Volume 1
Capítulo 12: Jogos e Mímicos, Parte 1
— Eu não acredito nisso!
Um resmungo foi proferido, ecoando na pequena sala de estar onde estava um pequeno lobo de pelos azuis adormecido e uma garota de óculos completamente desengonçada. A vontade da garota era gritar ainda mais quando viu que um membro importante da equipe morreu por um ataque crítico do inimigo, ela apenas não fez isso por não querer atrapalhar o sono de Sei.
Mio fungou ao ver seus outros personagens levarem dano do inimigo, suas mãos tremiam mal conseguindo segurar o celular e sua mente tentava achar alguma solução para reverter a situação.
— Droga, droga, droga… — resmungou mais uma vez, ela não sabia se chorava ou se xingava diante de tal humilhação. — Eu fiz tudo certinho, como foi que ele conseguiu? Já é a terceira vez que eu tento essa Challenge Quest!
Sim, era a terceira vez que tentava passar do seu RPG de turno favorito. Ela acordou um pouco mais cedo do que o normal apenas para farmar nas demais quests e tentar a sorte na nova que havia saído. Faltava alguns dias para a quest mais difícil do jogo acabar, mas Mio precisava dos itens urgentemente para upar seus personagens. Infelizmente, não estava saindo como planejava.
— Vi algumas pessoas na timeline falando que conseguiram passar de boas, mas então por que estou sofrendo tanto…?
— Você vai ficar falando sozinha com esse aparelho mágico até quando?
Zethnniyr, que estava na cozinha até há pouco, apareceu na sala com uma expressão curiosa. Em suas mãos, tinha um prato e um pano, enxugando o utensílio de cozinha delicadamente, mas o deixando bem enxuto. Além disso, vestia um avental preto que combinava com o demônio.
— Você nunca vai entender a minha frustração, Zeth! Já estou nessa quest faz quase duas horas! — Mio levantou o tronco e se sentou no sofá, ajeitando sua postura. — Sério, esse jogo está me estressando…
— Quest, é? Eu me lembro que no meu mundo alguns aventureiros tolos falavam sobre isso sempre que invadiam o meu território.
— Deve ser o típico grupo de aventureiros inocentes que pensam que podem pegar uma quest em um território desconhecido pra poder ganhar uma recompensa mais alta…
— Hmm, bem, é isso mesmo. Como que você sabia? — Zeth perguntou com uma das sobrancelhas levantadas, enquanto terminava de limpar o prato.
— Ah, não é difícil supor isso…
“Afinal, eu sou uma otaku e esse tipo de história é bem comum”, pensou Mio, evitando contato visual com o demônio. Zethnniyr apenas deu de ombros, ignorando a reação da garota de maria-chiquinha e voltando para a cozinha.
Nesse ínterim, ele não pode deixar de se perguntar o motivo de Mio se divertir tanto — e se estressar também — com coisas que ela chama de “jogos”. No mundo dele, jogos eram feitos com pessoas reais, muito parecido com uma competição de quem ganharia, ou melhor, sobreviveria. E não em aparelhos desconhecidos como no mundo moderno.
Com vários questionamentos na mente, o maou voltou para o cômodo onde Mio estava e se sentou ao lado da garota abruptamente. Zeth olhava para a tela do celular da jovem, tentando desvendá-lo, enquanto personagens batalhavam na tela. Apesar de estranho, ele não pode deixar de se sentir intrigado com tamanha tecnologia.
A princípio, Mio havia levado um susto com a ação de Zeth, mas continuou jogando. Porém não levou mais do que 5 minutos para ela se sentir incomodada com o olhar fixo e isso foi o suficiente para ela se desconcentrar e errar a sua jogada. A frustração tomou conta do seu coração, logo sendo visível em sua expressão. A voz da garota saiu em um tom baixo e tristonho:
— O que você quer, Zeth…?
— Eu só estava me perguntando o que são esses tais “jogos”. Parece interessante. — Zethnniyr começou, mudando seu olhar do celular de Kawano para o rosto da garota de maria-chiquinha. — E eu terminei de lavar a louça, então acho que seria uma boa hora da minha serva explicar essas coisas tão intrigantes.
— Pensando bem, nunca te falei sobre isso. Você só leu os meus mangás e assistiu animes já que a língua do seu mundo é incrivelmente igual daqui. — Mio saiu do jogo e desligou a tela do celular em seguida, fitando o rosto de Zeth timidamente. — Acho que é bom te apresentar mais da cultura otaku mesmo!
