Volume 2 – Arco 3
Capítulo 26
Arredores de um vilarejo.
Esperando calmamente, ele observava o vento sacudindo as folhas da árvore em um ritmo acelerado. Apesar de não possuir muito tempo livre, devido principalmente às suas ocupações diárias, constantemente ele se pegava observando algum animal ou vegetação, aquela era uma forma de alívio; um respiro para sua vida tão cheia de preocupações.
Já havia ouvido de seu pai diversas histórias sobre como a natureza era, de sua própria maneira, a voz do mundo. O conhecimento de agricultura de seu pai sempre foi invejável para a maioria das outras pessoas, a família Nyune, há muitas gerações atrás, era apenas um simples grupo de indivíduo que acreditava em seu Deus, e tendo como a agricultura sua principal fonte de renda, era de se esperar que eles soubessem um pouco sobre esse assunto.
Era irônico como uma simples vila, de um dia para o outro, se tornou uma das maiores fontes de poder de seu país. Tudo ocorreu por um motivo tão simples e bobo:
A religião.
Hanbai era um Deus piedoso, protetor dos agricultores e das festas, proclamava que qualquer tipo de violência era tolice, independente do motivo. Seus seguidores, após uma interpretação equivocada, decidiram se livrar daquilo que eles consideravam a raiz de todo o mal, o ferro.
Espadas, machados e martelos foram atirados em um buraco próximo, enterrado e esquecidos. Aqueles objetos eram unicamente feitos para matar, e não tinham qualquer espaço em uma sociedade que amava a vida mais do que tudo.
Entretanto, durante um ataque de um grupo de saqueadores, a vila sem meios para se defender foi tomada. Os homens mortos, suas terras pisoteadas, mulheres e crianças sequestrados e a igreja, queimada até virar cinza. O mais irônico, foi que armas usadas para cometer tais violências foram as mesmas que os moradores haviam abandonado.
Foi então que a benção de Hanbai caiu sobre um morador comum, sem grandes capacidades ou realizações, mas que após presenciar atos tão horrendos despertou uma magia livre do pecado do ferro: a Magia dos Nyune, que anos mais tarde fariam aquela vila se tornar parte das Dez Grandes Famílias de Artéria.
Essa era a magia daquele homem.
Ele se levantou depressa, olhou para dentro das árvores, vendo dois homens se aproximarem. Suas roupas diferentes da dele eram do mais luxuoso tecido, cobertos por um couro tão grosso que faziam seus corpos suarem. Eles haviam o achado.
— Vocês foram rápidos.
— Senhor Achilles, esse não é o momento para mais uma de suas brincadeiras.
— Como membro importante da Família Nyune — disse o soldado ao seu lado. —, os conselheiros ordenam que volte imediatamente para casa.
— Não precisam de tanta formalidade para me capturar, só Achilles é o suficiente — zombou enquanto deixava seu sorriso amostra.
Aqueles homens ficaram tensos por um instante. Apesar de terem recebido ordens para trazer o Achilles de volta a casa principal, nenhum deles ali poderia sequer tocar no mesmo. Ele era jovem e inconsequente, mas também era um dos guerreiros mais poderosos de todas as gerações da Família Nyune, alguém com tamanha força que rivalizava ao seu líder Utajiri.
— Senhor, por favor…
— Parem com essa formalidade — interrompeu. — Essa é uma missão de captura, não de diplomacia. Aren e Erasto, vocês dois são fortes e confiáveis, eu tenho fé em vocês. Venham com tudo.
Aquelas palavras surpreenderam os dois soldados que confusos não sabiam o que fazer. Era uma situação estranha, um sentimento misto de admiração e medo, mas frente a Achilles, eles precisavam corresponder a altura.
— Vamos Aren! — gritou enlouquecidamente para abafar o medo que sentia naquele momento. E ao não receber resposta, ele olhou para seu companheiro.
E desmaiou em seguida.
Parado no meio daqueles dois guardas, um homem se curvava para Achilles que respondia bufando. Seus músculos eram evidentes, força e velocidade incomparáveis, e sua fé, sem dúvida a maior entre todos os membros atuais de sua família.
— Você não precisava interromper — reclamou Achilles.
— Eu peço desculpas, mas não é correto que o vice-líder de uma das dez famílias se envolva em um conflito tão tolo como esse. Como seu guarda-costa, é minha missão protegê-lo.
