Volume 1
INTERLÚDIO II
REFLETINDO SOBRE ISSO, percebi que Kanae e eu éramos amigos há mais de dez anos. Não conseguia lembrar exatamente quando foi nossa primeira interação. Acho que nossa amizade teve muito a ver com o fato de que meu sobrenome (Hoshina) vinha logo após o dele (Funami) na ordem alfabética, então frequentemente éramos agrupados e colocados um ao lado do outro no quadro de assentos da sala. Naturalmente, ao longo do tempo, fomos nos acostumando a conversar mais um com o outro. Também ajudou o fato de que, como havia tão poucas crianças na nossa escola, praticamente ficamos com a mesma turma durante toda a escola primária e o ensino fundamental.
Sempre gostei de ouvir o que Kanae tinha a dizer. Porque ele morava em Tóquio antes de se mudar para Sodeshima, ele sabia de muitas coisas que eu não sabia e contava essas histórias incríveis que sempre soavam inacreditáveis para o meu eu mais jovem — como o fato de que em Tóquio todo mundo anda rápido o tempo todo, ou como em Tóquio tem um mini-mercado em cada esquina. Eu ficava hipnotizada sempre que ele falava sobre isso, ouvindo atentamente cada palavra, nunca querendo perder nem um único detalhe irrelevante.
Ainda assim, minha primeira impressão dele foi a de um garoto comum e inteligente, que também era um ótimo contador de histórias. Só foi na segunda série que minha percepção dele começou a mudar. Naquela época, eu era uma criança meio introvertida e uma pessimista ranzinza, para ser sincera. Não mudei muito nesses aspectos, mas na época eu não tinha praticamente nenhuma habilidade social — o que provavelmente foi o motivo pelo qual as coisas aconteceram do jeito que aconteceram.
Era hora do almoço e eu já tinha terminado de comer. Estava virando a página do meu livro escolar quando um dos meninos da sala se aproximou de mim e colocou o dedo bem na minha cara. Eu ainda me lembro das palavras exatas dele.
— Ei, você. Por que sua pele está sempre tão suja?
Eu não consegui dizer uma palavra. Minha maior insegurança na época era a minha pele naturalmente mais escura, e como eu não me parecia com as outras meninas. Eu fiquei ali, sem conseguir pensar em uma resposta. Deve ter sido um choque para mim, para ser honesta. O garoto percebeu isso, o que só o encorajou mais, e ele continuou, desferindo o golpe final.
— Quer dizer, quando foi a última vez que você tomou banho? Nunca?
Senti meu rosto esquentar de vergonha. Para piorar, o garoto falou tão alto que sua voz ecoou pela sala de aula, e agora todos ao redor estavam me olhando diretamente. Eu podia ouvir risadinhas vindo de várias direções, interrompidas por sussurros como "Eca, que nojo" e "Te desafio a cheirar ela." Lembro de uma menina dizendo para pararem, mas a maioria das crianças já tinha decidido tirar sarro de mim. Enquanto isso, eu estava tão frustrada e mortificada que tudo o que consegui fazer foi ficar ali, mordendo o lábio e olhando para meus pés. Por mais que eu tentasse ficar forte, não conseguia bloquear as palavras cruéis deles, e eventualmente as lágrimas começaram a brotar dos meus olhos. Quando a represa estava prestes a estourar, senti alguém me puxar bruscamente pelo braço.
— Vamos, vamos — disse a pessoa.
Eu estava incrédula — era o Kanae. Naquela época, eu nunca teria esperado que ele fosse me defender assim.
— Eu disse, vamos! — ele implorou novamente.
Havia um toque de raiva em seu rosto e voz que me fez obedecer rapidamente. Ele me arrastou para fora da sala no momento em que eu me levantei, sem se importar com as provocações dos nossos colegas enquanto me puxava pelos corredores a passos rápidos. Ainda me lembro da sensação de sua mão segurando meu pulso enquanto ele me conduzia pelas escadas externas — firme a ponto de ser doloroso. Só paramos quando chegamos ao patamar, e então ele finalmente soltou meu braço.
— Ok, acho que não os ouço mais nos seguindo — ele disse, de forma prática.
