Relutantemente, continuo procurando por outra pessoa. Há apenas uma pessoa que quero ver agora.

— Kazuki! — Eu grito, o encontro enquanto ele sai do prédio da escola. — Ah...

Não quero admitir, mas meu coração começa a bater mais rápido apenas ao vê-lo. Não consigo me livrar do desejo de estar com ele, não importa quantas vezes ele fique no meu caminho. Quero que ele me note — que se vire e me veja.

Mas então noto outra coisa: Kazuki está empurrando uma cadeira de rodas com Kasumi Mogi. Eles estão passeando alegremente pelo festival como um casal.

— ...

Sentimentos se misturam dentro de mim. É natural que Mogi esteja ao seu lado. Ela sempre quis confessar seu amor para ele, afinal. Como ela acabaria se acidentando de qualquer forma, ela teria conquistado o Kazuki no final, se não pelas as caixas.

— Sim, está certo…

Kazuki não precisa de mim.

Năo precisa.

— Eu não existo em um mundo onde o Kazuki pode ser feliz. Não...

Na verdade, eu sou um obstáculo.

Kazuki costumava acreditar que não há desespero que não possa ser superado pela vida cotidiana, mas sua crença foi destruída quando um corpo estranho invadiu sua vida e o deixou louco. Eu o envolvi com caixas.

Em outras palavras —

— Eu trouxe desespero sobre o Kazuki.

Portanto, não tenho o direito de estar ao seu lado.

 

Mas mesmo que eu tenha percebido isso, nem o mundo nem o sedimento me libertam. Me sinto deprimida enquanto sou forçada a vê-los passar o dia juntos.

O festival termina e a cerimônia da fogueira começa. Os alunos começam a dançar com a música Oklahoma Mixer. Kazuki e Mogi estão lado a lado, observando pacificamente as chamas. Mogi suavemente — quase como se tentando capturar uma bolha de sabão — pega a mão de Kazuki e olha em seus olhos. Imediatamente percebo o que ela vai dizer.

— Eu te amo, Kazu-kun.

Depois de olhar profundamente em seus olhos, Kazuki sorri e responde:

— Eu também te amo, Mogi-san!

Com o sorriso mais lindo, Mogi diz:

— Vamos ficar juntos para sempre.

— Com certeza.

Sim, não há mais nada aqui para eu ver. Kazuki encontrou a felicidade. Nesse caso, eu deveria ir embora agora. Olho para o sedimento novamente.

— Já vi o suficiente. Me deixe voltar para o mar.

O sedimento permanece em silêncio.

— Não se preocupe. Vou deixar Kazuki sozinho. Não guardarei nenhum rancor contra ele, mesmo que ele quebre a “Flawed Bliss” além de qualquer reparo. Na verdade, é o contrário: ele tem todas as razões do mundo para me detestar. Ele ganhou o direito de esquecer sobre mim e começar de novo. Mas não vou mudar. Vou continuar procurando uma maneira de fazer todos no mundo felizes, com ou sem a “Flawed Bliss”.

Eu não esperava uma resposta, e mesmo assim o sedimento abre a boca para fornecer uma:

(Aposto que você está ideias tolas agora, Maria. Deve estar sofrendo sob a ilusão absurda de que um cotidiano junto com a Mogi-san supostamente significa felicidade para mim, e que você deve ir embora.)

— O que?

(Não subestime minha loucura.)

De repente, o mundo fica branco.

— O que aconteceu…?

Um instante depois, o mundo voltou ao normal. O céu permanece carmesim e os pedaços de carne vermelha ainda estão onde estavam antes, mas algo parece diferente. A fogueira no pátio da escola sumiu e os alunos estão novamente se preparando para o festival. Depois de um tempo, finalmente percebo o que aconteceu.

— O tempo acabou de recomeçar? Eles estão experimentando o dia do festival mais uma vez ...?

Mais uma vez, Kazuki aparece empurrando uma cadeira de rodas.

— Não vai... ter um final feliz...?

 

Como espectadora, meu senso de tempo é diferente do de Kazuki. É semelhante a assistir a um jogo de computador; Apesar de muito tempo decorrer, não fico muito cansada.

Tenho que testemunhar repetidamente como eles gostaram do seu dia juntos. Inúmeras são as vezes que Mogi confessa seu amor a Kazuki, e ele aceita. Estou ciente dos meus sentimentos por Kazuki. Penso nele com ternura e desejo abraçá-lo e apertá-lo, torná-lo meu. Cada vez que os vejo confirmarem seu amor, meu coração sofre de novo.

— O que é tudo isso? Isso é supostamente um castigo? Você está tentando se vingar mostrando o que não posso ter? — Pergunto ao sedimento, mas diferente de antes, não tem uma resposta gravada para mim. — ...Não, eu não deveria estar chamando isso de “punição”. Eu deveria estar feliz por ver que o Kazuki está feliz. Meus próprios sentimentos são irrelevantes.

Enquanto cerro meus dentes, continuo observando Mogi confessar e Kazuki aceitando suas confissões. No entanto, como o sedimento tinha me avisado, algo muito pior estava por vir.

A alteração ocorre durante a décima iteração.

— Por favor, espere até amanhã. — Kazuki diz amargamente em resposta à confissão de Mogi.

Como se assombrado por alguma coisa, ele desaparece no prédio da escola e deixa Mogi desconcertada para trás. Ele finalmente reaparece no telhado. Sem hesitação ele sobe a cerca.

— O que ele está fazendo…? Ele não iria querer pular, ele...? ...?! Entendo, ele deve ter notado que o mundo está se repetindo, então ele...

Enquanto ele olha para o chão com a respiração ofegante, Kazuki sussurra:

— Maria!

— !

Kazuki salta para a sua morte com o único propósito de me encontrar.

 

Mas o mundo continua. Kazuki parece lembrar da iteração anterior: ele ignora seus deveres de cuidar de Mogi e sai da escola em minha busca.

— Pare com isso, Kazuki...

É inútil. Você não vai me encontrar. Este é um mundo que só pode existir sem mim, e você deve saber disso.

