Volume 1
Capítulo 2: Mentira
Os dois começam a segui-los, passando por becos repletos de lixo e destroços, usados como obstáculos pelos fugitivos, que conseguem despistá-los aos poucos.
— Atenção, central! Dois fugitivos em direção ao 10º distrito. Necessitamos de reforço! — diz o sargento pelo rádio.
Enquanto continuam correndo, em determinado momento o sargento mira sua pistola na direção dos dois e grita:
— Atenção! Nós somos da PAZ! Parem agora ou abriremos fogo! Entreguem-se e não serão feridos!
Porém, os gritos são ignorados.
A perseguição continua intensa, passando por becos cada vez mais estreitos e escuros, devido à noite. De repente, enquanto correm, o sargento é atingido por um vaso de flores que vem de cima, acertando seu ombro direito.
— Porra! Que merda foi essa?!
Ao olharem para cima, veem um homem adulto na janela segurando outro vaso, pronto para lançar.
— Vão embora, PAZ! Ninguém quer vocês aqui! — grita o homem.
— Porra... só ignora eles por enquanto, Ícaro. Depois a gente resolve. Não perde eles de vista!
— Mas seu ombro...
— Arf... Eu tô bem!
Eles continuam a corrida, mas com o ombro latejando, Lions desacelera, ficando para trás.
— Continua sem mim! Vou pegar carona numa viatura e depois te encontro.
— Sim, senhor!
Agora Ícaro continua a perseguição sozinho. Após uma longa corrida, o casal parece finalmente encurralado em um beco sem saída.
— Arf... Arf... Mãos... Mãos pra cima!
Ícaro aponta a arma na direção deles, mas suas mãos estão trêmulas.
— Vocês estão presos por suspeita de serem PCs. Rendam-se e não serão feridos!
Só então ele consegue observar melhor os dois. Um casal.
A mulher é loira, está de cabelo preso e veste um avental branco. O homem tem cabelo preto, que vai até os ombros. Também está de avental e carrega uma maleta.
Há algo estranho... Ícaro sente que já os viu antes — até se lembrar do jornal que leu mais cedo:
[Possível cura do azar? Casal de cientistas independentes afirma ter descoberto a origem da sorte no corpo humano. Seria isso uma bênção... ou destruição? Leia na página 16!]
A foto na capa era deles.
— Vocês... vocês são o casal que descobriu a origem do azar, não são?!
...
Silêncio.
— Mostrem os braços agora. Mostrem o azar de vocês!
Ambos se olham e, em silêncio, levantam as mangas. Os números aparecem: 0 e 0.
— O quê...? Zero? Mas... vocês não são PCs?!
— Não — responde a mulher.
— Então por que o Oráculo suspeitou de vocês? Foi um erro no software?
— Também não...
— Como assim? — indaga Ícaro.
— A PAZ não é o que você pensa, garoto. Você não parece ter sido corrompido ainda, então... saia logo desse lug—
BANG!
Um disparo. Um estrondo que ensurdece Ícaro por um instante.
Ao recobrar os sentidos, vê a mulher caída no chão, banhada em sangue, com um buraco no peito.
— NÃOOO! — grita o homem, jogando a maleta no chão e agarrando o corpo dela.
BANG! BANG! BANG!
Mais três tiros. Um no antebraço, outro no ombro, o último na testa. O homem cai imóvel.
Mais uma vez, o som ensurdece Ícaro.
Mas, ao olhar na direção dos disparos, fica ainda mais perplexo:
O atirador é o sargento Lions.
— Sargento?!
— Muito bem, soldado! Você encurralou eles. Eu disse que ia chegar, não disse?
— P-Por quê?! Eles não tinham azar acumulado, então... por quê?!
— Do que você tá falando? É óbvio que tinham! Ambos com mais de 10 de azar acumulado... ou tá dizendo que seu superior está enganado? — diz Lions, com um olhar frio enquanto se aproxima.
— O-o senhor... tá certo.
— Agora, bora voltar. Nosso dia acabou. A perícia limpa essa sujeira.
Antes de sair, Lions se vira e diz:
— É mesmo... eu tinha que levar isso aqui comigo. — Ele pega a maleta do chão, agora banhada em sangue.
Ícaro está perplexo, completamente paralisado.
A única coisa que consegue ouvir é seu coração acelerado... e os gritos do casal sendo executado.
A profissão que ele tanto idealizou, que julgava ser a proteção da sociedade contra os PCs, mostrava agora sua face verdadeira.
[...]
De volta à base, ele se despede do sargento, guarda sua arma e vai diretamente até a sala do comandante do quartel.
Toc! Toc! Toc!
— Entre.
A sala é simples, repleta de documentos e cartazes da PAZ. Apenas um homem está sentado no centro.
Velho, barba rala, cabelos lambidos para trás com mechas brancas e um charuto entre os dentes.
No uniforme, o nome: MAJ Nunes.
