Volume 1
Capítulo 3: Hotel
20 de Março de 2037, Porto Alegre – Brasil
Uma neblina rasa entra pelas janelas entreabertas e cheias de buracos de um apartamento antigo e malcuidado no centro da cidade, lar de muitos em situação precária… e também de ratos esguios.
Os diversos andares da construção projetam uma penumbra sobre o que, à primeira vista, poderia ser confundido com uma cela — mas é apenas uma guarita minúscula.
Nesse espaço apertado, cercado por livros velhos esquecidos, revistas de jogos e quadrinhos, pacotes de biscoitos e o cheiro de mofo, está sentado um jovem uniformizado numa cadeira de madeira velha que rangia a cada movimento. Ele parece prestes a pegar no sono.
— Ícaro! — Alguém exclama ao longe
O jovem estabanado quase cai da pequena cadeira, fazendo-a rangir com seus movimentos bruscos e quase partindo a pobre coitada. Limpando a baba acumulada em seu rosto, ele busca a fonte do barulho. A alguns metros da guarita, um senhor de mais idade vestindo um sobretudo e de cabelos brancos está de frente para a cerca enferrujada que cercava todo o território da propriedade.
— S-Senhor Arlindo?! — Exclamou Ícaro, ainda removendo a remela dos olhos
— Perdão, filho! Acabei por me esquecer de meu molho de chaves na correria da madrugada, pode por favor fazer um favor para este velho coitado e abrir o portão, só mais dessa vez? — Diz seu Arlindo com um sorriso
— Ah, poxa… — Suspira Ícaro
Ao aproximar daquele senhor de idade já mais atento, jogava para o ar um molho grande de chaves.
— O senhor sabe que é proibido eu abrir o portão para os outros, eu carrego essas chaves apenas para minha entrada e saída e emergências.
— Haha! Ora bolas, mas é uma emergência! Esse velho não aguentaria nem mais um minuto aqui de pé com essa minha artrite remoendo minhas articulações… Faça esse favor para esse velhinho!
— Só dessa vez! — Com um sorriso disfarçado e com um dedo na boca ele sussurra — Mas, antes disso, o senhor sabe que precisa me mostrar seu vetor.
— Ah, sim, sem problemas, meu jovem.
Com uma certa lerdeza e tremores nas mãos o seu Arlindo levantou a manga de seu enorme sobretudo preto e mostrou seu antebraço com o valor — 1
— Hoje eu ajudei no parto da minha sobrinha, acredita? O apressado quis sair no meio da viagem de carro. Não pensei que minha sorte subiria nessa idade hahaha!
— É mesmo? Que incrível! Espero que tudo tenha ocorrido bem. É melhor gastar logo essa sorte hein?
— Está tudo sim, o meu netinho vai ficar bem, já estão no hospital. E quanto no que gastar, já comprei 20 raspadinhas da sorte, é hoje que fico rico!
— Boa sorte, hahaha!
Ícaro abre o portão e Arlindo caminha lentamente até a entrada do prédio, acenando.
Mas, enquanto fechava o cadeado, Ícaro percebe mais alguém se aproximando: Nataniel. Um homem barrigudo, de cabelos ruivos, com quem Ícaro já havia trocado algumas conversas — e também ouvido alguns boatos nada elogiosos. Segundo a vizinhança, ele teria roubado roupas íntimas das colegas do mercado onde trabalhava… embora não houvesse provas.
— Chegando mais cedo hoje, Nataniel?
— É… Fui demitido do trabalho. — Responde com um olhar triste em seu rosto
— O que? Fala sério…
— Na verdade, eu me demiti. Eles ficavam me acusando o tempo inteiro de roubar as calcinhas e sutiãs das outras mulheres do mercado, mas eu juro que nunca fiz isso! Eu não era o único homem lá, porra!
— É… Eu imagino que deveria estar um clima ruim para se trabalhar com essas acusações.
