Volume 1

Jogos e Mímicos, Parte 2

 

Depois de uma longa manhã e parte da tarde de jogos, Mio resolveu sair um pouco para comprar certas coisas que faltavam em casa e, obviamente, Zethnniyr a acompanhou em sua saída até a loja de conveniência que não ficava muito longe do apartamento.

Em partes esse era o motivo de ter saído de casa, mas também havia outro motivo oculto. Mio não aguentou o fato de que Zeth era incrivelmente bom em jogos, mesmo sendo um iniciante. Não bastava o fato dele ter entrado no top 20 no primeiro jogo que jogou, ele ainda se deu bem nos outros jogos que Kawano apresentou. E eles só jogaram uns cinco jogos nesse tempo.

Vendo que estava faltando coisa em casa, essa foi a oportunidade perfeita para Mio de sair e espairecer — e tentar esquecer a skill issue —, óbvio que Zethnniyr nem ao menos desconfiou das “intenções” da garota de maria-chiquinha.

— Vamos logo, Mio, eu quero continuar jogando aquele jogo… Qual era o nome mesmo?

— Não tem porque ter pressa, sair de casa faz bem às vezes. — Mio deu um sorriso forçado ao ouvir a reclamação do maou, mas tentou se focar em escolher entre as duas marcas de papel higiênico. 

— Mas tinha que ser logo quando eu estava me divertindo?

— Não vou demorar muito…

“Parece até uma criança”, Mio pensou, com uma expressão bem forçada em seu rosto. Por mais que ela tenha pensado nisso, no fundo sabia que estava sendo tão infantil quanto ele. Não pôde deixar de se sentir mal por usar a saída deles como desculpa para sua frustração. Embora ela não admitiria isso por conta da timidez.

Depois de pegarem tudo o que precisavam, ambos foram em direção ao caixa que, felizmente, não tinha muitas pessoas na fila e nem com muitos produtos no carrinho. Uma das coisas que Kawano mais odiava era esperar em filas, mas por conta do horário, a garota de maria-chiquinha não precisou passar por esse estresse.

Enquanto esperavam na fila, duas mulheres de meia idade, que estavam à frente de Mio e Zeth, conversavam sobre diversos assuntos do momento — conhecido como “fofoca” — enquanto colocavam os produtos na esteira.

— Ouviu o que os vizinhos estão fofocando ultimamente? Eu estou assustada de passar naqueles becos!

— Que beco você está falando? Tem muitos perto de onde moramos…

— Aquele perto do mercadinho! Não me diga que não ficou sabendo dos boatos?

— Eu até ouvi uma coisa ou outra, mas não prestei atenção…

— Você é uma tonta mesmo. — A mulher suspirou em desaprovação. — Dizem que quem passa por ali sempre vê algo de valioso, como um baú de dinheiro ou ouro, mas quando vão pegar… A pessoa desaparece! Já sumiram 4 pessoas!

— Isso não é exagero dos nossos vizinhos? 

“Baú de dinheiro? Parece um pouco irreal demais, até para as coisas que estão acontecendo ultimamente”, Mio pensou, analisando a conversa das duas mulheres de meia idade. Havia muitos boatos rolando por aí depois da “invasão” de monstros a Tokyo, uns verdadeiros, como o caso dos lobos de Amarek, e outros que pareciam mais lendas urbanas.

Mio até pensou em perguntar algo para aquelas senhoras, mas seu corpo e sua boca travaram no momento em que cogitou a possibilidade de estar sendo intrometida na conversa. Isso a fez desistir e logo tentou se distrair com os arredores para fazer o seu corpo relaxar.

Subitamente, Zethnniyr colocou a mão no ombro de Kawano, o movimento repentino a fez estremecer em um pequeno susto. Mio olhou para o rosto do maou e viu que sua expressão estava séria, bem diferente de momentos atrás. Mio não pôde deixar de se questionar se era a demora das mulheres para empacotar as compras ou se ele estava desesperado para jogar.