— Você não precisa de mim para ser feliz! Você tem a Mogi! Você tem o Haruaki e seus amigos. Eles irão apoiá-lo. Você simplesmente tem que parar de me procurar... e ainda assim!

Sendo incapaz de me encontrar, Kazuki comete suicídio novamente para manter suas memórias. Ele derrama o conteúdo de sua cabeça diante dos meus olhos.

 

A busca sem sentido de Kazuki por mim prossegue. Ele repetidamente comete suicídio e se transformou em nada mais do que um pedaço de carne. Uma pessoa sã não seria capaz de continuar cometendo tais atos violentos, na verdade, Kazuki lentamente ficou louco e perdeu a razão e a sagacidade. Mas ele continuou procurando por mim.

O número de vezes que gritei “Pare!” foram inúmeras, mas Kazuki continuaria morrendo diante dos meus olhos. Com o tempo, o céu ficou mais vermelho e o número de cadáveres aumentou. Por fim, percebi por que esse mundo parecia tão estranho e diferente de todos os outros mundos.

O próprio Kazuki estava tingindo o céu de vermelho. Foi ele que criou as massas de carne cobrindo o chão. Ao morrer, ele estava derrotando o propósito deste mundo. Kazuki tem feito isso muito antes de eu começar a assistir. Não é a primeira vez que ele recuperou a memória e continuamente se matou.

Ele está desafiando a “Flawed Bliss”. Os efeitos da luta contra a felicidade não podiam ser contidos apenas neste pequeno mundo; Ele infligiu dano à própria “Flawed Bliss” pouco a pouco, o que também apareceu em outros mundos em forma de corpos estranhos destrutivos.

Este tipo de violência não é diferente de um bombardeio suicida. Ninguém se beneficiará dele.

— Como posso parar Kazuki...?

Mesmo quando ele desiste de manter suas memórias e decide se tornar feliz com a Mogi, nunca dura por muito tempo. Eventualmente, ele sempre percebe que o mundo está se repetindo e começa a se matar novamente. Ele tem feito isso repetidamente.

Isso é o inferno. Para ele e para mim.

No entanto, eu sou a única pessoa que criou este inferno em primeiro lugar.

— Isso é…

É essa a felicidade que eu desejei? Algo que é tão vulnerável à distorção?

Nesse caso, a minha caixa tem de ser dest...

...Não, não devo tirar conclusões precipitadas. As outras pessoas em quem usei não perceberam que era tudo falso e conseguiram se divertir. Kazuki é uma exceção. Há algo “especial” sobre ele que o faz ver através da decepção e continua fazendo-o resistir.

— Eu não entendo... o que provocou isso?

Seus sentimentos por mim? Mas ele dificilmente está fazendo isso por minha causa. Com toda a honestidade, eu prefiro que ele se esquecesse de mim do que sofrer tanto. Se pudesse, eu entraria alegremente nesse inferno em seu lugar. É mais difícil para mim vê-lo sofrer do que sofrer.

Kazuki deveria saber minhas preferências.

— Kazuki... volte aos seus sentidos. Ninguém deseja o que está fazendo. Não é tão tarde. Esqueça-se de mim e encontre sua própria felicidade!

No entanto, pela primeira vez em muito tempo, o sedimento fala novamente.

(Heh, isso foi apenas o começo.)

Fico abismada, mas logo descobriria que isso não era nem uma mentira nem um exagero.

 

O inferno de Kazuki mudou mais uma vez para pior, e começou a atormentá-lo de todos os modos imagináveis. Ele recorreu a um ato absolutamente errado: ele matou Mogi. Matou seus amigos. Matou a família dele. Matou cidadãos inocentes. Ele queria livrar o mundo das pessoas para que não haja mais espaço para a felicidade.

Assassinar é muito mais prejudicial para Kazuki do que cometer suicídio. Se ele continua fazendo isso, não vai sobrar muita coisa da sua alma quando ele conseguir sair da caixa. Ele seria atormentado pelo horrível remorso pelo resto de sua vida.

— Pare, Kazuki... pare já com isso...

Tenho certeza que Kazuki está ciente das consequências de suas ações, mas ele mata por que quer me ver. Ele é imparável.

Por causa de seus atos assassinos, rachaduras começam a se espalhar por todo o mundo.

Aah... eles representam meu próprio coração vacilante. Minha fé na “Flawed Bliss” está vacilando.

Kazuki eventualmente conseguiu apagar os outros membros deste mundo.

A ausência de vida externa também significa que não há sentido para a própria vida. O significado de alguém é criado pela existência de um observador. Estando completamente sozinho, Kazuki gradualmente foi perdendo suas capacidades como um ser humano. Já não pode andar de moto, não consegue mais operar um elevador, já não pode escrever, e se esqueceu de como falar.

Kazuki está se tornando incapaz de fazer qualquer coisa.

— Meu Deus... lamento. Ele... não tem mais nada, não é? Ele perdeu tudo!

Tão falso quanto este mundo pode ser, ele não pode ter esperança de se recuperar de uma perda tão grande. Kazuki está além de qualquer ajuda, mesmo que eu destruísse a “Flawed Bliss”.

— Ele perdeu ainda mais do que eu!

No entanto, Kazuki não para, mesmo que ele perca todas as suas habilidades, ele é repetidamente atraído para um determinado lugar.

Embora mal esteja consciente, ele nunca deixa de chegar ao meu antigo quarto. Ele então começa a chamar meu nome e bate a cabeça na parede. De novo e de novo. Ele continua batendo sem sentido na parede durante um período quase infinito de tempo.

Meu nome eventualmente começa a desaparecer de sua memória, mas ele não para de bater na parede. Kazuki não tem mais coração. Ele está apenas executando um programa que ele criou uma vez.

— Bang, bang!

Ah... agora entendo...

O som que eu ouvia... era Kazuki chamando por mim.

— Bang, bang!

Ele tem me chamardo, todo o tempo abrindo sua alma e tornando-se oco. Como um mero espectador, não posso compreender quanto tempo ele tem batido na parede do seu ponto de vista, mas deve ser o equivalente a muitas vidas humanas. Por quase uma eternidade, Kazuki tem batido na parede.

