Volume 1

CAPÍTULO 1: 1° ABRIL, 15H

PELA PRIMEIRA VEZ EM QUASE DOIS ANOS, EU ESTAVA SENTADO A BORDO DE uma pequena, mas familiar, balsa de passageiros, deixando as lentas ondulações das ondas me balançarem suavemente de um lado para o outro. Do meu assento junto à janela, podia observar quase toda a área interna de assentos. Havia algo em torno de cem lugares disponíveis nessa embarcação, se minha memória não falhava, mas os passageiros eram tão poucos que podiam ser contados nos dedos de uma mão. Olhei para o velho relógio de parede pendurado e notei que eram exatamente 15h, o que significava que já haviam se passado mais de seis horas desde que deixei Tóquio. Com o cotovelo apoiado no parapeito da janela, encostei a cabeça na palma da mão e soltei um breve e melancólico suspiro.

Tinha fugido de casa, e por um motivo pateticamente clichê, nada menos. Por mais que tentasse afastar os pensamentos desagradáveis, eles voltavam com força a cada tentativa. Em parte, eu tinha culpa, para ser justo. Não foi certo ter faltado às aulas suplementares das férias de primavera, e piorei ainda mais as coisas tentando encobrir isso com uma desculpa esfarrapada quando meu pai me pegou matando aula em uma livraria local (tentei fingir que o romance de ficção científica que folheava era, na verdade, material de estudo recomendado pelo professor por suas aplicações práticas em conceitos de física).

Esses dois erros iniciais à parte, eu realmente acreditava que a maior parte da culpa recaía sobre meu pai. Para mim, o modo como ele explodiu comigo assim que chegamos em casa — chamando-me de desperdício de dinheiro, "futuro desistente do ensino médio", uma decepção para a família e simplesmente um caso perdido — foi extremamente desproporcional. Muito do que ele disse foi pura agressão verbal.

Eu sabia que era errado ter faltado às aulas. Admitia isso plenamente. Mas foi meu pai quem insistiu para que eu fizesse esses cursos suplementares em primeiro lugar. Certamente não fiquei empolgado com a ideia de passar as férias de primavera na escola, mas ele não aceitou outra possibilidade. Sim, era verdade que ele estava pagando pela minha mensalidade e minhas despesas, mas sempre foi ideia dele me convidar para morar com ele em Tóquio. No entanto, fiquei ali parado, com os olhos baixos, deixando-o me atacar verbalmente por algo que parecia durar horas, enquanto resistia à vontade de confrontá-lo por quão irracional ele estava sendo. Aquela última observação casual — e duvido que ele tenha pensado antes de dizê-la — foi o empurrão final.

— Eu sabia que foi um erro trazer você de volta para Tóquio comigo.

Essa única frase me atingiu tão forte que parecia ter levado uma tacada de beisebol na cabeça. Depois de dois ou três segundos de silêncio perplexo (talvez tenha sido mais tempo, difícil dizer), saí pisando duro em direção ao meu quarto e bati a porta com força. Ignorando os gritos incessantes do meu pai, enfiei algumas trocas de roupa e itens básicos em uma mochila e, assim que acordei na manhã seguinte, saí correndo pela porta da frente. Já havia passado mais de meio dia desde a discussão, mas pensar nisso ainda fazia meus dentes rangerem de frustração.

— Idiota estúpido — xinguei baixinho, o ar quente embaçando o vidro da janela.

Eu sabia que não me faria nenhum bem continuar revivendo esses eventos em um ciclo infinito na minha mente, então decidi abandonar esse pensamento e olhar para o oceano aberto, cujas ondas brilhavam intensamente sob o sol da tarde. As águas azul-escuras estavam relativamente agitadas hoje, fazendo a pequena balsa balançar de um lado para o outro. Estava começando a sentir um pouco de enjoo, embora fosse possível que a turbulência não tivesse nada a ver com isso. Talvez minha ansiedade sozinha fosse a causa do mal-estar.

Ainda assim, levantei-me do assento e segui para a frente da embarcação para tomar um pouco de ar fresco. No momento em que pisei no deque, um vento forte arrancou o capuz do meu moletom e o fez bater furiosamente contra a nuca. O ar do início da primavera estava um pouco gelado contra a minha pele, ainda mais com o vento, mas isso foi exatamente o choque refrescante que eu precisava. A brisa fria me tirou do ciclo depressivo; já me sentia mais vivo novamente.

Olhei ao redor, mas não havia outras pessoas no deque ventoso. Com passos medidos, caminhei em direção à proa e me inclinei sobre o parapeito na frente do navio. Bem à nossa frente, podia ver nosso destino: a pequena e remota ilha que um dia chamei de lar, mas que não visitava havia dois anos inteiros. Sodeshima.

Logo atracamos no Porto de Sodeshima. Joguei a mochila sobre o ombro e me preparei para desembarcar. Assim que saí da balsa e deixei o porto, no entanto, avistei alguém familiar caminhando pela calçada do outro lado da rua. Embora o cabelo dele estivesse um pouco mais comprido do que dois anos atrás, eu reconheceria aquele corte rente e porte imponente em qualquer lugar. Eu tinha avistado Akito Hoshina.

Na época em que morava em Sodeshima, ele era o mais próximo que a pequena ilha tinha de um astro. Com seu talento atlético extraordinário e habilidades no beisebol, ele levou sozinho o time da nossa escola de ensino médio — desconhecida e sem nome — ao campeonato nacional em Koshien, um feito que o tornou o assunto da cidade por muito tempo. Ele era o cara que todo garoto da ilha queria ser quando crescesse, eu incluído. Considerando que era três anos mais velho do que eu... ele devia ter vinte anos agora. Perguntei-me o que ele estava fazendo atualmente. Tivemos algumas interações muito breves no passado, então considerei chamá-lo para cumprimentá-lo, mas, quando finalmente decidi, ele já havia entrado no guichê de bilhetes para a balsa de saída. Eu tinha perdido a chance.

