Zebra Brasileira

Autor(a): Zeugma


Volume 1

Capítulo 5: Cartas

21 de Março de 2037, Porto Alegre – Brasil

A má iluminação do local, provida apenas pelo luar refletido na janela, fez Ícaro questionar-se por um instante se o conteúdo da carta se tratava de alguma língua asiática, devido à estranheza dos caracteres. Porém, não conseguiu reconhecer sua origem.

Apesar de não conseguir ler o conteúdo, estranhamente sentiu-se íntimo da carta.

— Que tipo de alfabeto é esse? Nunca vi nada assim… Então, por que sinto que já vi isso antes? — disse, remexendo a touca e olhando ao redor da janela. — Por que isso está aqui? E também, será que a perícia deixou isso passar? Eu acho que dever—

— Ícaro?! — uma voz familiar ecoou às suas costas.

Ao virar-se, surpreendeu-se. Era alguém que não via há muito tempo: Richard, aquele que o cumprimentara no seu primeiro dia na PAZ.

— Ah, Richard! O que está fazendo aqui? — indagou Ícaro, escondendo a carta no bolso da jaqueta.

— Sou da perícia, lembra? — disse Richard com um sorriso de canto e olhar descontraído. — Na verdade vim só verificar uma coisa, mas… não importa. A pergunta é: o que você está fazendo aqui?

— Nem sei. Só… me sinto culpado.

— Não acreditei quando vi seu nome no relatório. Já tinha ouvido falar. Não sei por que você saiu da PAZ, mas é melhor parar de se meter em confusão. Você saiu vivo dessa por pouco.

— É… Aliás, nunca ouvi falar dos agentes especiais antes. Quem é aquele homem?

... 

Ambos se encaram em silêncio por alguns instantes, hesitantes. A troca de olhares desconfiados de ambos lados era quase como uma troca de tiros.

— Assunto secreto... — Richard levou um dedo aos lábios, sorrindo levemente.

— Imaginei que diria isso, haha!. Bom, se me dá licença, melhor eu ir indo…

Ícaro caminhou com um sorriso curto e guardou discretamente a carta no bolso de sua jaqueta.

— Se cuida, viu! — disse Ícaro ao passar por Richard.

— Você também. Espero não te encontrar em outra cena do crime.

O coração de Ícaro batia mais forte, sem que ele soubesse exatamente o porquê. Não revelara a carta: era uma possível prova, mas algo em sua intuição pedia silêncio. A visão de Lions disparando naqueles inocentes, a voz do major Nunes ressoava em sua mente. Ícaro não conseguia mais confiar em ninguém da PAZ...

Ao sair do prédio com seus pertences, sacou o telefone — a bateria havia acabado mais cedo — e viu várias mensagens de Rafa. A última, às 7h00, dizia que ele havia ido à escola e deixado o café pronto.

— Droga, deixei ele preocupado… Melhor ir logo pra casa e preparar algo pra ele quando voltar.

Ícaro foi até o ponto de ônibus: vendera a moto para pagar o aluguel depois de sair da PAZ. Encostado à janela, observou as ruas passando, perdido em pensamentos.

“O que Richard fazia ali? Será que ele sabia da carta? Preciso descobrir o que está escrito e qual a relação com o Nataniel. Mas agora preciso chegar em casa — um banho quente cairia bem.”

Desceu a alguns quarteirões e arrastou-se até o edifício. Às poucas quadras de distância, encontrou algo incomum na região: um morador de rua.

Apesar de haver muitas pessoas em situação de rua, geralmente elas eram monitoradas por um programa do governo chamado PROTEGE — Programa de Observação Territorial e Eliminação de Geradores de Eventos — que organizava a observação dos sem-teto por zeladores eleitos pela comunidade.

Ao ver aquele sujeito, Ícaro lembrou-se do pai — um antigo zelador — e sentiu o peito apertar. O homem, de barba branca e cabelos compridos cobrindo os olhos, vestia trapos e estava cercado por papelões; ao lado, uma caneca parcialmente quebrada aguardava esmolas.

“Por que ele está aqui? Não lembro que essa seja uma rota do zelador daqui. Será que devo relatar a algu— não… ele não iria querer isso.”

Ícaro aproximou-se, deixou a caixa com os pertences no chão e colocou, com delicadeza, uma nota de dez reais na caneca. O odor que sentiu ao se aproximar era familiar — álcool, fumaça...