— Poupe-me das bajulações Bomani.
Se virando de costas, Achilles continuou seu caminho seguido por Bomani, que se mantinha sempre a dois passos de distância. Desde os acontecimentos recentes, as ações de seu protegido começaram a se tornar cada vez mais imprevisíveis e sua atenção dissipada, como se constantemente pensasse em algo.
O jovem líder andava com passos apressados, mas não importava o quanto tentasse dissipar, Bomani estava sempre em sua cola. Era comum que a família principal tivesse um guarda costa, um guerreiro do mais alto nível que deveria sempre estar ao seu lado independente da ocasião, do seu nascimento até a sua morte.
Achilles notou a presença de seu guarda-costas quando tinha sete anos. Antes ele acreditava que aquele era apenas mais um funcionário comum que trabalhava na casa principal, porém depois da descoberta, não importava onde fosse, seu guarda-costa estava lá, zelando por sua segurança e, é claro, destruindo qualquer privacidade que o jovem Achilles pudesse possuir.
Enquanto andava, Achilles reparou que era observado muito mais que o habitual. Sentia o olhar fulminante, junto da curiosidade de Bomani em suas costas, e essa sensação começou a incomodá-lo profundamente, por um motivo que ele nem sequer sabia responder.
— Você pode perguntar — disse.
— Por que você saiu do castelo de vossa majestade e seguiu nessa direção? Você mais do que todos deveria saber o peso que a derrota da Lótus Negra significa para nossa família.
— Eles não precisam de mim, me chamaram apenas para manter a aparência.
— Isso não é verdade — discordou enfurecido. — O senhor é o segundo em comando, sua força é reconhecida mesmo entre as demais famílias!
— Já disse que não precisa me bajular.
— Claro que preciso! — Ele levantou a voz, a aparência fria e calma desaparecia rapidamente quando o assunto era seu protegido, dando espaço para extensos monólogos que exaltavam todas as suas qualidades, envergonhando o rapaz. — O senhor é uma das figuras de mais alto renome, o que está fazendo aqui?
Ele parou de caminhar.
— Com a saída repentina da Lótus Negra, um enorme vazio no poder se instaurou — disse o encarando. — Os poderosos irão começar a se mover para tapar esse buraco, mas não é com a Família Nyune que estou preocupado.
Sem entender, Bomani franziu a testa, esperando que seu mestre continuasse.
— Essa corrida para preencher o espaço criado pouco afetará a relação de poder entre os poderosos. Mas os cidadãos comuns sentiram na pele, na economia e principalmente em sua segurança o que essa pequena corrida pelo poder irá causar. O que os nossos conselheiros estão fazendo para garantir a segurança dos mais pobres?
— Receio que nada… — Ele cerrou os punhos. Apenas naquele momento ele notou que a pessoa distraída era ele, se preocupando com as Dez Grandes Famílias acima de tudo, sem notar que os menos favorecidos eram quem realmente sofriam.
— Os Nyune já foram simples camponeses. Eu não posso fechar os meus olhos para os meus semelhantes. — Ele se virou e continuou a andar.
Para Bomani, era como se uma grande luz estivesse em sua frente. O jovem vice-líder da Família Nyune, mesmo cético em relação a seu Deus, era aquele que carregava e seguia mais fielmente as ideologias de Hanbai: Proteger seus semelhantes quando os mesmos não possuíam força para tal.
O termo “Família Nyune” era apenas uma forma formal de se dirigir aos seus membros que, na realidade, são um grupo de indivíduos politicamente organizados que compartilhavam apenas sua magia familiar, assim como todas as outras famílias. Eles não compartilhavam do mesmo sangue, e as diversas divisões em castas presentes em cada uma das Dez Grandes Famílias acentua ainda mais esse fato.
Mas não Achilles, ele continuava devoto apesar de não orar, com uma visão ampla e cuidadosa nas questões mais simples e mundanas, que se revelavam na verdade serem a mais importante.
— Senhor Achilles! — gritou, pegando seu protegido de surpresa. — Para onde nós vamos?
— Bem… — Ele voltou a encarar o pequeno vilarejo, da altura em que estavam, podiam o ver completamente e sem dificuldade. — Temos que averiguar a situação nas vilas próximas, quando pessoas poderosas se movem elas sempre deixam rastros. Depois disso, preciso certificar de como está o meu mestre… E iremos para o Porto de Aigéan.