— Ah, tanto faz. Quem sabe da próxima vez.

Decidi que seria mais assertivo ao abordá-lo se outra oportunidade surgisse. Virei-me na direção do único lugar onde sabia que poderia ficar por um tempo: a casa da minha avó.

Após passar pelos poucos quarteirões de empresas de turismo e pousadas tradicionais ao redor do porto, segui para o interior pelas ruas residenciais íngremes e estreitas. Embora tivesse nascido em Tóquio, passei a maior parte da minha vida em Sodeshima. Atualmente, vivia uma vida indistinguível de qualquer adolescente de Tóquio, mas foi aqui, na humilde Sodeshima, que frequentei o ensino fundamental e o ginásio, os anos mais formativos da minha vida. Nesse sentido, Sodeshima era mais uma cidade natal para mim do que Tóquio jamais seria. Praticamente se podia dizer que essa não era uma fuga de casa, mas uma espécie de retorno ao lar... embora essa distinção não mudasse nada.

Falando em coisas que não mudaram, pensei enquanto olhava para as ruas de Sodeshima, observando a surpreendente falta de desenvolvimento nos últimos dois anos. Tudo estava praticamente do mesmo jeito que eu lembrava. Apenas casas antigas, no estilo japonês, alinhavam as ruas desses bairros, sem um único prédio moderno à vista. Era um nível de estagnação que ia além de evocar nostalgia, entrando no reino da estagnação entorpecente.

Depois de subir a colina a pé por cerca de dez minutos, parei em frente a uma casa de madeira de dois andares com a placa FUNAMI fixada no portão. Eu estava em casa. Enquanto lutava, como sempre, com a porta instável que não se encaixava direito no batente, chamei para dentro da casa, e minha avó saiu rapidamente da sala de estar para me cumprimentar.

— Bem-vinda de volta, Kanae — ela disse, as rugas profundas em seu rosto se esticando e formando um sorriso largo e reconfortante. Ela já estava nos seus oitenta e tantos anos, mas permanecia tão ereta quanto antes, com a postura firme como uma flecha. Por todos os relatos, era extremamente vigorosa para a idade; sua excelente saúde era a única coisa que eu estava grato por ver permanecer inalterada nos últimos dois anos.

— Oi, vó — sorri de volta. — Quanto tempo, né?

Antes de me deixar envolver por uma longa conversa, subi para guardar minhas coisas. Entrei no meu antigo quarto e percebi que tudo — minha cama, minhas estantes, minha escrivaninha — estava quase exatamente como eu deixei dois anos atrás. A única diferença perceptível era que alguém havia limpado regularmente, já que não havia um grão de poeira. Minha cama também tinha sido arrumada com um edredom mais leve, adequado para a primavera agora que o inverno havia acabado, presumivelmente obra da minha avó.

Deixei minha bolsa de viagem no chão e saí do quarto. Voltando para o andar de baixo, fiz uma rápida parada na sala de estar de estilo tradicional japonês para prestar respeito ao altar do meu falecido avô e avisá-lo que eu tinha voltado para casa antes de entrar na sala principal. Sentei-me de pernas cruzadas em uma almofada no chão, à mesa baixa de jantar, de frente para minha avó, e fui direto ao ponto.

— Então, é isso. Como eu te disse no telefone hoje de manhã, provavelmente vou ficar aqui por um tempo — comecei.

— Por causa daquele pequeno desentendimento com seu pai, imagino? — ela respondeu.

— É... Espera. Eu já te contei sobre isso?

— Não — ele me ligou pouco depois que desliguei com você. Disse que você poderia aparecer por aqui e pediu para eu te manter fora de problemas, caso viesse.

— Ah, ele fez isso, é...?

— Seu velho parece que te conhece bem — ela provocou, rindo como uma bruxa travessa de contos de fadas. O fato de meu pai ter previsto cada um dos meus movimentos me encheu de uma mistura estranha de vergonha e indignação.

— Sabia que deveria ter fugido para outro lugar.

— Ah, por favor. Como se você tivesse para onde ir! Além disso, não é como se tivesse algo melhor para fazer nas férias de primavera, não é? Relaxe um pouco aqui em Sodeshima. O grande festival está chegando, sabia?

— Não vou a essa coisa idiota, vó. Você sabe que odeio multidões.

— E mesmo assim quis morar em Tóquio. Nunca vou entender.

— É um tipo totalmente diferente de multidão, vó — respondi displicentemente, pegando uma mexerica da mesa e começando a descascar. Antes que pudesse colocar o primeiro gomo na boca, ouvi a porta da frente se abrir.

— Tô em casa— Uhhh, o quê?

Claro, era minha irmãzinha Eri, que agora estava parada na entrada da sala, boquiaberta. Ela havia crescido um pouco desde a última vez que a vi, há dois anos — o que a tornaria uma adolescente de catorze anos agora, pensando bem. As tranças frisadas de antes tinham evoluído para algo mais estiloso: um rabo de cavalo lateral baixo. O que mais chamou minha atenção, porém, foi o uniforme escolar estilo marinheiro. Minha pequena Eri tinha deixado para trás a mochila vermelha da escola primária e agora era uma adolescente de verdade. Como irmão mais velho, foi uma sensação definitivamente estranha.

— Oi, Eri — eu disse. — Faz tempo, né? Voltou direto de alguma reunião de clube ou algo assim?