— Não entendo o porquê de você ter falado isso com tanta confiança, mas eu gostei! Parece divertido!
— E ninguém melhor do que eu para te ensinar isso. — Mio ajeitou o óculos e um reflexo surgiu nas lentes, como naquelas típicas cenas “intelectuais” de animes. — Em breve, você se juntará a mim, Zeth. Não vou ter que ficar perturbando o Kintarou toda vez com os meus hobbies!
— Bom, eu não me importo de te acompanhar desde que seja divertido.
Mio estava com os olhos brilhando com as palavras de Zeth, seu rosto transmitia tal felicidade que deixou o maou até confuso, mas preferiu ficar em silêncio para não atrapalhar. A garota de maria-chiquinha estava mais empolgada do que o próprio demônio, ela já conseguia imaginar vários cenários dos dois investindo em seus hobbies.
Parte dessa empolgação dela se deu porque Kintarou era o seu único amigo próximo com quem podia compartilhar seus interesses, ela não conseguiu amizades tão próximas nem no ensino médio nem na faculdade. Por vezes, ela até se sentia culpada por sempre acabar com a paz de Taniguchi, mesmo que ele não ligasse e também compartilhasse seus próprios hobbies.
Zethnniyr era incrivelmente aberto a experiências novas, mas desde que ele achasse que seria divertido e que valesse o precioso tempo do demônio. Isso foi algo que surpreendeu Mio positivamente no começo. E naquele momento, sentia que seu dever era fazer com que Zeth tivesse uma boa experiência no mundo moderno.
— Bora começar os jogos!
Zethnniyr deu um bocejo bem alto, pondo a mão na frente da boca e fechando os olhos. Suas mãos voltaram para o teclado do notebook, estava em um bloco de notas e ele se encontrava escrevendo diversas frases ali, frases simples até as mais complexas. Felizmente a língua de seu antigo mundo era parecida com o japonês, então o objetivo era fazê-lo se acostumar a digitar no teclado.
O maou já sabia usar eletrônicos mais “simples” durante esses dias em que ficou na casa de Mio, como o micro-ondas, a televisão, os aparelhos para cozinhar, dentre outros. Então era o momento perfeito para ensiná-lo a usar o notebook e, consequentemente, a jogar.
— Esses novos equipamentos do seu mundo são incríveis! Quem diria que essa coisa em forma de retângulo teria tantas funções.
— F-Fico feliz em saber disso… — Sorriu fracamente, enquanto observava um adulto mexendo em algo que ela considerava normal. Ela não pode deixar de pensar em como existiam pessoas anti-tecnologia.
— Esse mundo não para de me impressionar! — disse o demônio, gargalhando em seguida, ainda com as mãos no teclado, digitando frases aleatórias sem parar.
— Parece que você pegou o jeito bem rápido… E-Estou surpresa.
— Não é tão difícil, sinto que é até um pouco fácil!
— Acho que você já consegue jogar um jogo mais simples, já que digitou por meia hora.
Mio clicou em algumas teclas, automaticamente saindo do bloco de notas, clicou mais algumas vezes e na tela apareceu a introdução de um jogo. Assim que o menu apareceu, ela digitou mais algumas vezes até estar tudo nos conformes. Kawano pensou que seria uma boa ideia introduzi-lo a jogos mais simples do que apresentar um jogo complexo, apesar dela estar se contorcendo por dentro para fazer o contrário.
— Esse é um jogo bem simples, é um Tower Defense, você deve defender sua torre de ataques inimigos, mas ao mesmo tempo, terá que atacar a torre do seu adversário.
— “Tower Defense”, é? Pela sua descrição, parece algo como comandar em seu próprio castelo e mandar nos subordinados para o defendê-lo, algo no qual eu já fazia no meu mundo. — Zethnniyr acariciou o queixo, lembrando-se dos tempos em que estava no seu próprio castelo.
— Bem, é mais ou menos isso… Só que em formato de jogo! E por ser Tower Defense, é um jogo baseado em estratégias.
— Agora sim, isso começou a me interessar! Apesar de ter estrategistas no meu castelo, nada era feito antes da minha aprovação. E claro, eu mesmo contribuí para elaborar estratégias.