㬇
O cheiro forte de resina, o som de pequenos pássaros que faziam a migração para algum outro local e a pouca quantidade de árvores entregavam de forma amistosa o fim da trilha tão incessante que o grupo fizera, dando espaço para uma o porto de Aigéan.
Mesmo ainda distante do local, já era possível ver algumas embarcações de porte pequeno e médio, que transportavam diversos tipos de produtos, dos grãos de café até os objetos mais inusitados e que saltavam aos olhos de qualquer um.
Para o Sr. Edo, aquela vista trazia grandes recordações de seu tempo. Foi apenas uma vez, mas ele já esteve em um destes enormes pedaços de madeira que cruzam o oceano até um outro continente. Sentindo o vento e o cheiro do mão, tão único e mercado em sua memória. Pensar que estaria mais uma vez tão longe de casa, era como um sonho inacreditável, ou melhor, uma realidade nunca imaginada.
Tal entusiasmo, era compartilhado por Kishi e Alissa, que em grande êxtase comemoravam o fim de sua longa viagem.
— Finalmente chegamos! — dizia a garota. — Eu já não aguentava mais andar.
— É, chegamos… — Ele olhava para os barcos e a movimentação das pessoas. Ainda estavam um pouco longe, mas era possível observar bem o local. — Para onde será que eles vão? Ou de onde estão vindo?
— Quem se importa, vamos entrar logo, eu preciso comer.
Alissa saiu na frente, descendo o breve barranco e seguindo até o porto. Kishi gritava para ela esperar, mas a garota não dava ouvidos. Pai e filho seguiram juntos, aproveitando a vista e a brisa que o mar oferecia.
— É bem simples, mas eu gosto do mar.
— Essa é mais uma daquelas suas histórias de quando era jovem? Não vai me dizer que já foi um pescador.
— Não, não dessa vez. Eu apenas gosto dessa imensidão azul. — Ele olhou para Kishi. — Suas dores de cabeça pararam?
— Sim, elas diminuíram bastante. Mas aquela mancha continua no mesmo lugar.
— Pode ser algum poder do Noredan?
— Não sei. Ela formiga sempre que ativo meus poderes, não sei dizer se é um bom sinal.
— Tome cuidado meu filho.
Quando terminaram de conversar já estavam no portão da cidade. Conforme andavam, reparavam nos moradores locais. Todos possuíam um olhar cansado, evidenciando como aquela vida repleta de cargas e mercadoria poderia ser exaustiva. As casas, de madeira simples porém resistente, possuíam um cheiro forte de peixe, o que deixava o Sr. Edo um pouco incomodado.
O Porto era dividido em duas seções principais. A primeira, onde estavam, era a área do descarregamento e o próprio porto em si. Caracterizada pelo alto número de depósitos, barcos e pessoas cansadas que sempre carregavam grandes caixotes.
A segunda parte, mais localizada no centro e no nordeste de Aigéan, era a área comercial, similar a outro vilarejo qualquer. Com lojas e estabelecimentos diversos. Também era a área mais movimentada e onde Alissa já estava, provavelmente comendo algo.
O tamanho geral se aproximava da cidade principal de Makene Nuí, o que fazia esse ser o maior vilarejo da região sudeste, atrás apenas das três cidades principais, onde residiam as Famílias Nyune e Iona.
O objetivo de sua viagem era chegar até a capital real. Contudo, graças aos desvios, a viagem que duraria cerca de um mês acabou dobrando de tamanho. Depois de checarem seus suprimentos e descansarem, o grupo sairia de Aigéan e passaria por diversos outros vilarejos menores, adentrando a região que é controlada pelas Famílias Macbeth e Verstorben. Após isso, eles enfim chegariam até a capital de Artéria, controlada pela Família Real.
Era uma viagem longa, que levaria eles ao limite, mas que por hora, não era um assunto no qual eles precisavam se preocupar.
A mente Kishi estava mais atenta a um outro detalhe de maior importância.
O paradeiro de Alissa.
㬇
Atravessando a multidão, Alissa tentava em vão encontrar algum estabelecimento no qual pudesse se alimentar. Ela não se importava muito com qual refeição deveria fazer: algo mais comum como peixe assado ou uma comida típica daquele vilarejo. Poderia, quem sabe, degustar de um um prato extótico, trazido diretamente de alguma ilha na qual ela nunca havia conhecido, isso claro, se o seu pouco dinheiro permitisse.