Pelo único propósito de me encontrar.

Pelo único e maldito propósito de me encontrar!

— Ugh... ah...

Posso não responder a seus sentimentos de alguma forma?

— Kazuki! — Eu grito. — Kazuki! Estou aqui, Kazuki!

Mesmo que eu saiba que é inútil, continuo gritando com todo o meu pulmão.

— Kazuki! Kazuki! Kazuki! Kazuki! Kazuki!

Estou na frente dele e grito seu nome.

No entanto, ele não me nota, nem posso tocá-lo. Existe uma diferença exasperante entre nós. Minha caixa nos separa como uma parede.

— Bang, bang!

Kazuki está sem palavras chorando por ajuda. Me salva, isso dói, para. As sombras que encontrei no oceano eram manifestações tangíveis das emoções que levavam seus golpes.

Kazuki deveria ter a liberdade para parar a qualquer momento.

Mas mesmo que não haja nenhuma garantia de que ele poderia me alcançar, ele não para. Não, ele não pode.

— Kazuki... isso não é normal. Você é insano. Você é louco por fazer tudo isso apenas para me ver!

— Bang, bang!

— Mas…

Tenho que admitir.

— Mas isso me faz feliz, Kazuki.

É claro que não quero que ele sofra, mas não posso negar o fato de que também estou feliz já que ele está me desejando tão profundamente. Embora esteja ciente da feiura desta emoção, não posso suprimi-la.

— Eu vou ser honesta: posso ter afirmado o contrário, mas estava solitária e não queria ficar sozinha. Fiquei feliz por ter você ao meu lado. Você notou meus verdadeiros sentimentos, não foi? É por isso que você está batendo na parede desse jeito, não é? É por minha causa...

Tento tocar sua cabeça, mas minha mão desliza direto.

— Mas eu não escolhi você. Escolhi o meu desejo de fazer todos felizes e me separei de você. Eu tive que deixá-lo para manter meu propósito na vida.

E isso é o que resultou da minha escolha. Kazuki só tinha a mim. Ele não podia suportar ser separado de mim. Ele não tinha outra escolha a não ser ir em uma busca infrutífera e agonizante por mim.

Sou responsável porque não entendi sua verdadeira natureza.

— Já chega disso. Que se dane o meu “propósito na vida”. Não me importo se perder o meu significado e me tornar vazia... é muito pior somente olhar como você se perdeu. Quero te salvar, Kazuki! Porque eu... eu...

De repente, noto algo e toco minhas bochechas.

Elas estão molhadas.

Lágrimas.

— Isso não pode...

Ainda tenho a capacidade de derramar lágrimas? Ainda tenho tanta fraqueza em mim?

Não, não devo tomar consciência disso.

— Ew... ah... WAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!

As lágrimas continuam rolando pelas minhas bochechas.

— Kazuki... Kazuki... KAZUKI!

Kazuki trouxe de volta a fraqueza que uma vez descartei.

Ele conseguiu me mudar.

Nesse caso, eu...

 

Eu não sou mais uma ‘caixa’.

 

— AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAHH!

Eu voltei a ser humana.

— Se não sou mais uma caixa... se não tenho mais que me dedicar ao meu desejo...

Eu grito.

— Não me importo mais com o meu desejo! Apenas salve o Kazuki! Por favor, salve-o! ...Pare... Kazuki, eu quero te ver. Quero ouvir sua voz. Quero sentir seu calor. Quero que você olhe para mim. Quero que você olhe para mim mais uma vez. Kazuki... Kazuki... Kazukiii...!

— Bang, bang, bang, bang!

— Volte para mim... traga de volta os bons e velhos tempos! Já deu. Já deu! Eu não quero mais perder meus amados! Não quero mais ficar sozinha! Por favor... por favor... por favor... Kazuki... Kazuki... fique ao meu lado…!

De repente, um pensamento atravessa minha mente. E se nossas posições fossem revertidas? Estou confiante de que eu faria as mesmas coisas que ele fez, não importa o quão tolo pareça. Abandonaria tudo por causa do encontro com ele, mesmo que tivesse que me negligenciar e ele não desejasse isso.

Com lágrimas nos meus olhos, eu sorrio amargamente.

— Nós somos... nós somos estranhos, nós dois, não somos? Kazuki?

Não importa o quê, vamos tentar nos alcançar.

Não importa o quê, vamos tentar viver juntos.

Me pergunto, por que isso? Eu não sei. Eu não sei, mas simplesmente não há outra opção.

 

Há algo que nos conecta.

Algo que obtivemos.

Algo valioso que é muito mais poderoso do que ‘desejos’.

— Bang, bang!

— Você não pode me ouvir, Kazuki?

— Bang, bang!

— Você realmente não pode me ouvir?

— Bang, bang!

— Bem, então vou ter que me fazer ouvir!

 

Enxugo minhas lágrimas e selo meus lábios.

Eu chamo com a minha mente.

Vou destruir a “Flawed Bliss” e encontrar Kazuki, a fim de ficar ao seu lado por toda a eternidade, mesmo se ele é apenas uma sombra de seu antigo eu.

Mas isso é possível?

A situação de Kazuki não é o único problema, minha situação é tão problemática quanto. Perseguir meu desejo me forçou a ultrapassar meus limites por um longo tempo. Quando você estica uma corda, ela rasga ou solta, mas não retornará ao seu estado inicial. Se eu perder a “Flawed Bliss” e a esperança de sempre obter uma caixa nova, provavelmente serei deixada em um estado vazio. Não podemos estar juntos assim.

O que devo fazer?

(Encontre-a)

Meus olhos se arregalam quando ouço sua voz. O sedimento está falando comigo.

(Encontre a Zerésima Maria que ainda está chorando.)

— ...Quem ou o que é a Zerésima Maria? Serei realmente capaz de estar com o Kazuki se eu a encontrar?

No entanto, o sedimento não é capaz de responder. Não posso mesmo dizer com certeza se ou não as suas palavras são dirigidas para o meu dilema. No entanto, decido confiar em suas palavras.