— Que se foda! Eu não preciso daquele trabalho. Eu sou formado em engenharia sabia? Vou voltar a procurar a trabalho amanhã e jogar na cara deles. Bando de idiotas.
— Boa sorte para você então! — Respondeu meio sem jeito, enquanto Nataniel já partia para dentro do prédio.
— Espera um pouco, só mostre a sorte antes de entrar. Sabe como é…
— Ah, que encheção de saco. Olha! — Disse enquanto levantava agressivamente sua manga e mostrava seu antebraço com o valor — 0
— Tudo bem, pode entrar.
Nataniel se virou resmungando e entrou, batendo a porta com força.
“Não pensei que ele iria se demitir, os boatos realmente estavam circulando muito rápido, mas ainda assim não há provas… Não sei realmente no que devo acreditar..."
Enfim, Ícaro fechou o portão e retornou para sua pequena estação de trabalho, apertada e com péssima ventilação. Porém, esse foi o único trabalho que ele conseguiu com seu currículo e com as más indicações da PAZ após sua demissão. Apesar de não ganhar muito, pelo menos era um emprego digno e ele já havia se acostumado com os moradores, apesar de alguns serem meio inconvenientes as vezes.
O tempo se passava e as coisas iam como de costume, Ícaro caia no sono algumas vezes nos momentos de paz, e quando havia alguém entrando ou saindo ele acordava e acenava, fazendo seu trabalho de forma perfeita como segurança!
O tempo passa como de costume. Ele cochila nos períodos de silêncio e acorda sempre que alguém entra ou sai. À noite, chegava a parte que ele mais gostava: as rondas. O chefe recomendava duas ou três rondas de 15 minutos, mas Ícaro praticamente passava a noite toda andando com sua lanterna. No início, levou broncas pelo feixe de luz nas janelas, mas acabou se acostumando a andar no escuro, deixando que seus olhos se adaptassem.
Tudo estava tranquilo… até que, durante um descanso, ele ouviu passos se aproximando. Apontou a lanterna e levou um susto: alguém com o rosto verde! Logo percebeu que era apenas Lúcia, uma inquilina com máscara facial.
Lúcia é uma mulher que aparenta ter uns 30 e poucos anos, tem cabelo loiro longo e é extremamente preocupada com a aparência, possuindo várias plásticas e sempre comprando roupas caras. Ela aparece bufando.
— Ei, seu guarda, tem um dos moradores fazendo barulho sem parar! Sabe que horas são? Isso vai acabar com minha pele! Vá lá em cima e dê um jeito nisso, é pra isso que você é pago não?
— Ah, boa noite para você também Lúcia. Sinto muito pela perturbação, eu não havia escutado nada. Vou lá verificar pra você!
— Humpf! É melhor dar um jeito nele…
Após o momento de euforia de ambos, começaram a subir as escadas cheias de mofo do prédio. As luzes piscavam sem parar enquanto caminhavam, já que o dono demorava para contratar um eletricista decente… Enquanto subiam, Ícaro ficava atento aos sons procurando o quarto do morador em questão.
— Você sabe quem é que está fazendo barulho? — Indagou Ícaro
— Ah, eu não falei? É o do 223
— Nataniel?!
— Ele mesmo, aquele tarado!
— Não se deve acusá-lo sem provas…
— Eu não dou a mínima, se é o que o povo diz, com certeza está certo!
Eles seguiram adiante em um silêncio constrangedor, até se depararem com a porta do indivíduo. 223 estava gravado em madeira na parte de cima da porta. Com uma certa delicadeza e tentando não fazer ainda mais barulho, Ícaro bate três vezes na porta enquanto chama o nome do morador. Porém, sem resposta. Curioso, ele aproxima o ouvido da porta para tentar escutar o tal barulho relatado.
