Volume 1
Capítulo 4: Tic tac
Ao observar o valor de azar de Nataniel, Ícaro paralisou enquanto processava as informações.
Um pequeno flash de memória tomou conta de sua mente: a imagem de seu pai e de como ele morreu.
O azar, de novo…
— Entendeu agora? Eu tô fodido! — gritou Nataniel, segurando Ícaro.
— Calma... se afasta! Como isso aconteceu? Você me mostrou seu vetor quando entrou e estava zerado. De que jeito ganhou tanto azar tão rápido?! — indagou, com um olhar desesperado, enquanto empurrava Nataniel e mirava em sua direção.
— Eu não sei, porra! Abaixa essa arma, eu não sou um zebrado! Eu cheguei no meu quarto normalmente, como qualquer outro dia, e apaguei na cama depois de beber umas. Quando acordei por causa do frio e fui fechar a janela, acabei vendo de relance o valor no meu braço... Daí eu surtei, né, caralho!
— Não… de novo não… — murmurou Ícaro.
— V-você não sentiu nada de diferente ou fez algo fora do comum?
— Porra, eu só fui demitido hoje, como já disse… Mas, na verdade... — falou enquanto coçava o pescoço de maneira insistente — quando acordei, eu tinha certeza de que havia fechado a janela antes de deitar. E tem uma coceira irritante na porra do meu pescoço!
— Deixa eu dar uma olhada.
Nataniel se virou e mostrou a parte de trás do pescoço, enquanto Ícaro observava à distância.
Com dificuldade, devido à má iluminação, ele quase não percebeu, mas havia definitivamente algo ali.
Curioso, se aproximou.
A princípio parecia uma mordida de mosquito, mas era diferente.
Uma pequena ferida em formato circular — perfeita demais para ser algo natural.
— E aí, tá vendo alguma coisa?
— Você tomou uma vacina ou algo do gênero hoje?
— Vacina no pescoço, porra?
— … Esquece — disse Ícaro, meio envergonhado.
Nataniel se virou com um olhar prestes a desmoronar de raiva e tristeza, sem saber para onde ir ou o que fazer.
Ambos se encararam por alguns segundos em silêncio, hesitantes.
O coração de Ícaro estava acelerado, sua saliva descia rasgando.
As mãos tremiam.
Ele sabia qual era o código a ser seguido caso visse um PC.
Afinal, já estivera nessa situação antes.
— Então, e agora… Você vai me matar?! — gritou Nataniel.
— Eu… eu tô pensando. Fica parado aí!
“Eu não posso simplesmente matar ele por conta de seu valor de azar. Eu sei que ele não acumulou porque é um terrorista. Tem algo muito estranho acontecendo aqui, mas eu não sei como proceder. Eu não tenho ninguém de confiança para contar, e tenho certeza de que a PAZ iria apenas matá-lo sem dar ouvidos. Porra, como isso aconteceu?!”
Diversos cenários cruzavam a mente de Ícaro, buscando uma solução onde o mínimo de pessoas fosse envolvido.
As batidas de seu coração se tornavam cada vez mais audíveis, o suor escorria de suas mãos, o olhar fixo no braço de Nataniel.
Contudo, antes que qualquer um dos dois tomasse uma iniciativa, um estrondo ocorreu atrás deles.
POW!
— O que foi isso?! — gritou Nataniel.
— Fica aí, eu vou verificar — respondeu, espantado.
Ícaro começou a andar rapidamente até o corredor, de onde veio o som, com a arma empunhada e os olhos afiados.
— Lúcia, é você? Que barulho foi esse? — chamou, enquanto se aproximava, atento a qualquer movimento.
Ao chegar mais perto, começou a ouvir um som estranho.
Tic, tac, tic, tac…
“Um relógio antigo? Faz anos que não escuto um desses. Tenho certeza de que não há nenhum no prédio, então que som é esse? E por que agora?!”
Ao chegar no final do corredor, Ícaro se deparou novamente com aquela visão aterradora da destruição — agora ainda mais melancólica por saber do motivo da mesma.