Afinal, são as palavras do Kazuki.

 

Volto ao mar já não transparente e imediatamente noto uma voz.

Por que essa voz não chamou minha atenção até agora?

Porque foi afogada pelo riso? Porque eu não queria ouvir? De qualquer forma, agora ouço uma voz que não notei antes.

O choro de uma menina ecoa pelo mar.

Por mais que eu não queira acreditar, sua voz soa como a minha.

A voz origina-se do ponto mais profundo do mar, cercado pelo sedimento preto de angústia. Eu não sei o que vai acontecer se eu mergulhar nesta escuridão escancarada — poderia ficar preso lá dentro e me afogar — mas salto para dentro dela sem qualquer hesitação.

A escuridão solidificada serpenteia em torno de mim como concreto viscoso, e uma escuridão espessa se espalha diante de mim. Escuridão. Escuridão. Não consigo respirar, estou com nojo, estou com coceira, estou com medo, mas não paro. Sinto meu caminho através da escuridão e sigo o choro.

— Uh, gh ...!

Serei engolida pela escuridão.

Justo quando penso nisso, o véu negro se dispersa e chego a um lugar desolado.

— Este lugar…

Ah... conheço este lugar. Não tem como esquecer.

A salgada sabor do mar, uma estrada que corre ao longo do mar, abandonada, concreto rachado, barreiras vermelhas oxidadas, e além do penhasco, uma vista aberta, de tirar o fôlego. O outro lado é ocupado por uma colina de plantas daninhas e algumas árvores magras.

Esta estrada desolada tomou minha família de mim.

No entanto, este lugar não é nem realidade nem memória. Eu não estava aqui até que fosse tarde demais. Os dois carros já haviam sido rebocados para longe do local do acidente. Sendo assim, os dois carros que bateram através da barreira e estão caindo abaixo do penhasco neste momento não são reais. É apenas uma imagem virtual.

Dito isto, a reprodução da cena parece perfeita e deprimentemente real. Este devaneio parece mais real do que a realidade. As mortes que estou testemunhando também são terrivelmente reais.

Mesmo que eu os alcance, esperando salvá-los, não posso nem tocá-los porque sou apenas uma espectadora. Só posso ver como o carro da minha família passa por mim e cai no penhasco. Não posso mudar o passado. Meu pai e o outro motorista morreram instantaneamente. Minha mãe faleceu sem nunca recuperar a consciência. Minha irmã ainda estava consciente, mas morreu durante o transporte por perda de sangue. Estes são fatos imutáveis.

Esse pesadelo me perseguiu até perder minha memória — não, mesmo depois disso. No entanto, desta vez uma nova atriz faz sua aparição.

Sou eu nos meus dias de escola. Estou chorando amargamente pelo buraco na barreira que foi aberta pelo estrondo.

— Por quê...? — Minha antiga eu balbucia enquanto olha para o penhasco. —Por que você fez isso, Onee-chan?

Minha antiga eu está olhando para sua irmã manchada de sangue — Aya Otonashi — cuja parte inferior do corpo foi esmagada no acidente.

Aya Otonashi começa a rastejar até o penhasco. Mesmo que ela esteja prestes a morrer, ainda está sorrindo. Ela ainda tem aquele sorriso incrivelmente charmoso.

— Você sabe por que, não é, Maria? Queria me vingar da minha família por criar o vazio dentro de mim!

— Isso não é o que você me disse, Onee-chan! — Eu respondo.

— Você não planejou preencher esse vazio fazendo todas as pessoas felizes?

— Esse era o meu objetivo, sim, mas não o único. A vingança era tão importante. Decidi deixar meu objetivo de fazer todos felizes, Maria.

— Isso não é algo que você podia fazer...!

— Ah é. No momento em que eu perder minha vida, você não será mais Maria Otonashi.

Ela sorri.

 

— Você será Aya Otonashi.

É verdade que ela fez essa previsão.

 

— Agora vou prever o seu futuro, Maria.

              “Você vai se transformar em mim, você terá que se transformar.

                 Com isso quero dizer que você terá que fazer os outros felizes.

                       Maria, quando eu tiver 14 anos, vou deixar este lugar.

                                Maria Otonashi se tornará Aya Otonashi.”

 

Tudo ocorreu de acordo com o plano dela. Ela tinha o mundo na palma da mão. Aya Otonashi manipulava as pessoas e controlava o tempo. Ela era mais do que uma simples humana.

Não havia nada que ela não pudesse fazer.

— Não morrerei mesmo se eu perder meu corpo, Maria. Eu te tomarei, e viverei através de você. Depois que eu te tomar, você não terá mais lugar para existir. Você se tornará um ser cujo único propósito é perseguir meu desejo. E se você abandonar meu desejo, você se tornará uma concha vazia sem alma.

Ela está certa.

Eu não sou Maria Otonashi. Eu sou Aya.

Kazuki me mostrou um doce sonho, mas não posso mais voltar a ser Maria.

Claro, ainda vou destruir a “Flawed Bliss” e libertá-lo. Isso está decidido.

Mas isso é o mais longe que posso ir. Eu não poderei ficar ao seu —

 

(Maria, você não está enfrentando Aya Otonashi!)

 

Meus olhos se arregalam de surpresa.

Olho as sobras de Kazuki, aquele sedimento, diante de mim.

(Pare criar mentiras convenientes sobre Aya Otonashi. Pare de fugir da verdade.)

— ...Estou fugindo? Isso é um absurdo, mesmo sendo você falando isso Kazuki. Pela última vez entenda, Aya Otonashi me encurralou! O que é conveniente sobre isso, hein? Ridículo, eu digo. Eu também não queria sofrer, sabe? Não pedi essa luta...!

(Pare de deificar Aya Otonashi.)

Estamos falando com o passado um do outro. Bem, isso é natural já que o sedimento não pode realmente reagir aos meus comentários.