— Mímicos.

— Do que você tá falando?

— Há mímicos aqui por perto, a conversa dessas senhoras confirmou isso. — Zethnniyr não parou de olhar para as senhoras nem um segundo sequer, até elas sumirem de vista.

— Mímicos são aqueles monstros que parecem baús, não é? Eu não esperava que algo tão fraco iria ser invocado pra cá…

— “Fraco”? Para humanos idiotas, eles são um perigo. E aqui há vários desses humanos.

Logo chegou a vez de Mio e Zethnniyr passarem as compras na esteira, então eles colocaram os produtos para passarem pelo caixa para logo serem empacotados. O silêncio que Zethnniyr deixou atormentava Mio, mas o demônio parecia nem se importar com isso.

— Mímicos podem se transformar em muitos itens de valor, como dinheiro, ouro, diamantes… E eles usam isso para atrair suas presas e devorá-las. — Zethnniyr voltou a falar, dando continuidade a fala anterior. — Humanos são gananciosos, muitos são enganados por esses truques baratos.

— Isso quer dizer que as pessoas desaparecidas…

— Sim. — Zeth colocou a última compra na sacola. Com uma expressão séria no rosto, ele encarou Mio novamente. — Podem ser monstros de nível mais baixo no meu mundo, mas aqui onde a magia é “bloqueada”, ele se torna um problema.

— Mas como vamos saber onde eles estão? Aquelas senhoras já se foram.

— Quanto a isso, agora consigo rastrear rastros de magia pelo ar, as batalhas que tive junto do contrato estão fazendo meu poder voltar ao normal.

— Sério?! Isso é incrível…

A garota de maria-chiquinha se impressionou com a revelação, imaginando o quão forte ele ficaria. Ela já achava o maou forte o bastante apenas com 1 ⁄ 3 do seu poder, sem os efeitos da Quebra Dimensional ele seria tão poderoso quanto os personagens que ela vê nos animes.

Apesar de estar feliz por Zeth recuperar seus poderes, uma parte dela não conseguiu deixar de se questionar sobre o futuro. Com os poderes recuperados, será que ela ainda seria útil? Será que Zethnniyr iria repensar e voltaria para o seu mundo por não se acostumar com este? Mio sentiu um aperto no peito ao pensar nisso.

Mesmo preocupada com o futuro incerto deles, Kawano decidiu que, desde aquele dia em que foi salva, iria mostrar tudo o que o mundo moderno é capaz de oferecer e fazer com que Zeth tenha boas memórias.

Ela logo ouviu seu nome sendo chamado, avistando Zethnniyr em frente a saída da loja de conveniência, esperando a garota de maria-chiquinha sair de seu próprio mundinho. Mio ficou sem graça em ficar viajando nos pensamentos desse jeito.

Com um turbilhão de preocupações em mente, ela balançou a cabeça a fim de afastá-los e decidiu se apressar para ficar do lado do demônio, pois tinham coisas mais urgentes para se pensar naquele momento, embora seu coração ansioso dissesse o contrário.

 



— Consigo sentir um fragmento de magia por aqui…

— Será que não dá pra andar um pouco mais devagar? Estamos com compras e eu já tô morrendo.

— Temos que ser rápidos, pois não vai demorar muito até outro humano cair num truque barato dos mímicos. — Zethnniyr censurou Mio, não parando um instante para acompanhar a garota logo atrás. — Você realmente tem que perder um pouco de gordura corporal, embora esse seja um dos seus charmes.

— Eu tô ouvindo, tá?! Não sei se fico envergonhada ou com raiva!

Fazia apenas alguns minutos que Mio e Zethnniyr haviam saído da loja de conveniência à procura dos mímicos. Ainda que não estivesse com metade dos poderes de volta, o demônio conseguia usar rastreamento de magia, mesmo que por pouco tempo, e por conta disso teria que ser rápido em achar os monstros.