Porém, agora havia mais algo destruído — a porta, que fora arrombada.
Mas a pessoa que ali estava não era Lúcia, nem sequer alguém que residia no prédio.
Era um homem velho, vestindo um colete de couro marrom, um sobretudo cinza por cima e uma boina desgastada.
No rosto, um monóculo dourado com correntes presas à orelha esquerda.
E ao redor do pescoço, um estetoscópio.
— O-olá… quem seria o senhor? — questionou Ícaro, desviando levemente a arma do caminho do homem.
… Tic, tac, tic, tac.
O ressoar do relógio continuava, agora mais alto.
O homem ergueu um relógio de bolso preso à corrente do monóculo; o tic-tac, antes fantasma no corredor, agora vibrava metálico na palma.
— Os seus batimentos estão bem acelerados. Isso não faz bem para o coração... — disse o senhor, aproximando-se lentamente e observando os arredores.
— Meus batimentos? Como o senh—
— Shhh… — interrompeu-o. — Sejamos breves. Eu sei que há um PC nessa residência. Onde ele está?
Naquele instante, o coração de Ícaro quase parou. Seria aquele homem um policial da PAZ? Como sabe sobre Nataniel? Estaria armado? Esses e muitos outros pensamentos cruzaram sua mente em uma fração de segundo, enquanto tentava pronunciar alguma coisa.
— Q-quem seria o senhor? Apenas moradores têm permissão para entrar no prédio. Creio que terei que convidá-lo a se retirar!
— Você já fez o suficiente, garoto. Agora deixe o resto do serviço para os mais experientes. — respondeu, mostrando um crachá da PAZ.
Era um tipo de crachá que nem mesmo Ícaro já havia visto: inteiramente preto.
[Agente Especial | Nº XXXXX-XX
Investigador Sênior Constantinno Levander, 56
PAZ – Polícia de Ação ao Azar]
“Agente especial? Eu nunca ouvi falar sobre isso… Mas, deixando isso de lado, por que tem um agente da PAZ aqui?!”
Ícaro tentava formular uma desculpa, mas a voz que ecoou a seguir quebrou seu espírito.
— Eu chamei a PAZ! — disse Lúcia, encostada à porta com o celular em mãos. — Eu ouvi tudo que vocês falaram. O Nataniel é um zebrado, não é?! Ele tem que ser preso para nossa segurança!
— É o que a garota diz. Agora, se me permite… — disse o senhor, deslocando-se para o corredor e retirando uma Magnum de dentro do colete, arma já considerada uma raridade.
— Não, espera! — gritou Ícaro, colocando-se à frente do homem.
O senhor ergueu uma sobrancelha.
— Nós podemos conversar primeiro? Eu posso explicar o que aconteceu!
— Eu sei exatamente o que aconteceu, jovem. Você foi incompetente e deixou um de seus inquilinos ameaçar a segurança de todos neste prédio. Após prender o criminoso, vou denunciar sua falta de habilidade ao seu superior.
— N-não, por favor! Me deixe explicar!
Ícaro ficou entre o detetive e o quarto de Nataniel, impedindo sua passagem, enquanto o agente tentava empurrá-lo.
Nesse momento, as luzes do quarto começaram a piscar de repente, e a brisa da madrugada entrou, arrepiando seus corpos.
Então, num instante de desatenção, Nataniel surgiu em alta velocidade. Num giro, a mão de Nataniel pescou o coldre por trás da camisa.
Antes que Ícaro pudesse se virar, sua arma foi roubada da cintura — e ele virou refém.
— N-Nataniel?! O que você tá fazendo?! — gritou Ícaro, trêmulo. — A gente pode resolver isso sem violência, tenta se acalmar!
— Cala a boca! Eu sei bem o que vai acontecer comigo caso a PAZ me leve, todos sabem! Eu não vou morrer aqui. Sai da minha frente, velhote, senão eu estouro os miolos dele!