Quando encosta a orelha na madeira fria sente um pequeno choque, não só pela temperatura, mas pelo que ouviu. O ruido era pequeno e, provavelmente por conta da distância o que escutou veio apenas em partes, mas o que foi possível entender foi — Eu vou ser morto…
Rapidamente Ícaro se afasta da porta com os olhos arregalados e assustado encara Lúcia, que aparentava esperar uma resposta dele.
— Eai, vai resolver ou não? O barulho diminuiu, mas ele precisa de uma bronca! — Disse com os braços cruzados e a testa franzida.
— Sim, sim. Eu vou falar com ele, pode voltar a dormir… — Disse com um sorriso frouxo, claramente forçado.
Ícaro então pegou de seu bolço o molho de chaves, que soltava um barulho ecoante de ferro por todo o corredor, já que suas mãos estavam trêmulas. Com certa dificuldade de acertar a fechadura, ele destranca a porta, entrando no quarto e fechando-a.
Ao entrar, percebeu o motivo da reclamação de Lúcia. Parecia que um furacão havia atropelado aquele lugar. Pratos e copos de vidro estilhaçados pelo chão, roupas reviradas por todos cantos, no chão revirado um sofá e diversas revistas e papéis rasgados preenchiam aquele caótico cômodo.
A primeira coisa que Ícaro pensou foi que alguém havia invadido o local, então rapidamente sacou sua pistola que guardava no coldre em sua cintura e apontou para frente, apoiada em sua lanterna, agora ligada.
— Senhor Nataniel, está ai? Sou eu, Ícaro. — Exclamou em tom sério, mas sem resposta — Estou entrando, tudo bem?
Ícaro prosseguiu com cautela, observando todos os cantos que seus olhos conseguiam e evitando os objetos quebrados pelo caminho. Em silêncio ele foi até um dos corredores, no qual sabia que levava ao quarto de Nataniel. Ao chegar próximo de lá percebeu que a porta do mesmo estava aberta, e quando se aproximou mais um pouco começou a ouvir um som. Múrmuros.
— Nataniel? — Indagou enquanto se aproximava vagarosamente, porém a resposta que ouviu foi a mesma de antes, agora, mais clara.
Eu vou ser morto…, Eu vou ser morto…, Eu vou ser morto...
Ao adentrar no quarto, que estava no mesmo estado do restante da casa, com as roupas de cama espalhadas por todo canto e seus móveis jogados no chão, percebeu uma silhueta na cama, coberta por uma pequena manta escura, trêmula.
Ícaro se aproximou, segurando a respiração, e num movimento ligeiro ele remove a manta, jogando-a para cima, revelando Nataniel de bruços, com um olhar fixo e vazio para frente.
— Nataniel, o que houve?! — Disse enquanto botou suas mãos nos ombros dele
Quando sentiu o toque em seu corpo, enfim, Nataniel recobrou sua consciência e percebeu que Ícaro havia entrado em seu quarto.
— Ícaro? Por que você tá aqui?! — Disse com um olhar apavorado e a voz trêmula.
— Os vizinhos reclamaram de barulho, então, vim ver o que aconteceu. Seu apartamento tá uma bagunça, quem foi que fez isso?
Nataniel abaixou a cabeça e começou a chorar, engasgando um pouco e voltando a tremer, enquanto tentava comunicar-se.
— Já era pra mim, entendeu?! Acabou, eu to morto porra!
— Eu não to entendendo. Alguém está te ameaçando?
— Não… Não… Você não tá entendendo…
— Me explica então! Eu posso tentar te ajudar.
— Não tem como me ajudar com isso porra! — Gritou, empurrando Ícaro para longe de repente e fazendo-o cair da cama.
— Se acalma, eu só to aqui pra ajudar! — Exclamou enquanto se levantava.
— Então, o que você vai fazer em relação a isso?!
Ao falar isso, Nataniel levantou a manga de sua blusa, revelando o valor de seu vetor no antebraço — -15
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