— Aya Otonashi é especial. Ela sempre foi, desde o momento em que nos conhecemos. Acho que é apropriado chamá-la de sobre-humana. — Digo com uma risada autodepreciativa. — Ela realmente sabia de antemão que iria me dominar e que iria morrer em seu aniversário. E ela tomou medidas. Nenhuma de suas profecias estava errada. Aya Otonashi excedeu os limites da humanidade. Ela é realmente especial.

O sedimento permanece em silêncio por alguns momentos.

Enquanto isso, o restante corpo superior de Aya Otonashi agarrou meu eu da escola secundária. Ela me segura com as mãos manchadas de sangue.

O sedimento abre novamente a boca:

(Eu fui para o endereço onde você costumava viver com sua família e tentei descobrir o máximo que pude. Foi fácil de aprender que você cresceu em um ambiente complicado, mas não ouvi muito sobre você, Maria. Ninguém pode me dizer nada.)

— Bem, eu era uma criança quieta, que não tinha amigos.

(Mas todos eles podiam me contar muito sobre Aya. “Inteligente” e “bela” eram as palavras que eles usavam para descrevê-la, mas também aprendi que ela era uma verdadeira encrenqueira, embora ela não causasse nenhum problema por si mesma; Incidentes de todos os tipos continuavam acontecendo em torno dela, e quanto mais velha ela era, o pior desses incidentes se tornavam.)

— Sim, Aya Otonashi era esse tipo de garota, mas e daí? O que você está querendo dizer? — Digo em um tom ligeiramente irritado, embora não saiba o que está me irritando.

(Aya tinha o hábito de dizer que queria fazer com que todos no mundo se sentissem felizes, até mesmo seu professor na época sabia disso, quando percebeu que estava completamente séria e queria realmente contribuir para o bem-estar mundial, decidiu não tentar impedí-la e em vez disso a ajudou com seus planos.)

Planos?

A distorção no espaço continua:

(Ele apoiou seus planos de estudar em Nova York depois de completar 14 anos.)

— Hã? O que…?

(Aparentemente, ela queria ampliar sua visão da vida para tornar o mundo um lugar melhor. Ela também planejou ir para vários outros países depois de viajar para a América. Ela não sabia mesmo quando ela iria voltar. Sua professora me disse que ela de alguma forma conseguiu persuadir seus pais, mas que ela não conseguia explicar a sua irmãzinha pegajosa.)

 

“Maria, quando eu tiver 14 anos, vou deixar este lugar.”

 

— N-não... não diga tal absurdo! Aya Otonashi se matou e matou sua família em seu aniversário! Ela se vingou e ao mesmo tempo me dominou! Ir para o exterior? Ela nunca...

Fez planos tão comuns.

Eu quero pensar assim...? Sim... Realmente pareço estar inclinado em deifica-la...

Por quê? Eu... eu não sei. Também não sei por que estou tão agitada.

(Ela sempre se esforçou para ajudar sinceramente as pessoas do mundo. Ela era uma menina inteligente e ativa e testava maneiras de alcançar seu objetivo. Mas no final do dia, ela era apenas uma menina de 13 anos de idade, o seu campo de experiência era limitado à escola e sua ética ainda estava subdesenvolvida, mas ela estava consciente de suas fraquezas e decidiu ampliar seus horizontes aventurando-se em um novo ambiente.)

Estou completamente confusa, mas o sedimento continua sem me deixar sequer respirar.

(Você realmente acha que uma garota tão ambiciosa mataria a si mesma e sua família por vingança? Você acha que ela iria formar esquemas imprudentes e tolos como “plantar sua alma” dentro de você?)

— Mas ela fez! Aya Otonashi foi capaz de fazer isso e muito mais!

Ela é um ser especial que uma plebeia como eu não posso entender.

— Me lembro claramente de suas profecias! Ela previu que eu seria ela! E eu me tornei! Me dediquei completamente a seu desejo. O que você está dizendo não está de acordo com isso, Kazuki!

(Me foi dito que Aya estava extremamente preocupada com a sua irmã Maria, porque, ao contrário de Aya, Maria não reconhecia a falta de amor paterno na família e continuava a tentar escapar da verdade. Aya não podia suportar ver como sua irmã se tornou indiferente e desconfiada, não conseguiu fazer nenhum amigo e não conseguiu alcançar nenhum objetivo na vida, ela não queria que você vivesse uma vida vazia, ela queria que você evoluísse, ela queria que você vivesse apaixonadamente. Como ela fez.)

 

“Maria Otonashi se tornará Aya Otonashi.”

 

— Ah...

(É por isso que ela te mostrou o seu próprio modo de vida, incluindo as partes feias e errôneas. Ela queria mostrar a todos o quão significativo era a vida sua irmã poderia viver. Isso é a verdade por trás Aya Otonashi, sentimentos por sua irmãzinha.)

 

“Vamos começar, Maria! Não podemos ter rancor contra ninguém, mas temos um inimigo sem forma que atormenta nossas mentes. Seu nome é vazio. Vamos mostrar a ele...”

“Como nos vingamos!”

 

— ...Pare com isso.

O sedimento está prestes a abalar meus próprios alicerces. Está mexendo com minhas entranhas.

— Pare com isso. Isso é apenas a sua crença sobre ela! Não destrua a minha!

(Tenho certeza que você não vai acreditar em mim e vai afirmar que Aya é especial ou algum tipo de prodígio, mas em algum lugar em sua mente, você também deve encontrar memórias dela como uma criança comum. Ela pode não ter agido de acordo com a idade, mas ela ainda era apenas uma menina de 13 anos.)

— Não me lembro de nada do tipo! Aya-oneechan sempre foi especial e...

 

— Ah... uh... uuh...

A cena muda. Isto é mais ou menos apenas um devaneio de qualquer maneira, então não há nada que devesse me surpreender. No entanto, o novo cenário me deixa abalada.

É onde costumávamos morar, ou mais precisamente, o quarto de Aya-oneechan. Sinto o cheiro uma mistura de vários perfumes e óleos.

Aya-oneechan e eu estamos presentes. Nós duas temos 10 anos ou mais. Aya-oneechan está deitada em sua cama, enquanto minha mãe de 10 anos está lhe dando um olhar preocupado.