— Não é muito, mas deve dar para três refeições. Você é desta região? Aqui não é permitido sem autorização do zelador — disse ele, tentando manter a voz firme. — Eu já vou indo. A situação não tá fácil só pra você.

Antes de se levantar, o senhor agarrou a mão direita de Ícaro com ambas as mãos, com uma força que ele não esperava.

— Eu lembro de você… Cresceu bastante. Seu pai era um bom homem.

Aquelas palavras fizeram o corpo de Ícaro tremer.

— Obrigado... — murmurou. — Mas preciso ir.

Ele puxou a mão e começou a andar, enquanto a voz do homem ecoava distante:

— Sinto muito pelo que aconteceu...

... 

Enfim, após algum tempo andando, estava diante de sua casa.

— Ah, finalmente! O Rafa deve estar na escola ainda; vou preparar algo gostoso pra ele.

Mas lembrou-se de algo.

— É mesmo, quase me esqueci! É melhor gastar logo meu azar; se chegar meio-dia e o ponto diário somar ao que ganhei do Nataniel, tô ferrado. Eu tava com -9, certo?

Segurou suas coisas com um braço e ergueu a manga para verificar o antebraço direito.

Ao ver o medidor, congelou: a caixa escorregou das mãos e caiu no chão.

O valor?

-20

Sua visão, de repente, começou a embaçar. Os arredores, antes repletos por sons de buzinas e conversas paralelas, diminuiam até quase ficarem inaudíveis. Seu estomago gritava e girava, e o gosto do vômito ardente chegava a boca, regurgitando. Uma formigação estranha tomou conta de todo seu ser.

— Ei… isso é piada, né? Que porra é essa?!!

Tentou raspar o braço com as unhas, levantou e abaixou a manga na esperança fútil de mudança — o resultado era o mesmo.

— Isso não pode estar acontecendo. Eu tava com -9 há pouco. Como… Como isso aconteceu?!!

Ícaro olhou ao redor: havia pessoas e carros cruzando a rua. Alguém ou algo se moveu; ele percebeu a câmera do prédio a observá-lo.

“Porra, não posso ficar aqui. Se alguém ver isso vai me denunciar!” — pensou, enquanto escondia a manga e recolhia as coisas.

As mãos tremiam, os olhos estavam arregalados; gotas frias de suor escorriam pela pele.

Você tá bem, garoto? — perguntou uma mulher que passava, aproximando-se para ajudar a recolher as coisas.

T-tá tudo bem… Pode deixar, eu pego!

Ele juntou apressadamente os pertences, pôs-nos na caixa e saiu correndo sem rumo. Correu até ficar sem fôlego; quando olhou em volta, estava de volta à parada do ônibus.

— Por que isso está acontecendo comigo? Quando foi isso? Será que alguém morreu aqui perto e o azar foi pra mim? Não… a pessoa teria de estar muito próxima. Eu não fiquei tão perto de ninguém depois do Nataniel—

Nesse instante as peças se encaixaram.

O morador de rua?!

Largou a caixa e correu até o local onde vira o homem. O papelão, a manta e a caneca ainda estavam ali; o homem não.

Aproximou-se, ofegante, e caiu de joelhos. O dinheiro que deixara mais cedo ainda estava na caneca e, sobre os papelões, havia outra carta.

Ele entendeu o que poderia estar acontecendo, mas recusava-se a acreditar. Desde a criação daquele mundo, vetores de sorte e azar sempre estiveram presentes, movendo o curso das vidas. Mitologias, lendas, histórias, livros, filmes, relações cotidianas — tudo sempre esteve imerso nisso.

E agora existia alguém capaz de modificar o azar de outra pessoa?

Isso era impossível… ou não.

Acabou… Eu vou acabar como Nataniel! Não, não pode acabar assim. E… e se eu gastar o azar? Vinte pontos talvez não me matem… Não, droga! Os detetives da PAZ vão me rastrear usando as ondas vetoriais. Porra! O que eu faço?!

Ícaro começou a respirar de forma acelerada, hiperventilando. Suas mãos tremiam e seus pés batiam sem parar no chão. Mesmo sem perceber, ele rangia os dentes e deixava algumas lágrimas escorrerem pelo rosto.

— Eu… preciso ir pra casa.

