Vida em Folhas Brasileira

Autor(a): Lucas Porto


Volume 2 – Arco 3

Capítulo 25

Casa principal da Família Nyune.
Corredor principal.

Os passos turbulentos e apressados quebravam o silêncio. O suor descia de forma lenta por sua testa, apesar de tentar não pensar nas consequências que os acontecimentos recentes poderiam causar, em sua posição atual era impossível fechar os olhos e agir como se nada ocorresse. A situação havia se tornado muito mais complicada do que o esperado.

Mesmo com preocupações constantes, ele relaxa os ombros e permanecia com a cabeça erguida em 90 graus. Em poucos minutos estaria em frente aos demais conselheiros de sua família, homens velhos que viveram dias grandiosos no passado, mas que hoje possuem dificuldade para lidar com situações que exijam maior flexibilidade.

— Ande como se não tivesse medo de nada — disse para si mesmo em tom baixo —, mas tenha humildade o suficiente para reconhecê-lo.

Ele parou diante da grande porta, manteve a respiração sob controle e de forma lenta, abriu a mesma.
Todos se calaram ao notar sua presença e de forma coordenada, levantaram-se e fizeram reverência.

— Obrigado por comparecer, senhor Utajiri. — O homem mais próximo da porta, cerca de 60 anos, disse antes de voltar a se sentar como todos os outros. — Desculpe por essa reunião inesperada, mas como líder da família Nyune é importante que tome uma decisão junto…

— Chega de bajulações, Jafari — interrompeu outro dos conselheiros. — Mesmo após anos você continua o tratando de forma mimada.

— Sou seu cuidador desde seu nascimento, e pelo que bem me lembro, Adeben, suas não diferem das minhas quando se dirigia ao senhor Mayri.

O olhar de ambos se cruzaram como o choque de espadas de aço. Aquilo não impressionou nenhum dos demais presentes, se a rivalidade entre os dois irmãos filhos do antigo líder da família não existia, entre seus cuidados porém, a rivalidade era a maior que existia. Constantemente citavam o nome um do outro, um costume dos Nyune para indicar ameaça e seriedade.

— Senhores — anunciou Utajiri, com um olhar calmo e gentil, mas que ainda transmitia a autoridade necessária de um líder. — Peço que guardem os assuntos pessoais para depois da reunião.

Ambos concordaram em silêncio. Utajiri sentia-se nervoso perto dos dois, aqueles homens eram como seus tios mais próximos, uma verdadeira família. E apesar de se divertir com o enredo que ambos protagonizaram, não poderia se dar ao prazer de assistir outro confronto verbal entre os dois naquele momento.

O líder da Família Nyune se sentou em sua cadeira. De pele morena e com cabelos que flertavam entre o liso e enrolado, ele estava preste a fazer 40 anos, e após liderar sua família por tantos conflitos e batalhas diplomáticas o cansaço havia tomado conta de suas pálpebras, detalhe esse que era como entre qualquer líder de uma das dez famílias.

— Vamos dar início a reunião. — Um dos conselheiros disse. — Ontem à noite, foi decretado de forma informal a rendição dos rebeldes que lutavam contra vossa majestade e como tal, o fim legítimo da Lótus Negra.

O anúncio, apesar de já ser de conhecimento geral, pesou no ombro de cada um dos envolvidos, trazendo um sentimento de desconforto genuíno enquanto cada um previam as próximas palavras que seriam ditas:

— Contudo, até o presente momento, nenhuma das Dez Grandes Famílias declararam-se responsáveis por esse feito.

— Isso pode ser um engano. — Começou a dizer um dos homens presente na mesa. — Talvez seja um grande plano que a Lótus Negra tenha armado para baixar nossa guarda e nos pegar desprevenidos.

— Eles não seriam loucos, seus recursos já eram escassos assim como seus homens. Os próprios rebeldes que capturamos, apesar de não saberem o porquê, confessaram que estavam há mais de dez dias sem receber qualquer ajuda da lótus.

— Então foi uma guerra interna? Algum conflito entre Hakuro e um de seus tão prestigiados generais?— Falou Adeben.