— O que deseja a essa hora, soldado? Aliás... você é o novato, não? Bem-vindo, ainda não tive tempo de cumprimentá-lo.
— Ah, sim senhor, obrigado. Mas... eu vim aqui fazer uma denúncia! Hoje, na missão, o sargento Lions cometeu um assassinato a sangue frio! Os fugitivos não era—
— Ícaro — interrompe o homem com voz grave.
— Sim, senhor?
— Essa é uma acusação muito séria. Você tem provas?
— Não, senhor...
— Hoje foi seu primeiro dia. Deve estar exausto e com os nervos à flor da pele. Vá para casa descansar.
— Eu tenho certeza do que vi, senhor!
— Será mesmo? — diz o comandante, levantando-se.
— Você tem um irmão mais novo, certo? Como era o nome... Rafael?
— Sim, mas o que isso tem a ver com—
— Ele é tão novo... mas, pelo que sei, sofre bastante na escola. Dificuldade pra fazer amigos. Coitadinho...
Seria uma pena se algo acontecesse com ele, não é mesmo?
— ... O senhor não...
— Vá para casa, Ícaro. E pense melhor no que você acha que viu.
Ele apenas acena com a cabeça e sai da sala em silêncio.
— PORRA! — grita, socando a parede com tanta força que sua mão sangra.
— Todo esse lugar já está manchado... logo aqui, onde eu achei que traria justiça! Rafa... eu não posso envolver ele nisso. Eu preciso protegê-lo. Droga, eu esqueci de buscar ele na escola!
Ícaro corre até sua moto.
[...]
Em frente a uma escola fundamental, diversos gritos ecoam.
— WAAAHH! HIC... HIC... HAAAH...!
O choro descontrolado é audível mesmo do lado de fora.
— Rafa!
Ícaro corre em direção aos sons. A escola está quase vazia.
Lá, vê Rafael, sentado num banco, se debatendo e chorando, ao lado de uma mulher que tenta consolá-lo.
— UÁÁÁÁÁÁÁ!
— Calma, Rafinha... seu irmão já vai vir, tá? — diz a mulher.
— NÃO! Ele me abandonou! O Ícaro cansou do Rafa!!
Enfim, os dois se encaram.
— Rafa!
— Mano! — exclama Rafael.
Eles correm e se abraçam fortemente, chorando.
— Eu pensei que o mano tinha abandonado o Rafa!
— Eu nunca iria te abandonar, seu bobinho... Me desculpa por demorar. Tudo vai ficar bem agora.
— Você é o responsável por ele? — pergunta a mulher.
— Sim, eu sou o irm—
— Olha a hora! A escola fechou faz horas! Você acha que a gente tem o dia todo?! Se isso se repetir, vou chamar o conselho tutelar!
— Me desculpe! Isso não vai se repetir...
— É bom mesmo.
— Vamos pra casa, Rafa.
De mãos dadas, ambos saem da escola.
[...]
Três anos depois — 18 de janeiro de 2037, Porto Alegre – Brasil
Dentro de uma casa pequena, de paredes ainda sem reboco e tomada por teias de aranha nos cantos, dois irmãos dividem uma mesa simples, onde repousam alguns pães e garrafas de leite. Ícaro e Rafael tomam café da manhã.
— E aí, mano… Como tá lá no trabalho novo? — pergunta Rafael, quebrando o silêncio.
— Ah… até que tá tranquilo. Já fiz amizade com alguns inquilinos, mas o zelador daquela região... — Ícaro faz uma breve pausa, franzindo a testa. — Ele não é muito de papo. Parece que conhecia o papai…
— Sério? E… ele falou alguma coisa?
— … Nada demais. — responde, desviando o olhar.
— Que pena… O papai era o melhor zelador que existiu!
— …
— E você, Rafa? Já fez algum amigo na escola?
— É… não. — responde meio sem jeito, mas logo abre um sorriso largo, onde falta um dos dentes. — Mas… fiz um amigo na internet!
— Que bom! — Ícaro sorri de canto. — Só toma cuidado com essas amizades online, hein.
— Eu sei, seu chato! — rebate, empurrando o irmão de leve. — Ele também gosta do Homem Corvo!
— Aí sim, hein. E qual o nome dele?
— O nome verdadeiro eu não sei… Mas no jogo ele se chama Corvo.
— Então ele gosta muito do Homem Corvo mesmo, haha!
— A gente passa horas falando das cenas de luta do quadrinho e—
De repente, uma voz feminina, mecânica e impessoal interrompe a conversa.
[Você recebeu 1 ponto de Azar diário. Está na hora da sua escolha. Deseja ACUMULAR ou GASTAR seu Azar?]
— Ah… já é meio-dia. — comenta Ícaro, olhando para o relógio. — Termina logo, Rafa, se não tu te atrasa.
— Esse negócio de Azar é um saco… — reclama Rafael, cruzando os braços.
