Volume 2 – Arco 3
Capítulo 27
Centro Urbano
Pousada Dan Sêr
O cair da noite veio como um grande alívio para as agitações daquele dia. Desde o incêndio, o calmo e convidativo Porto de Aigéan se tornou um local agressivo, não importa quem fosse, todas as pessoas tinham semblantes frios e sem vida, era comum ouvir comerciantes xingando uns aos outros, como se um grande estresse estivesse acumulado.
Kishi, Alissa e Sr. Edo alugaram por duas noites uma estadia na pequena Pousada Dan Sêr, que apesar de simples em seu interior, era um local muito mais aconchegante em comparação às noites ao ar livre. Naquele local, eles podiam dormir em paz sem se preocupar com nada.
Todos tiveram que dividir o mesmo quarto — a fim de poupar o pouco dinheiro que ainda possuíam —, além de algumas camas velhas e que rangiam a qualquer mínimo movimento, com um espaço de 16m² eles possuíam espaço de sobra para guardar seus pertences, apesar de não serem muitos.
Enquanto Kishi e seu pai estavam no andar de baixo, socializando com os demais hóspedes e se alimentando, Alissa havia decidido ficar no quarto. Sentada no chão, ela observava atentamente o pingente que havia encontrado naquele dia.
Sua mente estava uma verdadeira bagunça. Não se conformava com aquele estranho incêndio que havia começado sem motivos e muito menos pelo seu alastramento, que chegou a queimar um terço dos edifícios ao redor, provavelmente causando um prejuízo irreversível para seus donos.
Junto a isso, o pensamento sobre o comportamento das pessoas a deixava inquieta. Um simples incêndio, em um estabelecimento local como qualquer outro, e mesmo assim as pessoas se tornaram furiosas, como feras irracionais. E por fim, ainda havia aquele pingente, que havia caído de uma pessoa qualquer no meio da confusão.
“Não, não uma pessoa qualquer” Alissa pensava. Por conta da confusão, não foi possível ver com clareza detalhes do dono do pingente, seu único destaque foi o largo ferimento na perna, a qual devia ser recente pois o sangue havia manchado o tecido da calça, uma pessoa com aquele ferimento não deveria ter forças para correr e muito menos para empurrar, com tanta brutalidade, outra pessoa.
O treinamento com o pai de Kishi havia gerado vários frutos e deixado mais do que claro os principais pontos fortes dela, incluindo é claro, sua ótima postura que dificilmente seria quebrada com um simples bater de ombros.
Seja quem for, aquela pessoa era um guerreiro.
Um excelente guerreiro.
— Posso entrar? — disse a voz familiar de Kishi.
Alissa tomou um susto, guardando rapidamente o colar em seu bolso e arrumando sua postura.
— Claro! — respondeu.
Quando Kishi entrou, ele a olhou com desconfiança. Suspeitou a princípio que a mesa estivesse dormindo, mas ao ver ela em pé olhando para ele, com um falso sorriso, ele logo teve suas suspeitas confirmadas.
— O que estava fazendo? — questionou, fechando a porta assim que entrou.
— Estava pensando, sobre o incêndio.
— Ainda não se esqueceu disso? — dizia enquanto caminhava até sua cama. Ao se sentar na mesma, uma estridente ranger incomodou o ouvido de ambos.
— Aquele incêndio não foi normal.
— Claro que não foi. — A resposta rápida a pegou de surpresa. E ele continuou. — Nenhum incêndio teria se espalhado de forma tão rápida, mas independente dos motivos que o causaram, isso não é problema nosso.
Ela não respondeu, apenas se virou para a janela e olhou novamente as estrelas. Pensou um pouco antes de responder, outra qualidade que aprendeu durante esse último mês de treinamento.
— Você tem razão, mas… Eu não consigo esquecer. — Ela o olhou. — Você viu como as pessoas estavam, tem algo de errado.
— Deixe esse trabalho para os guardas.
— E você viu algum? — contestou. — Esse é um porto, está repleto de mercadoria, e não tem um guarda sequer.
— Então deveríamos ir embora o quanto antes.
— O quê? Não! — Ela o encarou, cerrando os punhos e se forçando a se controlar.
Era claro que Kishi já havia notado esses detalhes, porém diferente de Alissa ele não estava interessado em saciar sua curiosidade. A garota por outro lado, se controlava para não explodir, ela queria o questionar, contradizer, impor sua vontade e agir conforme suas emoções a ordenava.
Mas não o fez.