— Não seja tolo — respondeu Jafari enquanto o encarava. — Hakuro sempre foi um homem morto. A Lótus Negra possuía um poder militar baixo, a maior parte de seus membros mais experientes foram mortos durante o dia que aquele homem ascendeu ao posto de lorde por se recusar com a nova liderança. Assumir o posto de lorde apenas iria colocar um alvo em suas próprias costas.

— Não é uma opção invalida. — Utajiri interveio. — A Lótus Negra representava uma ameaça por suas informações. Eles se escondiam muito bem, sendo difícil determinar sua localização. Um conflito de interesse sobre a administração dessas informações pode de fato ter ocorrido.

— Mesmo assim, um desaparecimento completo, abandonando os rebeldes que eram seus principais aliados, é estranho e sem sentido. — disse outro conselheiro.

A conversa seguiu por esse rumo durante alguns minutos. Baseado em poucos fatos e teorias conspiratórias, nenhum dos homens ali presente conseguiam chegar em um consenso sobre o real motivo do desaparecimento da Lótus Negra ou algum plano da mesma. 

A possibilidade de uma terceira força, que não pertence às famílias ou ao rei, era tratada quase como uma loucura. Se existisse um grupo capaz de realizar o feito de derrotar uma das lótus sem qualquer auxílio externo, haveria ao menos alguma especulação, uma prova mesmo que singela, de que tal poder de fato existisse.

A discussão então mudou seu foco, com as próximas palavras ditas pelo líder da Família Nyune, Utajiri:

— Uma das famílias pretende assumir o posto do rei.

Todos se calaram, e ele continuou.

— Derrotando a Lótus e permanecendo calado, esperando que alguma das famílias mentisse tentando ganhar os créditos. Essa família então, ao provar a autenticidade de seus atos, não apenas iria ganhar mérito com as demais famílias e com o rei, como poderia até tirar a família rival de seu posto.

— Isso mudaria todo o cenário político do país. Está assumindo que essa família, usuária de sua influência com as demais, para cometer um ato regicida contra nossa majestade? — Questionou o conselheiro a sua esquerda.

— Senhor Utajiri… — começou Jafari, que mudou completamente seu tom de voz. — Essa é uma especulação grave e que não deve ser dita de forma tão leviana.

— Estou errado ao afirmar então, que nenhum de vocês presente aqui, havia pensado nessa possibilidade? 

O silêncio que se seguiu foi como um vento forte, que alterou o mar calmo para ondas turbulentas. Insatisfação e medo era demonstrado pela expressão fácil de cada um dos presentes.

Todos sabiam que, a partir da derrota da Lótus, o cenário havia mudado completamente.

E o responsável por isso, era o grande culpado.

 

 

Em algum lugar na floresta.

— Vamos Alissa, não temos o dia todo! — exclamou Kishi.

— Cala a boca…

Caminhando de forma apressada, pai e filho olharam para trás e esperavam enquanto Alissa tentava os acompanhar. Sua jornada rumo à capital ainda estava longe de terminar, e com a movimentação recente de forças reais por todo o país, eles tiveram que mudar sua rota para evitar chamar a atenção.

— Francamente… — dizia de forma ofegante enquanto apoiava seus braços em seus joelhos. — Precisamos de um cavalo, ou um burro de carga.

— Entendo como se sente — concordou Edo. — Mas cavalos são caros, e um burro chama muito a atenção.

— Além disso, carregar peso faz parte do seu treinamento, então pare de reclamar um pouco. — zombou Kishi, que foi respondido com uma careta de sua amiga.

— Cala a boca projeto de gente. — Ela se abaixou e, com a mão cheia de terra, a jogou em seu companheiro.

— Ei!

— Precisa de atenção, faz parte do seu treinamento — retrucou rindo enquanto passava em sua frente.

— Idiota.

Mesmo após tantas adversidades, nenhum dos dois agia como deveriam naquela situação. Pelo contrário, eles não eram diferentes de irmãos que viviam brigando por assuntos triviais e sem importância, mas que por algum motivo, deixaram o senhor Edo alegre e com um sorriso em seu rosto.