— O que há de errado, Onee-chan? — Perguntou minha eu mais nova, enquanto sacode o corpo sem reação de sua irmã. No entanto, Aya permanece imóvel e absolutamente se recusa a mostrar seu rosto. Depois de algum tempo, ela abre a boca.

— Eu perdi…

— Hã?

— O exame nacional, você também teve que fazê-lo em sua escola, certo? Eu perdi para alguém na minha classe, mesmo que eu nunca tenha perdido até agora...

— Eh? Isso é tudo? Coisas assim acontecem. Não há motivo para ficar deprimida, não é?

— Você não sabe nada, Maria. — Ela responde com uma voz profunda e irritada que me silencia. — Você não entende a gravidade disto. A gravidade da minha perda! Não devo perder para ninguém. Devo provar ser mais digna do que qualquer outra pessoa. Todo mundo tem que precisar de mim, ou...

“Você não devia ter nascido.”

— Ou não posso me vingar da Rinko-san.

Ela pressiona firmemente seu rosto contra seu travesseiro e grita:

— Ou eu não posso ter orgulho de ter nascido...!

— Aya-oneechan... — Enquanto assisto esta cena, seu nome escapa dos meus lábios.

Naqueles dias, eu não tinha ideia do que estava acontecendo. Não tinha ideia do que fez Aya-oneechan sofrer. Mas agora entendo.

Aya Otonashi estava lutando uma batalha.

Ela estava lutando contra o fato de que ela nasceu desnecessariamente. Aya Otonashi, que parecia uma “criança lamentável” para a maioria, era — quem diria — realmente apenas uma “criança lamentável”. Ela não podia escapar do fato de que nem Rinko-san nem seus novos pais precisavam dela e, portanto, tentou demonstrar seu valor tornando-se alguém especial. Muitas vezes ela iria além de seus limites e era francamente imprudente, mas conteve suas lágrimas e continuou lutando enquanto se preparava. A única coisa que fez Aya-oneechan se sentir viva foi o louvor. Ela trabalhou mais do que qualquer outra pessoa e continuou a avançar sem uma única palavra de queixa. Tenho grande respeito por Aya-oneechan por crescer forte assim.

Mas, ao mesmo tempo, havia uma inegável fraqueza e fragilidade escondidas sob sua máscara de autoconfiança.

 

(Aya Otonashi era apenas um ser humano.)

 

— Não... — Balanço a cabeça negando.

Sei que estou me comportando de forma infantil, mas simplesmente não posso admitir isso.

— Aya-oneechan era especial. Ela era um monstro. Planejou sua morte. Tem que ser! Caso contrário, isso significaria que ela foi morta sem nenhum propósito por essa obsessão! Não quero isso. Eu não quero que sua morte seja sem sentido. Aya-oneechan assumiu meu corpo. Ela pôde fazer isso porque ela era um monstro. Não podemos deixá-la assim? Se não...

 

— Aya-oneechan morrerá de uma vez por todas.

 

Antes que eu saiba, estou de volta à cena do acidente — mas algo está um pouco diferente.

Aya-oneechan não está rastejando acima do penhasco como antes. Ela está presa no carro. Ela está batendo freneticamente contra a janela da frente em uma tentativa de abri-la. As portas do carro foram danificadas pelo acidente e não abrem. Desde que ela sofreu uma lesão fatal, não há poder em seus punhos e eles mal fazem um som quando eles vibram contra o vidro.

— Eu não quero morrer... me salve... Eu não quero acabar assim. — Ela lamenta em uma voz fraca. — Dói... dói! Eu não quero morrer... Maria! Eu ainda não... quero morrer...!

Não é necessário dizer que ela não está sorrindo.

Meu eu mais novo está segurando um buquê de flores enquanto olha para o penhasco, incapaz de ver a súplica de sua irmã. Quero dizer... eu não estava realmente lá quando aconteceu. Só fui ao local no dia seguinte.

Meu eu mais novo joga o buquê no penhasco e sussurra com os olhos vagos:

— Não aceito isso.

— Não aceito a morte de Aya-oneechan.

“Aya-oneechan é um ser superior e não pode morrer”. “Ninguém pode matá-la”. “Ela me capturou”. “Eu não quero ficar sozinha”. “Se me tornar Aya-oneechan não vou ficar sozinha”. “Não estou sozinha”.

Me lembro o que meus parentes, que só pensavam em mim como um incômodo, disseram.

Se Aya-oneechan se foi...

Ninguém precisará de mim.

Definitivamente não posso suportar isso. Quero que ela precise de mim, mesmo que seja apenas um fantasma. Vou assumir seu testamento. Vou dizer que ela me tomou. Aya-oneechan precisava de meu corpo, portanto eu devia viver para seu objetivo de fazer todos felizes. Caso contrário, isso significa que ela realmente não precisava de mim.

Eu não estou sozinha.

Aya-oneechan vive dentro de mim.

No entanto, o sedimento — Kazuki — me confronta com a verdade.

(O desejo de Maria Otonashi e de sua irmã nunca foi fazer com que todos no mundo estivessem felizes.)

Certo.

Nosso verdadeiro ‘desejo’ é...

Já que nossos pais não nos amaram e ignoraram, nosso verdadeiro ‘desejo’ é —

 

(Você quer ser necessária para alguém.)

— Nós queremos ser necessárias para alguém.

 

Minhas lágrimas não param. O que devo fazer? Tenho que matar Aya-oneechan, mas se eu o fizer, estarei sozinha. Ninguém precisará de mim. Se abandonar minha caixa, vou perder a esperança e a minha vontade de viver. Alguém me ajude! Alguém me salve! Quem vai me salvar? Ninguém. Por que alguém existiria por minha causa? Por que eu teria tanta sorte de ter meu próprio cavalei—“

— Não posso acreditar.

— Há sim. Há alguém se dedicou a mim!

Certo.

Eu tenho um salvador.

Tenho tanta sorte de ter um salvador só para mim.

 

“Eu preciso de você, Maria!”

 

Kazuki Hoshino.