— O que você está fazendo aqui? — Ela respondeu rispidamente, estreitando os olhos.

— Uau, ok. Essa é uma forma de cumprimentar seu irmão amoroso que você não vê há anos, pelo jeito. A vó não te contou que eu vinha?

— Contou. Estou perguntando por que você está aqui.

As palavras dela eram afiadas. Ficava claro que ela não estava feliz em me ver — o que eu conseguia entender. Ela resistiu à ideia de eu me mudar para Tóquio até o último instante. Nossa despedida, dois anos atrás, não foi das melhores, e eu não tentei entrar em contato com ela desde então.

— Vamos lá, não me olhe assim — eu disse. — Isso é uma reunião digna de comemoração, certo? Senta aqui e come uma dessas mexericas comigo.

— Da última vez que chequei, essas não são suas para oferecer, Kanae.

Essa doeu. Não era a primeira vez que ela me chamava pelo meu nome real, mas só fazia isso quando estava extremamente irritada comigo. Todo o resto do tempo, era "Nii-san".

— De qualquer forma, você não respondeu à minha pergunta — ela insistiu. — O que te trouxe de volta para Sodeshima? Diga o motivo.

— Não tenho nenhum motivo. Apenas fugi de casa, então vou ficar escondido aqui, vivendo às suas custas por um tempo.

— Quanto tempo é um tempo?

— Talvez uma semana ou algo assim. Hoje é 1º de abril, então... talvez até o dia 8?

— Entendi. E por que você fugiu de casa, exatamente? Brigou com aquele inútil?

Olhei para minha avó do outro lado da mesa, mas ela balançou a cabeça. Aparentemente, Eri tinha adivinhado sozinha — ela era esperta. Não havia razão para mentir, então confessei.

— Sim, foi mais ou menos isso — respondi. — Você acertou em cheio.

— Tá vendo, é exatamente por isso que tentei te impedir de ir com ele. Eu te disse que aquele homem não batia bem da cabeça.

— Pois é, bem... Talvez você tenha razão. Definitivamente estou arrependido agora.

— Tá vendo? Você nunca deveria ter ido morar com aquele inútil—

— Eri — minha avó interrompeu. — Pare de chamar seu próprio pai de inútil.

Eri inflou as bochechas e franziu o rosto com essa repreensão.

— Bem, não vou chamá-lo de pai, com certeza. Não quando ele não fez nada para merecer isso — resmungou.

Eu definitivamente conseguia entender o ponto de vista de Eri. No início, nós quatro — eu, Eri, meu pai e minha mãe — vivíamos juntos em Tóquio. Quando eu tinha seis anos e Eri mal completara três, nossos pais se divorciaram porque veio à tona que minha mãe estava tendo um caso. Nunca soube todos os detalhes sórdidos, mas basta dizer que minha mãe perdeu completamente qualquer vínculo que pudesse ter conosco. Ela ficou mais do que feliz em transferir a custódia total para o meu pai. 

Vale mencionar que eu não tinha certeza se meu pai realmente queria a custódia de nós dois ou não. Preferia nem pensar muito nisso. O fato é que ele não perdeu tempo em nos mandar para Sodeshima, para viver com nossa avó, enquanto ele permanecia em Tóquio, nos negligenciando completamente por quase uma década. Eu entendia perfeitamente porque Eri o considerava um pai ausente, já que ele não morava conosco desde que ela era pequena demais para se lembrar. Para ela, ele era pouco mais que um estranho qualquer.

Eu, por outro lado, nunca me senti assim em relação a ele, pelo menos não durante os anos do ensino fundamental. Quando ele me perguntou, no oitavo ano, se eu tinha interesse em cursar o ensino médio em Tóquio, aceitei a oferta e me mudei para a cidade grande logo após me formar no fundamental. Para ser claro, minha decisão tinha menos a ver com o desejo de reacender algum tipo de relação pai e filho e mais com o fato de eu estar simplesmente desiludido com Sodeshima como um todo.

— Venha, Eri. Sente-se com a gente — pediu minha avó gentilmente, e Eri obedeceu, sentando-se ao lado dela. — Vou preparar um pouco de chá para nós; aproveitem para conversar enquanto isso, está bem? 

Eri assentiu em silêncio enquanto minha avó se levantava e seguia para a cozinha. Sentei-me de frente para minha irmã, que agora mantinha a cabeça baixa, envergonhada. Ela sempre foi muito apegada à avó, então provavelmente foi um choque ser repreendida por ela. Para Eri, nossa avó e eu éramos os únicos membros da família que importavam, então fazia sentido que ela tivesse sido tão contra minha mudança para Tóquio. Pensando assim, até senti pena dela. 

— Ah, vai, não fica assim — tentei tranquilizá-la. 

— Diz o cara que começou com isso… Que droga — resmungou. 

— Por que não mudamos de assunto? Você está no fundamental agora, né? Difícil de acreditar. Está praticando algum esporte ou participando de atividades extracurriculares?

— Como se você se importasse. Por que nunca ligou ou veio visitar nesses dois anos, se está tão curioso sobre minha vida?

— Bom, sabe como é… Parecia meio estranho, sabe? Especialmente depois que você lutou com unhas e dentes para me impedir de ir para Tóquio. Não tinha certeza se você queria ouvir o que eu tivesse a dizer. 

— Uau, não sabia que você era tão covarde — zombou ela. — Sim, conversar com as pessoas pode ser estranho às vezes, Kanae, mas isso não significa que você deve cortar um membro da família da sua vida. Não acredito que você é tão cabeça dura. Isso não é nem questão de cortesia, é bom senso. 