Esteve trancada em sua casa durante muitos anos, apesar de ter vivido seus anos iniciais na capital ela nunca pôde experimentar nada. Não por falta de opções, mas sim pelo costume de seu pai, que sempre foi um homem simples e que, poucas vezes fazia algo diferente que não fosse arroz.
De forma alguma estava desmerecendo sua vida. Ela possuía consciência da vantagem financeira que possui se comparado a muitos outros, mas seu espírito infantil não poderia deixar de sonhar com todos os tipos de experiências que o mundo guardava.
Após tanto sofrer e chorar com a morte de seu pai e passar por situações que ela nunca imaginou enfrentar, enfim um largo e verdadeiro sorriso se fixava em seu rosto repleto de entusiasmo.
Sentimento esse que foi substituído, de repente, por um grande estrondo seguido por gritos de inúmeras pessoas.
Em questão de minutos, um dos comércios começou a pegar fogo. O incêndio havia se iniciado em seu interior por algum motivo, fazendo com que um grande número de pessoas saísse correndo em desespero para o lado de fora.
Alissa se viu no meio de uma multidão de pessoas que corriam para longe, atropelando uma as outras. Enquanto tentava fugir da confusão, notou que nenhum guarda havia chegado ainda, e que o fogo estava se alastrando cada vez mais, começando a atingir outros estabelecimentos próximos.
Uma das pessoas da multidão acabou esbarrando em Alissa. A força daquele simples ato foi tanta que a garota perdeu seu equilíbrio caindo no chão. Apesar de não conseguir observar direito o responsável pela sua queda, quando estava no chão, reparou que a pessoa tinha um pequeno corpo em seu tornozelo e deixou cair um pingente prateado.
Alissa se levantou enquanto pegava o pingente. Tentou inutilmente chamar a pessoa, com o intuito de devolver o objeto, mas já era tarde. Não importava o quanto olhasse, apenas via pessoas e mais pessoas correndo.
O fogo e a fumaça que se espalhavam por todo o local começaram a se aproximar da mesma, que não teve outra opção senão correr para longe.
Após alguns minutos e já afastado de toda a confusão, Alissa parou do lado de uma parede e começou a olhar o pingente que foi derrubado por aquela pessoa, que devido a força, provavelmente deveria ser um homem.
Em tese, não havia nada de especial no pingente: uma corda fraca que se rompeu durante a corrida, o formato de um triângulo com um buraco no meio, seu metal parecia algum tipo de ferro banhado a prata, que dava um aspecto luxuoso para aquele simples objeto.
— Alissa! — Uma voz familiar a chamou.
Chegando perto da garota, Kishi e seu pai se aproximaram exaustos. Eles suavam muito mais que o normal e, de certa forma, pareciam aliviados por tê-la encontrado.
— Você está bem? — perguntou Kishi.
— Sim, eu não estava muito perto do incêndio.
— Que bom que ninguém se machucou — falou o Sr. Edo. — Você sabe o que aconteceu?
— Não. Deve ter sido algum acidente que causou ou algo do gênero.
— A gente tira o olho de você por um minuto e já se mete em confusão… — Ele olhou para baixo, vendo algo em suas mãos. — Ei, o que é isso?
— Alguém deixou cair enquanto estava correndo. — Ela entregou o pingente para que ele pudesse dar uma olhada, ignorando a provocação do mesmo.
Ela ainda olhava para a extensa fumaça que subia aos céus. O fogo havia se alastrado muito rápido e de forma não natural, além disso, o rosto das pessoas haviam mudado subitamente de uma hora para a outra.
Antes, as pessoas que estavam felizes vivendo sua vida normalmente, agora estavam paradas. Todas olhavam para o prédio em chamas com expressões inexpressivas, com um semblante escuro em seus olhos, como se por algum motivo a simples queima de um prédio qualquer fosse a pior coisa que poderia ter acontecido.
A sensação pesada e o ar hostil que se seguiu foi sentido por Kishi e seu pai. Agora a cidade estava quieta, nenhum de seus moradores fazia sequer um som ou esboçava qualquer reação.
Imóveis e calados, observando a fumaça que se espalhava sobre a cabeça de tantos.
O conforto que antes eles sentiam agora havia se dissipado.
E cada um deles se faziam a mesma pergunta:
“O que está acontecendo aqui?”