 

Kazuki disse a coisa que eu mais queria ouvir.

Na verdade, o que ele disse é a verdade inegável: se eu não for até ele, ele continuará a bater na parede, incapaz de escapar dos laços.

Eu sou a única que pode salvar Kazuki.

Kazuki é o único que pode me salvar.

 

Kazuki precisa desesperadamente de mim.

Eu preciso desesperadamente de Kazuki.

Enxugo minhas lágrimas.

Tivemos que fazer um desvio enorme para chegar aqui, não foi?

Deveria ter sido honesta comigo mesma e admitido que não queria deixá-lo.

Isso é tudo.

Isso é tudo que é necessário para —

— Que meu ‘desejo’ de se torne realidade.

Agora posso destruir sem arrependimentos a “Flawed Bliss”.

Afinal, acabei de obter o que importa.

 

Para cumprir o meu verdadeiro desejo, tenho que esmagar o falso. Tenho que matar o monstro que eu fiz Aya-oneechan virar com minhas próprias mãos.

Ando até Aya-oneechan, que ainda está lutando para escapar do carro e sobreviver. Ela não vai sobreviver. Não importa o quão cuidadosa ela seja e não importa o quão promissor seria o seu futuro, ela não vai sobreviver. Ela vai morrer uma morte horrível e sem sentido.

— Aya-oneechan.

Como não consigo interagir com o passado, minha voz não chega até ela.

No entanto, ela para de bater na janela do carro. Fecha os olhos e se afunda em seu assento. Ela decidiu aceitar seu destino.

— Sinto muito por te trancar em um lugar tão terrível por tanto tempo. Desculpe por ter te entendido mal todo esse tempo. Usei você como um pretexto para evitar enfrentar a realidade... mas isso é suficiente. Vou te libertar agora.

Tiro uma garrafa pequena do meu bolso.

— Aqui está seu presente de aniversário!

Reguei o óleo perfumado que eu queria dar a ela naquele dia no chão. Uma fragrância de hortelã-pimenta começa a se espalhar.

Finalmente, meu tempo pode avançar novamente.

Aya-oneechan não pode ter notado o cheiro de hortelã-pimenta, mas um sorriso fraco aparece em seu rosto enquanto seus olhos permanecem fechados.

Duvido que ela estivesse contente com a vida dela. Ela deve ter tido muitos arrependimentos. Deve ter morrido cheia de ódio e remorso.

Contudo...

Esta é apenas a minha opinião pessoal, mas acho que ela também estava um pouco feliz por ter mantido seus planos de estudar no exterior escondidos de mim. Já que, graças a isso...

Ela podia salvar a irmãzinha.

— Maria... te desejo tudo de bom...

Com essas palavras, ela cai no sono eterno.

— Adeus, Onee-chan.

Meu inimigo por tanto tempo, ‘O’, desaparece silenciosamente no ar.

O monstro dentro de mim não existe mais.

 

Mergulho novamente no mar. Continuo a seguir o choro enquanto vou mais fundo na escuridão. Não tenho mais medo, mesmo que eu não possa ver o que está à minha frente. Quanto mais fundo eu for, mais minha memória retornará.

Ah... são todas as memórias que não quero lembrar, mas não vou mais fugir delas. Continuo seguindo para encarar meu passado.

Quando comecei a chorar aqui? Provavelmente desde o início. Desde o momento em que obtive minha caixa, eu devia estar chorando por causa da minha solidão.

Meu eu original e fraco estava no caminho do meu plano para me tornar Aya Otonashi. É por isso que eu a afundei nas profundezas do mar. No entanto, até que eu recuperar a minha outra metade, não serei capaz de destruir a “Flawed Bliss”.

Vou tateando no escuro até o meu eu chorando. O choro está bem ao meu lado, mas não consigo ver ninguém. "Maria," eu chamo e esticar minha mão. Sinto alguém com a ponta dos meus dedos.

— É você, Maria?

Agarro seu pulso e a puxo para mim.

Esferas de luz nos cercam e iluminam a escuridão. A garota chorona parece meu antigo eu de 13 anos.

— Você é a Zerésima Maria?

Ela é o passado que deixei para trás: meu antigo eu. Meu eu fraco. Meu eu desconfiado. A Zerésima Maria levanta a cabeça e me dá um olhar desconfiado.

(Você pode me ver agora?)

Suas palavras me tomam de surpresa. Mas ela tem razão... todo esse tempo, devo ter sido incapaz de vê-la.

— Sim! Eu posso ver você.

(Você estará comigo de agora em diante?)

— Estarei com você para sempre. — Digo enquanto pego sua mão. — Não vou mais fugir de você. Não vou mais fugir do meu passado.

Olho em seus olhos e lhe dou um sorriso gentil.

— Por favor volte para mim.

A Zerésima Maria, no entanto, parece hesitante. Por uma boa razão: afinal, fui eu que a atormentei.

(...Você tem me prometer várias coisas.)

— O que você quer que eu prometa?

(Chorar quando você estiver triste, rir quando estiver feliz, ficar zangado quando não gostar de algo, depender de alguém quando está deprimido. Cuidar de si mesmo antes de cuidar dos outros. Não odeie ninguém. Tenha orgulho de si mesma.)

Estas são coisas que costumavam ser impossível para mim, mas no momento em que ela menciona a última promessa, me sinto estranhamente confiante de que não terei problemas em mantê-las:

(Seja leal quando se apaixonar.)

— Sim, eu prometo. Você pode confiar em mim.

(Sério?)

Eu concordo. Estou absolutamente confiante de que posso manter a palavra.

(Ótimo! Vou voltar então!)

A Zerésima Maria para de chorar e ri.

Ela começa a se fundir com meu corpo.

— Ugh, ah...

Aprender sobre e aceitar a verdade não a torna menos desagradável. Uma sensação nauseabunda percorre meu corpo que parece que meu sangue está fluindo do jeito errado. Não sou mais forte. Nem posso fingir ser. A metade mais fraca que recuperei é impotente e não tem nada.