— Nossa, você sentiu tanto a minha falta assim? 

— O quê? — ela retrucou, incrédula. — Tá maluco? Claro que não. Tá vendo? É exatamente disso que estou falando: você tem um dom para dizer as piores coisas possíveis em momentos difíceis. Aposto que você não tem muitos amigos lá em Tóquio, tem?

— Com licença? — retruquei, mais incomodado por ela estar certa do que qualquer outra coisa. — Olha, vou admitir que deveria ter tentado manter contato. Certo. Mas o mesmo vale pra você, sabia? Você sabia meu número. Poderia ter me ligado sempre que quisesse, mas não ligou. 

— Ah, é? E por que seria minha responsabilidade entrar em contato com você quando foi você que fugiu e nos abandonou? Qualquer um com meio cérebro concordaria que era sua responsabilidade fazer as pazes, Kanae. Você realmente não tem um pingo de sensibilidade, tem?!

— Isso não tem nada a ver com sensibilidade, e você sabe disso. Aliás, pode parar de dizer meu nome nesse tom condescendente? KA-NÁ-E. Você soa ridícula. É hora de superar essa fase rebelde e voltar a me chamar de onii-san como uma boa irmãzinha. Ou seria chibi-nii

— Eca, o quê?! Você quer dizer quando eu tinha, tipo, cinco anos?! Não me faça vomitar. Se alguém está em uma fase rebelde aqui, é você. Não está meio velho para fugir de casa porque papai te irritou?

— C-Cala a boca! Você não sabe o que aconteceu! Ele me obrigou! 

— Ah, por favor. Você provavelmente só foi pego matando aula, e ele te chamou a atenção.

— Não era aula! Era só um curso suplementar, tá bom?!

— Vocês dois podem parar já com isso?!

A voz retumbante da minha avó reverberou como um trovão enquanto ela voltava para a sala de estar, carregando uma bandeja com algumas xícaras e um bule pequeno. 

— Eri! Pare de provocar seu irmão assim!

— O quê… Não, foi ele quem… — Eri tentou argumentar.

— E você, Kanae! Você é o irmão mais velho; deveria ser o maduro aqui! Não pode se deixar provocar tão facilmente! 

— Tá bom. O que você disser, vó — suspirei, levantando-me da mesa e indo em direção à porta. 

— Para onde você vai? — ela perguntou.

— Vou esfriar a cabeça um pouco — respondi sem nem olhar para trás e rapidamente calcei meus sapatos antes de sair pela porta. — Bem, não perdi tempo em deixar as coisas constrangedoras — Murmurei para mim mesmo enquanto descia a estrada inclinada fora de nossa casa.

Que absurdo entrar em outra discussão menos de uma hora depois de chegar aqui. Eri estava completamente certa sobre mim, e aquela era a prova. Incapaz de admitir isso para ela, me exaltei e tentei negar.

Eu era meio solitário na minha escola em Tóquio. Isso já era verdade quando eu estava no ensino fundamental aqui em Sodeshima, então não dava para culpar apenas o choque cultural. Minha relativa falta de habilidades sociais significava que eu não tinha muitos amigos, mas, no oitavo ano, houve um incidente em que defendi um colega que estava sendo intimidado. Isso fez com que todos os populares começassem a me ignorar e a espalhar rumores maldosos pelas minhas costas. 

Eventualmente, até o garoto que defendi entrou na onda, com medo de que voltassem a atormentá-lo. Foi nessa época que desenvolvi alguns (admito, bem leves) problemas de confiança.

Ainda assim, não foi como se eu não tivesse aprendido nada com essa experiência infeliz. A lição mais importante que meus anos no fundamental me ensinaram não estava no currículo, mas sim que se isolar em uma câmara de eco de pessoas que têm medo de se opor só gera mentalidades estreitas. 

Foi por isso que fiquei tão animado para aceitar a oferta do meu pai de me mudar para a cidade grande. Meu principal objetivo era escapar da mentalidade insular e fechada de Sodeshima. Imaginei que, em um lugar tão diverso quanto Tóquio, a cidade onde nasci, eu certamente encontraria um grupo onde me encaixaria, um lugar onde seria aceito. Infelizmente, essas esperanças foram rapidamente frustradas.

No começo, as pessoas na minha nova escola estavam extremamente curiosas sobre mim, já que a vida em uma ilha remota era algo que elas não conseguiam sequer imaginar. Mas a curiosidade não durou muito. Minha falta de jeito natural logo se destacou, e minha diferença de experiências de vida dificultava a conexão com meus colegas.

Aos poucos, tornei-me um excluído novamente. Depois que falhei em alguns testes seguidos, alguns alunos começaram a me tratar como se eu fosse um caipira analfabeto. Não houve nada de bom no meu tempo lá. Mesmo assim, persisti na esperança de que um dia conheceria alguém disposto a me aceitar como eu era. Em vez disso, minha frustração continuou crescendo, até que, com o incidente da noite passada, tudo veio à tona.

— Eu sabia que era um erro trazer você de volta para Tóquio comigo.

Quando aquelas palavras saíram da boca dele, parecia que toda a cidade de Tóquio estava zombando de mim, ridicularizando-me por pensar que algum dia eu me encaixaria. Não pude suportar ficar lá nem mais um momento, então corri para a casa da minha avó em Sodeshima o mais rápido que pude. E agora lá estava eu, fugindo do lugar para o qual tinha fugido.

— Queria tanto ir para casa...