— Uau, isso realmente parece incrível… — Mio não deixou de imaginar como Zethnniyr trabalhava em seu antigo mundo, só o mínimo de informação já a fazia imaginar como se realmente fosse um RPG. — De qualquer forma, vamos ver como você se sai!
— Isso é um desafio? Hah! Por mim tudo bem, irei mostrar como o verdadeiro maou trabalha!
Kawano se mostrou feliz com a empolgação e confiança que Zeth transmitia, um pequeno sorriso tímido aparecendo em seus lábios. A garota de maria-chiquinha realmente esperava que ele gostasse tanto de jogos quanto ela, seria mais uma coisa que poderiam compartilhar e se divertir juntos. Ter alguém assim tão próximo dela — que não seja sua família ou Kintarou — fez suas bochechas corarem levemente e sua imaginação voar para o futuro.
Mio continuou explicando como o jogo funcionava, detalhe por detalhe. Poderia ser outra e deixar Zethnniyr ver um tutorial, mas se preocupou o bastante para evitar possíveis problemas. Além disso, ela ficou surpresa por Zethnniyr pegar os comandos rapidamente, até se perguntou se ele tinha algum talento nato ou algo do tipo. Depois de explicar tudo, Kawano saiu do lado do demônio e foi até o sofá, sentando-se.
— Agora, divirta-se. Quando você ganhar de umas cinco fases, só me falar. — Após dizer isso, Mio se ajeitou na posição mais confortável e ligou novamente o celular. — Enquanto isso, eu vou tentar mais uma vez tentar passar nessa quest bendita.
— Certo, boa sorte, então. — Virou-se para a tela do PC e sorriu maliciosamente. — Eu, o Rei dos Demônios, serei o vitorioso nessa partida!
— Hehe, obrigada. Boa sorte pra você também!
O homem se espreguiçou e, feito isso, encarou a tela com uma expressão determinada. Em seguida, levou suas mãos até as teclas, começando assim a jogar. Os olhos do maou brilharam enquanto observava as animações dos bonecos e das batalhas. Apesar de ser um jogo com pouco investimento comparado a outros que Mio jogava, Zeth se encantou ainda assim.
Em contrapartida, Mio deu uma última olhada no amigo, a cena dele rindo alto e se divertindo com o jogo a fez se sentir aliviada por ter feito uma boa escolha, afinal ela não queria estragar a imagem de uma coisa que tanto ama. Depois de alguns segundos o encarando, Mio voltou sua atenção para a jogatina, pois seu personagem estava quase morrendo.
Duas horas se passaram, os dois ainda estavam jogando freneticamente, não trocaram uma frase ou palavra sequer, estavam concentrados demais em seus jogos. Percebendo isso, Mio resolveu dar uma olhada em Zeth para ver como ele estava se saindo, curiosa para saber o resultado e, claro, suas primeiras impressões.
— E aí? Como está indo?
— Eu estou nesse tal de “ranking” mundial, em vigésimo quinto lugar. — Mio cuspiu com a revelação do moreno, ele a olhou assustado e arregalou os olhos. — Está bem?
— Cara, em algumas horas você já ficou no ranking mundial e numa boa posição?! Jogou quantas partidas, hein?!
— Umas 120.
Mio se aproximou da mesa onde estava o computador e bateu com a cabeça fortemente no móvel, assustando o demônio com a ação repentina. Ela não bateu a cabeça com força o suficiente para machucar ou sangrar, foi apenas uma atitude impulsiva.
“Esse cara é melhor do que eu?!”, pensou com um sorriso fraco e forçado em seus lábios. Ela não acreditava que um novato estaria no ranking mundial em algumas horas, superando qualquer recorde que Mio tivesse — isso se fosse um “recorde” de verdade — em todas as suas horas jogando.
— Ei, você está bem? De repente começou a agir de maneira estranha.
— Eu tô bem sim. Só o meu orgulho que foi ferido.
Mio começou a gargalhar, essa gargalhada começou a ficar cada vez mais forçada. Fingia estar feliz pela vitória de Zeth, mas se debatia internamente. Nunca pensou que alguém tão próximo e com tão pouca experiência em jogos ultrapassasse sua melhor pontuação, ainda mais alguém que nem é do mundo moderno. Seu orgulho foi ferido e desde então, Mio só evitou pensar na sua possível skill issue.