O rastreamento de magia de Zethnniyr não estava no seu melhor estado, o que ele podia sentir era que havia seres com magia por perto, mas não onde estavam exatamente. Então tinham que procurar com os olhos também.

Não demorou muito para Mio se cansar de toda a correria e se encostar na parede, chamando a atenção do maou. Zethnniyr deu um suspiro ao ver o estado deplorável da garota. Apesar de estar preocupado com os mímicos, ele não queria deixar Mio, e isso o deixa inquieto em seus pensamentos.

— Eu vou descansar um pouco… Você pode continuar procurando sem mim.

— Você tem certeza? Eu não posso te deixar aqui sozinha. — Zethnniyr não parecia convencido com a sugestão, e uma expressão preocupada surgiu em seu rosto. — Além disso, você pode se perder ou algo assim.

— Idiota, eu conheço aqui com a palma da minha mão, é mais fácil você se perder… — Ela deu uma pausa para poder recuperar o fôlego, mas logo continuou, com um sorriso no rosto. — E eu sei que você vai me achar, independente de tudo.

O sorriso, a voz e as palavras fizeram Zethnniyr arregalar os olhos, não esperando tal reação de Kawano. A preocupação de antes em relação a Mio sumiu, e o demônio não conseguiu evitar de retribuir o sorriso em resposta.

— Então eu vou olhar os arredores. Fique no mesmo lugar, hein?

— Não vou sair tão cedo…

Depois de ver o riso sem graça de Kawano, Zeth deu um pequeno aceno com a mão e apressou os passos. Com a determinação renovada, ele sumiu da vista da garota de maria-chiquinha.

Mio escorregou pela parede, caindo no chão e se sentando com as pernas cruzadas, um pequeno suspiro saiu de seus lábios em seguida. Ela aproveitaria alguns minutos para descansar as pernas e recuperar o fôlego antes de voltar a busca. Isso só a fez pensar em o quanto seu corpo é sedentário, afinal ela não fazia nenhuma atividade física desde o colégio.

“Eu com certeza seria uma humana medíocre no mundo de Zeth”, admitiu para si mesma, lágrimas imaginárias escorrendo por seu desejo de ser uma heroína de RPG ser destruído. 

Mesmo chateada com o fato de possivelmente ser uma camponesa qualquer num cenário fantasioso, Mio não pôde deixar de agradecer por nascer em uma época em que a tecnologia auxilia em tudo. Talvez esse era o melhor tipo de vida para ela.

— Garota! Eii!

— Quê? Juro que ouvi uma voz, parecia que estavam me chamando…

— Garota!

Mio se levantou rapidamente com o segundo chamado, olhando ao redor do lugar, mas para a surpresa dela, havia ninguém por perto, o que a fez levantar a sobrancelha.

Mio não poderia estar ouvindo coisas, não quando a voz parecia real, realmente tinha alguém a chamando. Como estava em um lugar onde dava para alguns becos, poderia ter alguém por ali. Foi a suposição que Kawano pensou.

Tentou se lembrar de onde a voz havia vindo e andou em direção ao beco, com passos lentos, o nervosismo tomando conta. Apesar disso, não podia ignorar o chamado, não quando poderia ser alguém precisando de ajuda.

Havia ninguém no beco, apenas algo que certamente não deveria estar ali.

— Mangás… Uma caixa de mangás…?

Mio falou consigo mesma ao avistar uma esfarrapada caixa jogada no canto do beco, com vários mangás novos dentro. Alguém os jogou fora, algo impensável para uma pessoa como Kawano.

“Como alguém poderia jogar mangás em perfeito estado fora!”, Mio reclamou consigo mesma, indignada em como algo tão valioso para ela estava no lixo. “Eu já ouvi casos de esposas malucas que jogam os mangás do marido fora… Mas isso é imperdoável! Podiam vender!”

Inconscientemente, os pés da garota de maria-chiquinha andaram em direção a caixa, era como se a caixa estivesse a chamando. Normalmente ela via mangás velhos e rasgados no lixo, não novinhos em folha, e isso foi o suficiente para chamar o interesse dela.