Mas não para Tóquio, nem para Sodeshima — para algum conceito indefinido de lar, um lugar onde eu pudesse me sentir pertencente. Onde seria esse lugar, eu não sabia. Provavelmente, em algum lugar debaixo de lençóis frescos em uma manhã de primavera, onde eu poderia dormir o dia todo, indiferente ao mundo. Embora soubesse bem que isso era um sonho impossível, não estava com a menor vontade de voltar para a casa da minha avó tão cedo. Felizmente, ainda havia bastante luz do dia, então decidi vagar pela ilha por um tempo.

Andei por aí me lamentando por um bom tempo, até que cheguei ao caminho de concreto que seguia ao longo da costa. Lá fui saudado por uma forte rajada de vento salgado que fez os pelinhos da minha nuca e do meu nariz se arrepiarem.

Como acontece na maioria das ilhas pequenas, os ventos em Sodeshima eram bem intensos o ano todo, principalmente devido à ausência de barreiras terrestres significativas para bloqueá-los. O oceano aberto era o berço dos ventos fortes, afinal, o que fazia de Sodeshima um alvo fácil no meio da tempestade.

Enquanto caminhava pela orla, resistindo à ventania, acabei me deparando com uma jovem sentada no muro costeiro, com as pernas balançando sobre o oceano enquanto olhava para o continente com uma expressão de anseio. Ela usava um suéter fino, ligeiramente largo, e uma calça preta simples e confortável. Seu cabelo castanho desbotado estava em um corte bob desgrenhado de comprimento médio, e dava para perceber pelo seu perfil que ela tinha uma pele bronzeada e lisa. 

Só que eu já sabia que o desbotamento do cabelo era causado pelo cloro da piscina e que a cor da pele não era resultado de bronzeamento artificial, mas do pigmento natural com que nascera.

O nome dela era Akari Hoshina. Ela era a irmã mais nova do atleta estrela da ilha e, também, minha melhor amiga de infância.

— Aka— hã?

Comecei a chamá-la, mas parei no meio do caminho — porque, enquanto as primeiras sílabas saíam dos meus lábios, notei que lágrimas escorriam por suas bochechas. Havia algo cativantemente natural na forma como ela chorava também — ela não fungava, não fazia nenhum esforço para enxugar as lágrimas e, pelo que pude ver, nem sequer piscava. Fiquei em dúvida se chamá-la naquele momento era realmente uma boa ideia. Ainda assim, não podia simplesmente passar direto e fingir que não a tinha notado, então caminhei lentamente até ela e chamei seu nome quando estava a poucos passos de distância.

— Akari...? — perguntei. Ela se virou imediatamente, tão rápido que o movimento centrípeto fez lágrimas voarem de suas bochechas.

— K-Kanae-kun?! — ela disse, ofegando de surpresa genuína enquanto se levantava de um salto sobre a parte elevada do quebra-mar. — O que você está fazendo a— ah, ai!

— Cuidado aí!

Talvez por ter se levantado tão rápido, Akari perdeu o equilíbrio e quase caiu para trás no oceano. Felizmente, meus reflexos de emergência entraram em ação. Avancei para envolver meus braços ao redor de suas coxas (que estavam na altura dos meus olhos) e a puxei de volta. Por um breve instante, senti o calor do corpo dela contra minha bochecha, mesmo através do tecido grosso de algodão. 

Assim que me certifiquei de que ela havia recuperado o equilíbrio, afastei-me rapidamente. Aquilo foi um movimento impulsivo da minha parte — mesmo que fosse apenas para garantir que ela não se machucasse. Enquanto eu estava ali, desesperado para não ter tornado a situação dez vezes mais constrangedora, ela pulou do quebra-mar e limpou a areia da parte de trás da calça.

— Desculpe por isso — ela disse. — Você me assustou, só isso.

— Sim, foi mal. Eu não devia ter me aproximado assim. Está tudo bem?

— Sim. Um pouco atordoada, mas é melhor do que cair para a morte! Obrigada pela ajuda! — ela disse, sorrindo de forma provocativa. Não parecia que ela iria guardar rancor por eu ter enfiado meu rosto entre suas pernas. Enquanto soltava um suspiro de alívio, lembrei-me do que queria perguntar quando a vi pela primeira vez.

— Ei, Akari? Não que seja da minha conta, mas... você estava chorando agora há pouco?

— Hã? Ahhh, é, uh... Minhas alergias ao pólen têm me incomodado bastante ultimamente, sabe como é. Meio chato, mas o que dá pra fazer? Ahahaha...

Ela esfregou os cantos dos olhos com a ponta dos dedos enquanto tentava disfarçar com uma risada, mas não parecia um caso de alergia ao pólen para mim. Estava convencido de que devia haver outro motivo para ela estar chorando, talvez algo ruim que tenha acontecido hoje. Mesmo que fosse isso, eu não tinha coragem de tentar arrancar a verdade dela. Especialmente porque era a primeira vez que nos víamos em dois anos. Decidi que talvez fosse melhor mudar de assunto.

— Bem, desde que você esteja bem, acho que tudo bem. De qualquer forma, é bom ver você de novo!

— Sim, bom te ver também! A gente não se via desde a formatura, né? Você está de volta pra aproveitar as férias de primavera?

— Sim, mais ou menos. Pretendo ficar na cidade por uma semana ou algo assim.

— Legal, legal. Tempo suficiente pra descansar um pouco, né?

— Sim, é a ideia — respondi sem muito entusiasmo, depois olhei para as pernas da Akari. — E você, o que tem de novo? Aposto que ainda está no time de natação?

— Quero dizer, sim... E daí?

— Ah, nada, eu só, uh... Consegui perceber pelas suas coxas, só isso. Não tem como elas estarem tão firmes se você não estivesse se exercitando todo dia.

Akari me encarou com a expressão de um cervo diante dos faróis por uns bons cinco segundos antes de explodir em risadas.