Os olhos de Nataniel estavam cheios de desespero. O metal frio da pistola encostava na têmpora de Ícaro. Bastava um dedo se mover…
Lúcia gritava, mas Ícaro não entendia mais as palavras. Ele paralisou. O tempo parou.
Apenas um som ecoava em sua mente, sem entender o motivo.
Tic, tac, tic, tac…
Mas, um estrondo o despertou.
BANG!
À sua frente estava o senhor misterioso, empunhando uma pistola grosseira. Do cano, a fumaça se esvaía…
Ao olhar para baixo, sangue. Mas não era seu.
Nataniel estava caído, convulsionando lentamente enquanto a vida se esvaía.
Piiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii…
O zunido preenchia sua mente. Ícaro não escutava mais nada, apenas o eco do disparo.
Ao longe, via Lúcia cair de joelhos, cobrindo a boca.
O homem se aproximava do corpo, pegando a arma caída. Disse algo, mas Ícaro não entendeu. Só via o vermelho no chão.
Então, com o zunido diminuindo, ouviu as palavras frias:
— Você consegue me ouvir? — perguntou o senhor, estalando os dedos perto do ouvido de Ícaro. — Acorde, garoto!
— A-ah, sim… — respondeu, pondo a mão na cabeça.
Foi quando percebeu que o homem segurava seu braço.
— Me mostre seu vetor.
— O quê?!
— Aquele sujeito acumulou 15 pontos de azar, segundo a moradora. E você sabe: quando alguém morre antes de gastar sua sorte ou azar, ele é transferido às pessoas próximas. Eu não pretendia matá-lo aqui, mas foi necessário para manter a segurança. Preciso garantir que nenhum morador tenha chego a 10 pontos de azar devido a redistribuição.
— C-claro, pode ver… — disse, ainda atordoado.
Ícaro levantou a manga da camisa, revelando o braço.
Ao vê-lo, engoliu seco.
Valor: -9.
Constantinno o encarou com olhos frios, pronto para outro abate, mas largou seu braço.
Ícaro suspirou.
O Homem levantou a própria manga e observou seu braço, em silêncio.
— Parece que você está com um pouco de sorte hoje, apesar do que ocorreu. — disse, caminhando até Lúcia.
— O-o que quer comigo?! Vá embora, você já matou o zebrado! — gritou ela, olhando os seus braços duas vezes e escondendo-os atrás do corpo
“Não… não me diga que!”
Nessa hora um flash de memória passou rapidamente pela cabeça de Ícaro.
Na entrada mais cedo, Lúcia mostrara seu vetor: -5. Ela havia dito que era por conta de uma semana de testes para uma revista de moda, e que iria gastá-lo depois do término de suas entrevistas.
Constantinno agarrou seu braço.
— Vamos, me mostre logo.
— Não, para!!
Valor: -10.
— Isso não… senhor detetive, por fav—
Sem deixar terminar, Constantinno algemou Lúcia.
— Você vem comigo.
— Isso não foi minha culpa! Você não pode fazer isso comigo, fui eu quem lhe chamei! Eu sei os meus direitos!! — gritava, se debatendo.
Enquanto isso, moradores se aproximavam após ouvirem o disparo. Vozes em baixo tom enchiam o corredor, até que uma figura avançou: um homem mais velho, cabelos loiros longos, manchas na pele. O síndico.
— O que significa isso?! Por que o senhor está carregando uma das minhas inquilinas? Eu vou chamar a polícia!
— Então você é o responsável desta imundície. Assim que eu levar esta jovem à cela, mandarei soldados para interrogar todos e interditar o quarto. Não deixe ninguém entrar ou sair. Este lugar agora é uma cena de terrorismo de azar.
As pessoas observavam, sem reagir, enquanto Lúcia era levada aos gritos. Ícaro apenas aguentava os olhares de ódio.
Entre eles, o senhor Arlindo e sua esposa, desapontados.
O tic tac do relógio ia embora…
— Ícaro!! — gritou o síndico, enfurecido. — Me diga exatamente o que aconteceu aqui! Por que está parado sem fazer porra nenhuma?! Eu te pago para quê, seu incompetente?!