— Não tem ninguém por perto, então não deve ter dono… — Mio engoliu em seco, seus olhos fixos no tesouro. — Acho que alguns dão na sacola… Só alguns!

Olhando para os lados a fim de ver que não tinha pessoas espiando, Mio se aproximou cada vez mais da caixa, ficando a poucos centímetros. Mal podia esperar para ver os títulos, mal podia esperar para lê-los e colocá-los na coleção. Foi realmente um grande achado e esperava que ninguém arruinasse o seu momento.

— Mio, se afaste! Essa coisa vai te comer!

— Zeth? O que você tá…

— Já disse para se afastar! Não coloque as mãos nessa coisa!

Mio se assustou com a fala de Zethnniyr, fazendo a garota recuar os passos e cair de bunda. O demônio logo apareceu em sua frente em um piscar de olhos, com os punhos cerrados e uma expressão confiante. Mio se questionou quando foi que ele apareceu, mas não conseguiu verbalizar isso.

Assim que o maou apareceu, a caixa de mangás — que parecia inofensiva até poucos segundos atrás — logo se mexeu e uma boca grotesca apareceu, junto de um grunhido. Mio olhou para aquilo assustada, os pelos de seu corpo se arrepiando, enquanto Zethnniyr estava aliviado por ter chegado a tempo.

— Seu…! Atrapalhou os meus planos! — resmungou, visível a irritação na voz. — Esse mundo parece adorar esse tipo de livro e essa garota estava caidinha. 

— Calado. Morra queimado!

— Queimar mangás…? Zeth, você tá maluco?

— O que está falando? Você que está maluca! Isso é um monstro!

— Mas… os mangás… Eles são novos!

— Mio, você enlouqueceu? Seus hobbies são tão fortes assim? — Quando Zeth voltou seu olhar para a garota, se surpreendeu com a ação repentina dela. — O que está fazendo?!

Mio estava ali, agarrada nas pernas do maou, com uma expressão desesperada no rosto e com olhos marejados. Zeth olhou para a garota espantado, ele não esperava que os gostos otaku de Kawano fossem tão fortes a ponto de perder a razão. 

Logo a risada do monstro ecoou pelo local, a situação embaraçosa dos dois amigos o divertindo. A risada irritou Zethnniyr, que logo ignorou Mio e ergueu as mãos para atacar. Zeth estava envergonhado por dentro por Kawano agarrar a sua perna repentinamente, mas a expressão irritada não batia com seus sentimentos.

Do lado do monstro, um outro mímico apareceu, dessa vez era um baú cheio de ouro, com um sorriso maligno igual ao primeiro, ambos prontos para devorar. A audácia dos mímicos fez Zethnniyr querer eliminá-los o mais rápido possível e se livrar dessa situação.

— Venha, humana idiota! Existem muitos desses mangás para ler!

— Sim… Eu preciso ler! Agora mesmo!!

— Vocês são podres.

A voz de Zethnniyr saiu mais séria e fria que antes, dessa vez a irritação já subindo a cabeça de vez. Mesmo quando estava no seu mundo, o maou odiava quem usava meios sujos como os dos mímicos.

Com os braços erguidos, ele reuniu toda a sua mana para lançar magia, um círculo mágico aparecendo abaixo dos mímicos. Mio sabia o que aquilo significava, e suou frio ao saber o que aconteceria a seguir.

Logo uma cena inacreditável apareceu em sua frente: Zethnniyr queimando um baú de ouro e uma caixa de mangás. Mio nunca pensou que veria uma cena tão assustadora em toda a sua vida, que o motivo dela viver estava queimando de maneira cruel aos olhos dela. 

Ela estava arrasada, o aperto nas pernas de Zeth ficando mais forte depois do demônio acabar com seu ataque. Tantos mangás novos, tantos títulos que não conhecia, que não pôde ler… Apenas a voz de uma garota viciada ressoou no beco.

 

— Meus mangás!!!















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