No instante seguinte, eu me entreguei e desabei, e todas as lágrimas que eu estava segurando desceram pelo meu rosto como uma cachoeira. Kanae estava visivelmente confuso e apavorado com isso, tropeçando nas palavras enquanto tentava perguntar por que eu estava chorando. Entre soluços e choro, eu disse exatamente como me sentia.
— Eu odeio meu corpo estúpido. Eu odeio.
— Ah, vai, quem liga para o que esses idiotas dizem? Eles estão tentando mexer com você, só isso.
— Mas agora todo mundo acha que eu sou nojenta e que eu cheiro mal!
— Confia em mim: você não é nojenta, e com certeza não cheira mal.
— Você está dizendo isso! Não minta! — eu disse, levantando a voz tão alto que Kanae deu um pequeno passo para trás. Ele não se deixou desanimar, no entanto. Balbuciou a cabeça e tentou me acalmar.
— Eu não estou mentindo...
— Está sim! Você provavelmente também acha que minha pele está suja, não acha?! Você pensa que eu sou uma... uma menina nojenta que não sabe tomar banho!
Com isso, eu me deixei cair no chão, com a cabeça entre os joelhos, cobrindo meu rosto com as duas mãos. À medida que as lágrimas escorriam, uma onda intensa de arrependimento tomou conta de mim. Eu era racional o suficiente para saber que o Kanae não estava mentindo, e ainda assim acabei descontando minha raiva nele, e por quê? Porque eu não conseguia entender por que ele estava sendo tão gentil com uma pessoa como eu. Essa confusão me impedia de aceitar sua bondade como verdadeira.
Quanto mais eu pensava sobre isso, mais culpada eu me sentia. Eu nunca deveria ter descontado minha raiva na única pessoa que fez questão de me tirar daquela situação, independentemente da minha lógica. Então eu chorei e chorei, até não conseguir mais chorar, e a culpa deu lugar ao autodesprezo. Mas, quando levantei a cabeça novamente, vi que Kanae ainda estava ali, na minha frente. Seu olhar encontrou o meu. Eu podia ver a preocupação genuína nos olhos dele.
— Você... você está bem, Akari?
— Sim.
— Olha, eu não sou bom nessas coisas, mas… se anima, tá bom?
— Tá bom.
Tudo o que consegui dizer foram respostas monossilábicas e sem compromisso. Kanae claramente não ficou satisfeito com isso, porque continuou gaguejando e se atrapalhando com as palavras enquanto tentava, desesperadamente, embora em vão, me fazer sentir melhor. Eventualmente, depois de um momento de silêncio, o rosto dele se iluminou como se tivesse tido uma ideia brilhante.
— Ei, Akari. Me dá sua mão por um segundo — ele disse, confiante.
— Hã…?
Eu não tinha ideia do que ele tinha em mente, mas estendi a mão direita, como me foi pedido. Ele a pegou e, depois de uma pausa hesitante, enfiou meus dedos diretamente na boca dele.
— Eca?! — eu gaspejei, puxando a mão de volta surpresa. No começo, fiquei totalmente sem saber por que, raios, Kanae faria algo assim, mas então ele me olhou diretamente nos olhos e disse algo que ficaria comigo pelo resto da minha vida.
— Viu? Você não está suja, de jeito nenhum — ele proclamou com confiança. Depois, com um tom um pouco mais tímido, acrescentou, — pelo menos não consegui sentir nenhum gosto de sujeira.
Minha mandíbula caiu. Houve uma pausa longa — e então eu comecei a rir descontroladamente. Kanae me olhou como se eu fosse uma louca, mas eu não conseguia me controlar. Bem, já tinha ouvido pessoas descreverem coisas como pisos de linóleo como "tão limpos que você poderia comer em cima deles," mas colocar a mão de outra pessoa na boca só para provar que não estava suja?! Era tão absurdo que eu não conseguia aguentar! Eu ria tanto que as lágrimas começaram a sair dos meus olhos novamente — tão forte que meu estômago começou a doer e eu esqueci completamente por que estava triste no começo. A próxima coisa que eu soube, é que eu estava apaixonada.
Este Capítulo foi traduzido pela Mahou Scan entre no nosso Discord para apoiar nosso trabalho!