— Ahahahaha! Me desculpa, o quê?! Quem é você e o que fez com o Kanae-kun? Ou será que todos os distritos da luz vermelha aí te transformaram em um pervertido?!

— O quê?! C-Cara, isso foi tão estranho assim?! Acho que entendo como você pode interpretar... Ok, sim, pareceu bem ruim, né? Olha, esquece o que eu disse! Desculpa.

— Não, tarde demais! Vou te chamar de "Kanae, o Cara das Coxas" de agora em diante! Ou que tal isso: "O Fetichista do Fêmur"? ...Espera, não! Tive uma ideia melhor! "O Connoisseur Crural"! Hahahaha!

— Por favor, não. Eu faço literalmente qualquer coisa.

Nós dois nos sentamos no paredão, desta vez voltados para o interior, e aproveitamos a brisa por um bom e longo tempo. Akari não era apenas minha amiga de infância mais próxima, mas também minha primeira paixão. Não houve um momento específico que me fez me apaixonar por ela — foi mais como uma daquelas coisas que você percebe com o tempo. Infelizmente, minhas esperanças desmoronaram um dia, no ensino fundamental, quando ouvi ela dizer algo para outra garota da classe.

— Eu e o Kanae-kun? Sem chance. Somos apenas amigos. Não tem nada a ver, pode acreditar.

Tentei me convencer de que foi uma coisa boa descobrir isso antes de me confessar e passar vergonha — ênfase no "tentei." Depois disso, mantivemos o status quo e nunca ultrapassamos a amizade platônica, até que, eventualmente, seguimos caminhos separados ao entrar no ensino médio. Não era incomum para amigos de infância como nós se afastarem com o tempo — quantas pessoas podiam dizer que seu melhor amigo aos oito ainda era seu melhor amigo aos dezoito? Não muitas, e eu não achava que havia nada de errado nisso. Para mim, era suficiente podermos nos reunir e relembrar os velhos tempos assim de vez em quando. Não podia desejar nada mais.

— Caramba, Kanae-kun — ela disse depois de um tempo. — Tenho que dizer, estou aliviada em ver que a cidade grande não te mudou tanto assim. Eu estava meio esperando que você voltasse com o cabelo tingido e um monte de piercings malucos.

— Por favor, me diga que você não acha que todo mundo em Tóquio é assim — eu gemi.

— Bom, não, obviamente. Mas é uma das capitais da moda do mundo, né? Aposto que você encontrou um monte de garotas bonitas e modelos, não foi?

— Quero dizer, talvez comparado a Sodeshima, sim.

— É mesmo? Conta aí. Conseguiu uma namoradinha por lá? — ela perguntou, virando a cabeça de lado para me olhar de baixo para cima, como se tentasse avaliar minha reação. Uma parte de mim queria dizer que sim, só para se gabar, mas se ela descobrisse que eu estava mentindo, só iria me fazer parecer ainda mais um perdedor do que já me sentia. Ela nunca ia deixar isso barato. Decidi responder com sinceridade.

— Não, não tenho nenhuma. Desculpe decepcionar, mas minha vida social por lá tem sido bem... sem graça até agora.

— É, já imaginava. 

— Uau, ok. Não sabia que estava aqui para ser zombado — eu resmunguei sarcasticamente. Akari deu uma risadinha. Decidi inverter os papéis e puxar o assunto sobre ela, mesmo sabendo que isso não ia ser uma grande revanche. — Você não mudou nada também, sabia disso?

— Sério? Você acha?

— Bem, seu corte de cabelo é exatamente o mesmo, por exemplo. Eu te reconheceria de longe.

— Sério? Eu sinto que mudei bastante — ela murmurou para si mesma antes de olhar para o chão com um ar desanimado.

Se era realmente assim que ela se sentia, então certamente algo nela tinha mudado. Dei uma olhada mais atenta; obviamente, a puberdade fez seu trabalho, mas algo me dizia que não era isso que ela estava se referindo. E, caso fosse, eu não fazia ideia de como deveria responder.

Levantei os olhos para o rosto dela e foi aí que finalmente notei algo em Akari agora que não estava presente quando ela era do ensino fundamental, embora fosse um detalhe pequeno: havia círculos escuros sob seus olhos. Enquanto eu observava, me perguntando se talvez ela não estivesse dormindo direito ultimamente, ela levantou o olhar para me encarar, e nossos olhares se cruzaram.

O antigo eu com certeza teria desviado o olhar imediatamente. Na verdade, eu esperaria que o novo eu fizesse o mesmo... mas não consegui. Havia algo nos olhos da Akari — uma escuridão profunda, como se alguém tivesse reunido um céu cheio de nuvens negras em meio a uma tempestade e, de alguma forma, destilado isso diretamente em suas pupilas — e isso fez com que fosse impossível para mim desviar o olhar. Como se eu precisasse descobrir o que era, ou isso poderia me consumir também. No final, foi Akari quem desviou o olhar primeiro.

— Ok, pode parar de me encarar agora. Isso ficou oficialmente constrangedor — ela anunciou.

— Hã? Ah, desculpa. Não era minha intenção — eu disse, envergonhado, virando o rosto. Tentei espiar novamente pelo canto do olho e vi que o rosto dela também estava vermelhíssimo. Alguns momentos se passaram, e então ela se levantou de um pulo com um Hup! e se virou para me encarar. Depois ela colocou as mãos atrás das costas e se inclinou para frente, aproximando o rosto do meu.

— Ei, hum. Kanae-kun?

— O que foi?

— Já decidiu qual faculdade vai fazer no ano que vem?