O trajeto continuou enquanto Kishi e Alissa provocavam um ao outro. Eles param no entanto, ao passarem do lado de um grupo de soldados reais que estava a cavalo indo no sentido contrário. Os cavalos eram rápidos e agressivos, e os soldados, nem sequer deram-se ao trabalho de olhar para aquele pequeno grupo de viajantes.

Alissa foi quem mais se irritou com os cavalos. Não apenas pela inveja de não possuir uma montaria adequada, mas também pela arrogância que eles exalavam. Seu objetivo principal não havia mudado, ela se tornaria uma guerreira e forte lutadora, mas jamais seria como eles.

Desde seu confronto contra Olú, ela havia sido treinada dia e noite por Kishi e Edo a fim de aperfeiçoar suas habilidades. O progresso realizado neste último mês foi enorme, mas longe do que ela desejava. Precisava polir suas técnicas e, principalmente, aprender a utilizar uma arma de forma adequada.

— Kishi, como você descobriu a melhor arma para você?

— Hum? Bem, eu não sei. Apenas segui o que meu pai dizia.

— De forma bem teimosa. Lembro de quando era pequeno, e insistia em tentar fugir de suas aulas para tentar aprender a usar espadas e lanças.

O rosto do rapaz corou por um instante, ele sabia que não era muito diferente de sua colega nesse sentido. Sempre prestando atenção em coisas irrelevantes e tentando ir pelo caminho mais fácil durante os treinos, um comportamento esperado de uma criança.

Já ela era mais direta. Não que fosse teimosa, ela reconhecia a importância de todos os ensinamentos, mas não queria treinar por horas e horas alguns socos e chutes que em sua grande maioria não seriam usados em uma batalha real.

— Sr. Edo! Quando eu vou poder treinar com armas de verdade?

— Quando estiver pronta.

— E quando é isso? — bufou. — Já estou a um mês repetindo os mesmos movimentos, dessa forma eu não vou evoluir nunca.

— Menina teimosa e apressada — respondeu. — Você precisa manter sua mente no agora, focar no que importa e no que pode ser feito. Logo você perceberá que espadas e adagas são apenas um instrumento qualquer.

Ele sempre respondia da mesma forma. “Apenas um instrumento qualquer”, ela pensava, armas eram o que podiam determinar a vitória ou derrota. Muitas vezes, guerreiros renomados possuíam armas com nomes próprios e feitos de forma totalmente personalizada. Uma arma era a extensão de sua força, quase como um símbolo de quem você é.

E nem mesmo isso, ela tinha.

 

 

Horas se passaram durante sua caminhada e o grupo havia decidido descansar perto de algumas árvores fora da trilha. Enquanto Alissa e o Sr. Edo relaxam aproveitando a sombra fornecida por algumas folhas, Kishi caminhou um pouco mais, em busca de algum estabelecimento corriqueiro.

Não era incomum durante as longas horas de viagem, se deparar com uma pequena casa que vendia informações e suprimentos para os viajantes. Esse tipo de negócio havia se tornado bastante lucrativo, embora a maioria dos viajantes fossem pobres ou com muito pouco dinheiro. Ao menos em quantidade, eles eram numerosos, viajando por diversos motivos diferentes.

Uma casa de madeira já desgastada foi encontrada cerca de 15 minutos depois que se afastou de seus companheiros. Não havia nada espetacular naquela simples cabana, o único elemento que se destacou foi um homem, com o cabelo quase totalmente raspado, que esperava do lado de fora.

Kishi adentrou a cabana sem muito alarde. O interior não era muito diferente do lado de fora, tendo uma pequena porta para os fundos onde se localizava o banheiro e um balcão onde o vendedor, um homem grande e barbudo, conversava de forma barulhenta com outro cliente.

— São apenas duas moedas, você não pode deixar passar dessa vez?

— Está brincando comigo seu velho decrépito! — Ele batia na mesa. — Se você não tem dinheiro para pagar, então dê o fora!