Meu passado completo flui de volta para mim e me carrega com tristes lembranças. Mesmo agora que deixei de fugir, ainda não consigo aproveitar o mundo. Perdi a conta de quantas vezes ele me fez sofrer. Não parece haver um único grão de gentileza no mundo.

A realidade é dura, sem recompensa, má, caprichosa, injusta, assustadora —

Mas…

Eu não estou mais sozinha.

— Certo, Kazuki?

 

É por isso que posso voltar a ser Maria Otonashi.

 

✵✵✵

Saio do fundo do mar e acordo em meu antigo apartamento.

‘O’ não está mais aqui. Em vez disso, estou segurando um belo, mas frágil e transparente cubo em minhas mãos.

E eu não estou sozinha.

— Ah...

Sua presença me faz despedaçar. Choro com alívio. Não quero admitir, mas este é o meu verdadeiro eu.

— Ah... Kazuki.

Kazuki está deitado no chão. Eu o abraço, mas ele não reage. Ele apenas olha para o espaço com um olhar vago.

Ao longo de um número excruciante de loops, Kazuki perdeu tudo. A solidão absoluta tirou dele espírito e memória e o transformou em uma concha sem vida. Até sua alma foi transformada por minha caixa horrível. Duvido que ele volte a ser o mesmo.

A realidade é tão dura quanto sempre. A vida me impõe novas provações.

No entanto, não vou confiar mais em ‘caixas’.

Eu tento formar o melhor sorriso que posso enquanto choro, e começo a falar com Kazuki.

— Ei Kazuki... você se lembra de uma vez quando perdi a determinação na “Rejecting Classroom”? Você me estendeu a mão e disse: “Eu vim ao seu encontro, milady Maria”. E então você disse que veio para me salvar mesmo que isso significasse a traição de todos os outros e sua eterna inimizade. Suas ações foram consistentes desde então. Você sempre tentou me salvar, enquanto eu estava presa no fundo do oceano e fingia ser forte. E manteve sua palavra. Realmente mergulhou nas profundezas do oceano sem fim para me salvar. Realmente traiu todos os outros buscando por mim, não poupou esforços para fazê-lo.

Coloco a caixa transparente no chão e gentilmente enrolo minhas mãos em torno de Kazuki. Seus dedos contraem ligeiramente, mas isso é provavelmente apenas um reflexo.

— Por favor me perdoe. Só há uma coisa que posso fazer para pagar essa dívida.

Toco o braço dele.

— Vou ficar ao seu lado pelo resto da minha vida.

Kazuki não mostra nenhuma reação.

— Desta vez não vou desistir. Vou continuar esperando você voltar. Bem, não é nada em comparação com quanto tempo você teve que esperar por mim, certo? Mas... isso não é verdade. Não se trata de esperar ou não esperar. O destino nos tornou inseparáveis. Ficarei para sempre ao seu lado, é a única opção que existe.

Eu sorrio para ele.

— Porque esse é o nosso cotidiano.

Uma lágrima cai em sua palma. Não posso negar: dói que ele esteja olhando para o vazio e não para mim.

— Tudo vai ficar bem, certo? Você disse que não há desespero que não possa ser superado pelo cotidiano, certo? — Digo numa voz trêmula. — Eu acredito em você. Afinal, você derrotou Aya Otonashi.

Kazuki vai voltar.

Mas para ser honesta, o caminho de volta parece tão interminável e difícil que estou prestes a entrar em desespero.

 

— Você me reconhece?

— Você me entende?

— Você me vê?

— Você me sente?

— Você se lembra de mim?

 

Nenhuma das minhas perguntas recebe resposta.

Tenho que admitir que estou quase perdendo a esperança, mas ainda tento manter um sorriso. Há esperança.

— Não se preocupe. Se você me esquecer, vou continuar chamando seu nome para que você possa me redescobrir, assim como você continuou chamando o meu.

— Kazuki. — Eu digo.

— Kazuki. — Eu digo com uma voz chorosa.

— Kazuki. — Eu digo com ternura.

— Kazuki. — Eu digo alegremente.

— Kazuki.

— Kazuki.

— Kazuki.

Continuo a chamar seu nome. Antes que eu saiba, o sol se pôs. Durante esse tempo, Kazuki não fica apenas sentado. Ele se levanta e caminha ao redor, e até mesmo sem palavras toca meu rosto e meu corpo. No entanto, não havia pensamento por trás de seus movimentos. Estranhamente, porém, nem uma vez ele bateu contra a parede.

— Kazuki.

Devo ter chamado seu nome milhares de vezes hoje, mas não me importo com nada. Apenas dizer seu nome me faz feliz.

De repente, ele se agacha. Aparentemente, ele notou a caixa transparente. Ele a pega e olha fixamente para ela, sem se mover nem uma polegada.

— Kazuki...? O que está errado?

Kazuki aperta a “Flawed Bliss” com a mão direita ferida que ainda tem o poder de esmagar caixas — o poder da “Empty Box”.

Frágil como a caixa transparente é, ela explode sem qualquer resistência.

A “Flawed Bliss” é destruída de uma vez por todas, e com ela, a “Empty Box” de Kazuki também perde seu poder.

Está tudo acabado. Tenho certeza que nossas vidas nunca mais se envolverão com caixas de novo. Kazuki realizou sua vontade até o fim e extinguiu seu inimigo.

Kazuki venceu contra as caixas.

 

Ele olha para mim. Não há vontade em seus olhos e eles não me veem. Tenho certeza que ele nem se conhece. No entanto, Kazuki não afasta seus olhos de mim. Não sei por que, mas acho que sei o que ele está prestes a dizer. Ele está prestes a fazer um milagre.

 

— Maria.

 

Meu nome deve ter estado preso em sua boca depois de dizer isso tantas vezes.

Não devo ficar com muita esperança, digo para mim mesma. Não devo pedir uma felicidade maior do que esta.

No entanto, meu coração não obedece. Estou tão feliz que tenho que soluçar.

Como você poderia me culpar?

Afinal, não sou mais Aya Otonashi, a lutadora, mas Maria Otonashi, a chorona.



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