Sem esperança, sem ideias de como sair daquela situação, apenas desistiu e resolveu retornar para um ponto seguro.

Após um longo caminho andando, chegou enfim novamente à entrada de seu edifício. Mas sabia que precisaria passar pelo segurança de lá, que verificaria seu vetor — assim como o mesmo havia feito anteriormente, sentenciando um homem à morte.

— Acho que não tenho escolha. Talvez Deus apenas esteja se divertindo com isso, haha! — Ícaro ria sozinho, com olhar vazio. — Eu sinto muito, Rafa…

Em passos sem esperança, aproximou-se da entrada do prédio, vendo o fantasma de Nataniel se sobrepor à sua carcaça. Talvez fosse karma pelo que fizera.

Porém, para sua surpresa, o local onde deveria haver o segurança — Arthur, um conhecido seu — estava vazio.

— Arthur… Tá aí?

Sem resposta.

Estranhando, aproximou-se do balcão que separava a entrada da sala do segurança e percebeu que, de fato, não havia ninguém. O certo seria ligar para o síndico do prédio e relatar o ocorrido, pois isso colocava em risco a segurança dos moradores. Contudo, isso seria sentenciá-lo à morte. Então, Ícaro fingiu-se de despercebido e apenas apertou o botão do elevador para subir.

“Isso não faz sentido, ele nunca deixa o posto. Será que aconteceu algo com ele? Na verdade, dane-se. Quem sabe foi apenas um ato de generosidade do destino, heh…” — pensou, enquanto esperava o elevador chegar ao térreo.

Após subir até seu andar, abriu a porta do apartamento e adentrou, enfim, em seu lar. A escassez de móveis e a podridão das paredes pareciam até mais confortáveis depois de todo ocorrido…

Na mesa, uma carta escrita à giz roxo, ainda com algumas manchas escuras com forte odor de cafeina e pequenos amassos.

[Fui pá a escola, tem cafe. Cuando chega, faiz comida, cabo o arroiz]

Abaixo da carta, um desenho pequeno do rosto de Rafael com uma careta brava, mostrando a língua.

Antes mesmo que percebesse, respingos de lágrimas começaram a encharcar a carta. Ícaro desabou.

Essa era a única carta que eu queria ter visto hoje... Desculpa… mano. Eu sou um idiota, eu quase desisti… Rafa…

Abraçando o desenho contra o peito, Ícaro olhou para a janela com convicção e raiva no olhar — que dava visão para grande parte da cidade. Ao longe, era possível ver os grandes prédios do centro histórico e algumas das estações da PAZ.

Eu, não… Nós vamos dar um jeito nisso! Vamos descobrir o que está acontecendo e, se realmente tem alguém modificando os vetores de outra pessoa, faremos ele remover o azar que me deu!

— Ah é, mas agora preciso preparar a comida pro Rafa…

Algumas horas depois...

A porta do apartamento abriu-se com força, junto da voz desafinada que vinha apressada:

Ícaro?!! Você já chegou?

Ao entrar, Rafa viu Ícaro sentado à mesa, com um prato preparado de panquecas ao molho branco ainda quentinhas.

Rafa não percebeu devido ao esforço de Ícaro, mas suas mãos tremiam por de baixo da mesa. O sorriso em sua face estava doendo... 

— Eu não comprei arroz a tempo, mas fiz seu prato favorito! — disse Ícaro, com um sorriso no rosto.

— Mano, você voltou!

Rafa correu e pulou no colo de Ícaro, derrubando-o da cadeira. Por sorte caíram sobre um pequeno tapete, amortecendo a queda.

Eu fiquei com medo de você não voltar! Por que não me mandou mensagens?!! — disse Rafa, já com lágrimas nos olhos.

Me desculpe, seu irmão é um idiota. Isso não vai acontecer de novo. De agora em diante, vamos ficar o tempo todo juntos! — respondeu Ícaro, também em prantos.

Ambos se abraçaram, num misto de sentimentos.

Após comerem, Rafa — já de barriga cheia de panquecas e com o rosto lambuzado de molho branco — foi chamado por Ícaro:

— Ei, Rafa, tem algo que preciso falar contigo.

Urgh… comi demais…

— É sério.

— Ah, tá bom. O que foi?

— Precisamos ver alguém, alguém que conhecia o papai.

— Quem?

— O nosso tio.

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