— Sim. U of I. Mas você já sabia disso.

A escola em que eu estava agora era uma escola preparatória especificamente para quem queria entrar na U of I. Minha admissão estava garantida, desde que eu não fosse reprovado.

— Sim, eu sei… Só pensei em confirmar já que não conversamos há um tempo, sabe? Enfim, acho que eu já deveria estar indo para casa.

— Ok. Espero te ver por aí.

Akari me deu um sorriso rápido e então se afastou. Eu fiquei ali, sentado no muro de contenção por um momento, alongando as costas. Fazia tempo que eu não conversava com outra pessoa por tanto tempo, e foi bom. No fundo da minha mente, no entanto, o pensamento daquela escuridão que eu percebera nos olhos dela continuava me atormentando.

Tirei meu celular do bolso para ver as horas. Eram 17h. Ainda não estava pronto para voltar e encarar a Eri, então decidi esperar um pouco mais. Guardei o celular no bolso e me levantei, fazendo alguns alongamentos enquanto pensava para onde ir. Foi então que vi uma árvore de ameixa no jardim de uma casa próxima. Suas flores vermelhas profundas chamaram minha atenção e me fizeram perceber que ainda não tinha visto nenhuma cerejeira neste início de primavera. Como hoje era 1º de abril, elas deveriam estar em plena floração — e eu sabia que o melhor lugar da ilha para ver cerejeiras era o terreno do templo fora do Sodeshima Shrine. Pensando que seria uma boa forma de matar mais uma hora ou assim, decidi ir até lá.

Caminhei devagar pelas ruas vazias, aproveitando o agradável ar da primavera. Quando passei pela antiga loja de tabaco, vi um policial de bicicleta se aproximando de mim, pedalando em minha direção. Assim que ele me viu parado no caminho dele, freou bruscamente. Ele era um dos poucos policiais estacionados na ilha — um homem na casa dos 30 anos com rosto oval.

— Olha quem apareceu — ele disse com um sorriso travesso. — Achei que te reconhecia. Quanto tempo, hm?

Ele também não tinha mudado nem um pouco — continuava o brincalhão amigável de sempre, desde quando ele chegou da terra firme, lá atrás, quando eu ainda estava no ensino fundamental. Todos na ilha gostavam dele, crianças e adultos.

— É, faz tempo — eu respondi.

— Veio visitar nas férias de primavera? Cara, eu sinto falta de ser estudante.

— O quê, policiais não têm férias de primavera? 

— Claro que não! Tá de brincadeira? Trabalham o ano inteiro até não aguentar mais. É uma vida difícil, pode acreditar — ele reclamou. Eu estava prestes a fazer uma piada sobre como ele não devia estar tão ocupado se tinha tempo para parar e bater papo comigo, mas ele continuou. 

— Na verdade, acabei de atender uma chamada idiota.

— Sério? Algum tipo de incidente?

— É, nada sério. Uns velhos rabugentos brigaram lá no templo. Tive que ir lá separar.

— Ah, eu estava indo pra lá agora. Tinha muita gente lá?

— Uma quantidade razoável, sim. O Sodeshima Senior Society está fazendo um encontro lá hoje. Acho que estão jogando croquet agora, se quiser ir lá participar.

Fiz uma careta. De repente, perdi totalmente o interesse em ver as flores de cerejeira.

— É, valeu, mas não, obrigado... Eu teria que estar bem desesperado para querer passar minhas férias de primavera batendo bolas em arcos com pessoas cinco vezes mais velhas que eu. Sem ofensa.

— Ôh, garoto. Eu entendo, mas... ai — ele respondeu, rindo.

— Cara, não tem nenhum evento para a galera da minha idade por aqui? Se eles não começarem a tentar atrair um público mais jovem, essa ilha vai virar uma cidade fantasma antes que você perceba… com essa taxa de natalidade em queda.

— Êêê! Vejo que alguém andou estudando política social na grande cidade. Público, hm? Essa é uma palavra e tanto para alguém da sua idade! — exclamou o policial, rindo com vontade.

— Certo, é melhor eu ir embora — disse, me virando rapidamente para não ter que ouvir ele me zoando mais um segundo. Segui em direção exatamente oposta ao santuário, determinado a não deixar minha preciosa férias de primavera irem por água abaixo.

Depois de acenar para o policial, fiquei vagando sem rumo pela ilha por um tempo. Não queria correr o risco de esbarrar com nenhum idoso, ou até com algum dos meus antigos colegas de classe, então escolhi uma das ruas menos movimentadas e comecei a caminhar por ela. Antes que percebesse, estava entrando em becos entre filas de casas antigas e deterioradas. Essa parte da cidade estava praticamente em ruínas; nenhum dos moradores que eu conhecia sequer passava por ali mais.

Há cerca de cinquenta anos, havia uma indústria de mineração próspera em Sodeshima, o que aparentemente aumentou a população da pequena ilha por um bom tempo. Mas assim que o fornecimento de estanho acabou, a maioria da população se mudou para o continente, deixando bairros inteiros de casas vazias para trás.

Quando eu era pequeno, todos os adultos que conhecia tentavam avisar as crianças para não brincarem por aqui, às vezes dizendo que era perigoso, outras vezes afirmando que era assombrado. 

Eu sempre fui um bom garoto e fiz o que me pediram, então essa foi, na verdade, a primeira vez que pisei nessas ruas. Quanto mais eu avançava, mais óbvio ficava que todas essas casas haviam sido abandonadas. Havia ervas daninhas brotando do concreto, e dava para perceber à primeira vista que a maioria dessas construções nem sequer tinha sido visitada há décadas, quanto mais habitada. E, embora eu lamentasse pela população cada vez menor da ilha, não podia deixar de apreciar a atmosfera estranhamente tranquila das ruas. Esse tipo de paz absoluta sempre me acalmava, e mais ainda agora que morava em um lugar onde eu tinha que esbarrar em pessoas todo dia só para andar pela avenida.