— Fazer o quê… — Ícaro dá de ombros. — Não esquece de marcar sua escolha no aplicativo.
— Eu sei, eu sei…
Ambos suspiram… e em uníssono respondem:
— Gastar.
[Você escolheu GASTAR o Azar. Pontos acumulados: 1 dia.]
— Tá feito… do jeito que o papai ensinou. — murmura Ícaro, mais sério.
— É… — Rafael abaixa o olhar, concordando.
Os dois puxam seus celulares do bolso. Na tela, o aplicativo “Daily Lucky” se abre. Um cronômetro de dez minutos já está rolando, e logo abaixo aparecem as opções: [Guardou] e [Gastou].
Ícaro toca em Gastou. Uma nova tela surge, mostrando seu histórico semanal, notificações do sistema, alertas de possíveis PCs próximos e outros dados.
— Bora, Rafa. Tá na hora de ir.
— Tá bom…
Eles terminam de comer em silêncio, acostumados com aquele ritual… um ritual que todos no mundo seguem.
[...]
Enquanto isso… em algum lugar onde nem o sol ousa alcançar…
Um ambiente tomado pela escuridão, iluminado apenas por pequenas luzes fracas nas paredes. No centro, um palco elevado. Ao redor dele, fileiras de cadeiras ocupadas por dezenas de pessoas. Gente de todas as idades, etnias e histórias… todos com o olhar fixo numa única figura.
No centro do palco, uma presença imponente.
Veste roupas longas, negras, que ocultam seu corpo. Luvas de couro cobrem as mãos. O capuz esconde boa parte do rosto, exceto pelos longos cabelos que caem sobre os ombros. Onde deveria estar seu rosto… há uma máscara — não uma comum —, mas uma máscara feita de milhares de micro LEDs. Eles se acendem em tom branco opaco, formando o desenho de um zero deitado… ou talvez… um olho vazio. Ninguém sabe ao certo.
Atrás dele, no fundo do palco, uma enorme bandeira carrega um símbolo:
Um punho fechado, com um zero marcado no antebraço.
Mas ele não está sozinho no palco.
A seus pés, ajoelhado, um homem velho.
Roupas sujas, rasgadas. A pele trêmula, mãos juntas em súplica. Um morador de rua que olha para aquela figura como se olhasse para uma entidade divina.
Então, rompendo o silêncio absoluto, uma voz ecoa. Robótica, metálica, reverberando em todo o salão.
— Todos vocês, reunidos aqui hoje, são vítimas desse sistema podre. Um sistema onde o azar arranca de vocês tudo… e a sorte sustenta os impérios dos que estão no topo.
A figura abre os braços, olhando para a multidão.
— Eles acumulam sorte. Vocês acumulam dor. E nesse mundo, não há espaço pra nós… pelo menos, não ainda.
Ele se volta para o homem ajoelhado.
— Você… veio até mim desesperado. Perseguido. Sua esposa foi executada… acusada de terrorismo simplesmente porque acumulou azar. Ela teve escolha? Não. Ela entrou em coma após um acidente, incapaz de fazer sua escolha diária… e quando seus pontos de azar chegaram a 11… o sistema matou ela.
A voz se torna mais forte, mais grave.
— E quantas histórias como a sua estão aqui hoje? Quantas vidas destruídas pelo acaso… pelo azar? Mas vocês não precisam mais temer. Eu estou aqui para salvar vocês.
— Eu sou… Miden.
O público explode em êxtase, gritando em uníssono:
— Miden! Miden! Miden!
Ele ergue o braço, revelando parte do antebraço nu.
Seu contador brilha… 0.
— Levante-se. — ordena, encarando o homem ajoelhado. — A partir de hoje… você não é mais um PC. Não é mais um zebrado. Você… está livre.
Segura o braço do homem e o levanta, expondo o contador: -23.
A plateia vai ao delírio.
Miden então posiciona a mão direita sobre a cabeça do homem, que imediatamente começa a gritar. Seu corpo se contorce, seus músculos enrijecem, e ele cai em posição fetal enquanto um tremor descontrolado domina cada centímetro de seu ser.
Por alguns segundos… silêncio absoluto.
Até que Miden recolhe sua mão.
— Agora… mostre a todos o seu azar.
O homem se levanta devagar, trêmulo. Olha para o próprio braço…
E naquele instante, o olhar que antes era puro medo se transforma em alívio.
Em esperança.
Em gratidão.
Seu contador agora marca… ZERO.
E a multidão explode mais uma vez:
— Miden! Nosso salvador! Miden! Miden!
Apoie a Novel Mania
Chega de anúncios irritantes, agora a Novel Mania será mantida exclusivamente pelos leitores, ou seja, sem anúncios ou assinaturas pagas. Para continuarmos online e sem interrupções, precisamos do seu apoio! Sua contribuição nos ajuda a manter a qualidade e incentivar a equipe a continuar trazendos mais conteúdos.
Novas traduções
Novels originais
Experiência sem anúncios