O homem que tentava inútilmente barganha era um senhor pequeno, perto de seus 90 anos e que não conseguia nem ficar em pé se não fosse por sua bengala. Incrivelmente, ele carregava uma sacola bem grande cheia de lixo e objetos quebrados.

A pobreza já havia tomado conta de certas partes do país, causado principalmente pelas guerras constantes que haviam sido travadas nos últimos anos. Para escapar da fome, muitos viajavam em grupos para as cidades principais, e durante o caminho coletavam todo tipo de material que pudesse ser vendido posteriormente.

— Senhor, eu preciso muito desse tecido. — O velho tremia seu corpo enquanto tentava erguer sua cabeça para olhar nos olhos do vendedor. — Meu neto está morrendo de frio noite após noite. Sua saúde é frágil, esse cobertor, mesmo que barato, pode protegê-lo das noites geladas.

— Justamente por ser barato eu quero que pague de forma certa! Você por acaso é surdo?

— Senhor, eu lhe imploro…

— Chega desses resmungos! — Ele bateu no balcão mais uma vez. O susto foi tão grande, que o velho recuou para trás quase caindo no chão. — Pegue essa merreca e saia logo da minha loja!

Ele levantou o braço, as 3 moedas estavam em sua mão e com violência ele as jogou no velho que, de forma doentia, se abaixou e tentou pegá-las, uma por uma. Esse ato doentio irritou profundamente o vendedor que estava prestes a avançar contra o mesmo.

Quando outro tapa no balcão surgiu.

— Então eu pago por ele — disse Kishi.

— Então eu pago por ele — disse outro homem que havia acabado de chegar.

Kishi e a nova figura recém chegada se entreolharam. O homem possuía cabelos ondulados, uma pele que flertava entre a clara e a escura. Suas vestes, eram tão simples como qualquer outra, mas sua postura e forma de falar, sempre de forma lenta e assertiva, transmitiam uma sensação totalmente diferente.

O velho olhou para ambos os homens que de forma conjunta tentaram o defender. Já o vendedor, achando aquilo algum tipo de piada, rosnou em fúria.

— Que tipo de palhaçada é essa?

O outro homem afiou seu olhar, fazendo o vendedor recuar.

— Essas são as moedas pelos suplementos e pelas roupas. E essas, são pelos itens do senhor. — O vendedor engoliu seco. Cada palavra era assobiada como uma melodia, pensada e calculada. — Algum problema?

— Não…

Já Kishi, se abaixou e ajudou o velho a se levantar. Os três se retiraram de forma rápida do estabelecimento, auxiliando o homem que, por conta daquela gratidão, não parava de chorar.

— Muito obrigado senhores, muito obrigado.

— Não foi nada. — Ambos responderam em sequência, o que deixou um pequeno sorriso sair de ambos.

Enquanto o senhor se afastou, voltando para sua casa. Kishi e aquele homem se encaram mais um pouco. Nenhum sabia direito o que pensar do outro, mas de alguma forma, eles se respeitavam mesmo não trocando nenhuma palavra.

Quando iriam iniciar uma conversa, o homem que esperava do lado de fora interveio.

— Meu senhor, precisamos ir.

— Está bem, um minuto. — Ele olhou para Kishi. — Obrigado por defender aquele velho.

— Do que está falando? Foi você que pagou o tecido no fim das contas.

— Tem razão, eu sou incrível não é?

Aquela resposta tirou um sorriso discreto de ambos.

— Tenha uma boa viagem, companheiro. — Ambos os homens deram as costas e continuaram sua viagem.

Kishi assentiu com a cabeça, e retornou para junto de Alissa e Sr Edo.

Em sua mente, o homem estranho andava com um sorriso do rosto. Em seu ramo de trabalho, era comum ver pessoas que se importavam apenas consigo mesmas. Ver atos de empatia e altruísmo sempre o alegrava.

Mas ele não podia parar agora, estava em fuga. Caso o contrário, aqueles velhos da reunião iriam o encontrar.



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