Vi que o sol já começava a se pôr, mas ainda assim continuei, indo cada vez mais fundo nas ruas labirínticas. Depois de passar por um beco particularmente estreito, saí em um pequeno pátio onde um parque abandonado ainda se encontrava. 

Havia um balanço enferrujado, um brinquedo de escalada com um grande aviso escrito MANTER DISTÂNCIA, e uma caixa de areia cheia de ervas daninhas; todos esses elementos juntos transmitiam uma aura amarga de nostalgia, enquanto permaneciam ali, esquecidos, esperando pelo dia em que seriam demolidos. Um dia que nunca chegava. 

Já devia fazer muitos anos desde que o riso das crianças brincando havia sido ouvido ali. Em contraste com o estado lamentável dos brinquedos, o parque era cercado por cerejeiras incrivelmente vivas — junto a uma árvore imensa bem no meio do parque — todas elas em plena floração.

— Uau... Isso é insano…

As flores majestosas eram tão deslumbrantes que pareciam magnetizar, e meus pés começaram a se mover em direção à árvore central por conta própria. A cada passo, sua grandeza majestosa e vitalidade radiante ficavam mais nítidas e claras, ao ponto de eu me perguntar se essa única árvore poderia ser a verdadeira responsável por consumir toda a vida dessa área — era algo de tirar o fôlego. 

Uma camada fina de pétalas caídas formava um anel ao redor do tronco, que estalava sob os meus pés a cada passo. Conforme me aproximava, uma rajada de vento fez uma chuva de novas pétalas dançar e flutuar pelo céu dourado do entardecer. Por um breve momento, o parque foi coberto por um véu de rosa suave, e o rico aroma das flores de cerejeira preencheu minhas narinas. Era como se vários anos de paisagens primaveris tivessem sido condensados e refinados em um único instante.

Cara, eu não fazia ideia de que esse lugar estava aqui. Que achado…

Hm?

Fiquei ali, maravilhado com toda a esplêndida visão, e enquanto isso, avistei uma pequena estrutura de madeira escondida do outro lado da árvore. Dando uma volta para ver melhor, percebi que se tratava de um antigo mini santuário, tão pequeno que o topo de seu telhado mal chegava a um metro de altura.

Na frente, havia um pequeno conjunto de portas de treliça, uma das quais estava pendurada aberta. Curioso, agachei-me para dar uma espiada dentro, mas o único objeto ali dentro era uma pedra do tamanho de uma bola de rugby. Uma fenda profunda corria bem no meio dela. Só poderia ser algum tipo de relicário sagrado: uma pedra considerada portadora de poder espiritual, ou pelo menos de significância religiosa para quem construiu aquele pequeno santuário para abrigá-la. Por algum motivo, senti uma estranha fascinação pela pequena pedra. Estendi a mão para tocar a textura da fina e escura fissura no meio dela.

Nesse momento, um som inesperado irrompeu nos meus ouvidos, e meu coração quase saltou do peito. Mesmo depois de retirar a mão reflexivamente, levou alguns momentos para que eu me acalmasse o suficiente para perceber o que era. Uma melodia abafada por estática. Greensleeves. Era a música das 18 horas tocando pelos alto-falantes de emergência da ilha. Ainda assim, fiquei surpreso com a proximidade do som, então me endireitei e comecei a olhar ao redor. Não demorou muito para encontrar a fonte da sirene: um dos alto-falantes mencionados estava preso ao topo de um poste telefônico em um canto do parque. Não era de se admirar que fosse tão ensurdecedor.

Sempre odiei essa melodia melancólica quando estava crescendo na ilha, e ainda a odiava agora. Não gostava de como ela podia puxar minhas cordas do coração com tanta facilidade e me colocar em um estado de nostalgia amarga, mesmo quando não tinha nada de triste ou pelo qual ansiar.

Mistério resolvido, agachei-me novamente e estendi a mão para tocar a pedra dentro do santuário mais uma vez. A música alta realmente me havia abalado, mas não o suficiente para que eu perdesse o interesse na estranha pedra. Enquanto a melodia continuava a soar nos meus ouvidos, lentamente levei minha mão mais perto e mais perto… até que, finalmente, minhas pontas dos dedos tocaram a fissura irregular. No momento em que isso aconteceu, algo elétrico percorreu meu corpo como um choque estático, e minha consciência se desligou em um único estalo — como se minha mente fosse uma TV e alguém tivesse puxado o plugue abruptamente.

(N/SLAG: Greensleeves é interpretada como uma referência a uma jovem dama que usava "vestes verdes" (um vestido com mangas verdes), e que ignorava o homem apaixonado por ela. Ele se dedicava a ela, mas sofria por não ser correspondido. A expressão "Greensleeves" (que poderia se referir às mangas verdes de seu vestido) é simbólica, representando a imagem da mulher que, apesar de ser objeto de adoração, rejeitava o amor do homem que sofria em silêncio por sua indiferença. Embora a origem exata da música e das letras seja incerta, muitos estudiosos acreditam que ela expressa o sentimento de um homem que, apesar de sua dedicação e devoção, não conseguia conquistar o amor da senhora que ele desejava. Isso, então, se encaixa no contexto de um amor não correspondido e de um sofrimento emocional.)


Este Capítulo foi traduzido pela Mahou Scan entre no nosso Discord para apoiar nosso trabalho!


 

 



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