As próximas horas daquele dia pareceram mais lentas do que o normal…
De pé diante do síndico, as palavras que saíam de sua boca pareciam mais uma confissão do que uma explicação. Ele relatava cada detalhe do que havia acontecido, mas, a cada frase, era interrompido por broncas, olhares de reprovação e silêncios pesados que só aumentavam a pressão em seu peito.
Quando veio a sentença de sua demissão, não houve surpresa. Apenas um vazio. Um golpe seco que não sangrava, mas que corroía por dentro. Ele respirou fundo, recolheu uma caixa de papelão e começou a guardar seus pertences — seus quadrinhos que lia para passar o tempo, um pequeno porta-retratos dele com Rafael e um ventilador velho para os dias mais quentes.
Os investigadores da PAZ não demoraram a aparecer. Um deles abriu um caderno, outro ligou um gravador. Ícaro respondeu a cada pergunta com voz firme em um dos cômodos, o mesmo no qual todos os moradores presentes também repetiram o processo.
Nas doze horas que se seguiram, ninguém pôde sair da residência. Não até que a cena do crime fosse totalmente analisada e limpa pelos abutres da PAZ. Constantinno sequer apareceu novamente no prédio, muito menos Lúcia…
Após, enfim, satisfeitos, os agentes foram embora e liberaram novamente a saída dos civis. Apesar de ainda desconfiarem de Ícaro, o liberaram por falta de provas.
Liberdade…
Ícaro, já com todas as memórias frescas dentro da pequena caixa de papelão em suas mãos, resolveu partir. Rafael já devia estar preocupado, afinal…
Porém, ele não poderia ir embora. Não sem fazer uma última coisa.
Aproveitando-se da comoção dos moradores enquanto saíam aos montes do prédio, sorrateiramente se esgueirou até o quarto 223, onde toda a desgraça havia ocorrido.
Ícaro sabia que havia algo de errado, desconfiança que só aumentou diante da falta de indagações por parte dos investigadores da PAZ. Pareciam querer esconder algo, desviando do assunto sempre que eram questionados sobre a marca no pescoço de Nataniel.
Ao se deparar com a porta ainda quebrada pelo arrombamento, congelou por alguns instantes. As memórias voltaram como marteladas em sua cabeça: o som do disparo, a cor do sangue…
Mas, suspirando, encontrou coragem para adentrar.
Incrivelmente, o local estava impecável. Os móveis haviam sido retirados para análise, segundo os agentes, e o chão sujo de sangue fora limpo de forma magistral. Só restaram as lâmpadas e as janelas…
Ícaro caminhou até o quarto de Nataniel, que também se encontrava vazio. Nada restava naquele lugar, apenas as memórias.
Porém, quando já estava pronto para partir, um de seus quadrinhos acabou sendo derrubado por uma forte onda de vento, vinda da janela aberta.
“Parando para pensar, tudo começou aqui… Nataniel estava incomodado, dizendo ter fechado a janela antes de deitar. Mas ele mesmo disse que bebeu, então…”
Como um gesto de luto, ou talvez só de pena, Ícaro se aproximou para fazer seu último ato: fechar a janela, encerrando aquele período de sua vida.
Mas percebeu algo quando se aproximou. A tranca da janela estava quebrada.
“O quê? Não lembro do Nataniel ter mencionado isso. Será que ele quebrou a janela naquele surto de raiva?”
Curioso, esticou o pescoço para fora, buscando alguma coisa. E, para sua surpresa, encontrou. Algo que nem mesmo a perícia havia visto, aparentemente. Grudado na parte de trás da janela, quase colado à parede, havia uma espécie de papel preto, pequeno e retangular.
Com certo esforço, deixando suas coisas no chão por alguns instantes, conseguiu se esticar e alcançar o objeto. Agora, vendo melhor, parecia uma espécie de panfleto ou carta. Na frente, havia apenas um símbolo branco que se destacava no preto da folha — um punho cerrado com um zero no antebraço.
Sem hesitar, Ícaro abriu a carta. Seu conteúdo era:
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