Alissa havia mudado muito nesses últimos tempos. Desde seu confronto contra o assassino de seu pai, o qual o Sr. Edo fez questão de lhe contar nos mínimos detalhes, Alissa havia se tornado muito mais reprimida e fechada. Suas histerias e ações por impulsos diminuíram drasticamente, ainda mais quando começou seu treinamento com ele e seu pai. Kishi já não sabia dizer se aquilo era algo bom ou não.
Felizmente, aquilo não havia afetado o relacionamento dos dois. Mais do que nunca, eles se entendiam e compreendiam um ao outro e por isso, Kishi sabia que ela não ficaria quieta até não entender, mesmo que em partes, qual era o problema daquela cidade.
E por algum motivo, ele se sentia feliz sabendo disso.
— Alugamos essa pousada por dois dias — falava enquanto coçava a cabeça, a pegando de surpresa —, eu e meu pai temos que comprar os suprimentos para que possamos partir, levaremos o dia inteiro provavelmente.
— Está querendo dizer que…
— Faça o que quiser nesse meio tempo.Assim que terminou de falar ele se levantou e começou a andar até a porta. Não queria ouvir os próximos comentários de Alissa, porém antes de sair do côm
odo, ele abriu a porta e se virou para ela.
— Tome cuidado. — E se retirou.
Logo após fechar a porta, ele pode ouvir um grito de felicidade contido da garota, que comemorava a vitória. Ele sabia que ela já planejava agir com ou sem consentimento, e se perguntou porque ele se deu ao trabalho de concordar com ela.
Eles possuíam quatro anos de diferença em suas idades, mas Alissa demonstrava sonhos e ambições que a multivo tempo ele já havia perdido. Ele voltou a caminhar de volta ao andar de baixo, enquanto constantemente coçava sua cabeça.
㬇
Após uma longa noite de sono, eles haviam se separado.
Assim como haviam combinado, Kishi e seu pai partiram para conseguirem os suprimentos necessários, enquanto isso, Alissa se aventurou entre as inúmeras pessoas e lojas, buscando informações sobre aquele incidente e também sobre o pingente.
A busca se mostrou mais difícil que o esperado, apesar do ânimos terem se abaixado, a maior parte das pessoas continuavam fechadas, com respostas secas e rápidas antes de se afastarem dela. Em sua mente, Alissa xingava e se perguntava qual era o problema deles, mas por fora, permanecia tranquila, deixando o ar entrar em seus pulmões e em seguida, sair por sua boca.
— Ei, Arch!
Alissa se virou quando o grito se repetiu mais duas vezes. Um pouco mais à frente, um dos comerciantes gritava e mexia sua mão freneticamente apontando para ela. Ele era um homem gordo que constantemente tinha que erguer sua calça larga para que a mesma não caísse. Depois de um breve receio, Alissa finalmente atendeu ao seu chamado indo em sua direção.
Quando reparou que a menina de cabelos vermelhos estava vindo em sua direção, ele adentrou sua loja esperando ser seguido, e assim ocorreu. Alissa adentrou a loja robusta, cheio de materiais diversos que variavam de simples potes de decoração até jóias brilhantes. Contudo, o produto que mais se destacava ali eram os diversos tipos de tecidos, que variavam de cores únicas, há cores mistas, tecidos bordados, estampas e muito mais, o que surpreendeu a jovem em sua primeira olhada.
— Finalmente achei um de vocês — falava enquanto gesticulava os braços. — Já estava me irritando com a demora, pensei que teria eu mesmo que subir a colina para cobrar o que me devem. Vamos, me pague.
— Desculpe, eu…
— Não, não, não. Não cairei nessa de novo! — resmungou e mais uma vez arrumou sua calça. — Sua amiga também tentou pechinchar comigo, quero que me pague agora mesmo.
— Eu não sei do que está falando.
— Ah! Pelo amor. — Ele resmungou algumas palavras estranhas. Ela percebeu um leve sotaque em sua voz, apesar de não saber distinguir de onde ele era, sabia que não era de Artéria. — Eu sou o único que vende para vocês, e ainda querem passar a perna em mim? Só pode estar achando que sou um idiota. Reconheço esse pingente de longe, vocês fedem a dívidas!
Quando mencionou o pingente, houve um estalo na mente de Alissa.
— Sim, tem razão. — A resposta pegou o homem de surpresa. Ela colocou o pingente sobre o balcão, e continuou. — Você não é o único para quem eles estão devendo.
O homem ergueu uma de suas sobrancelhas enquanto observava aquela garota da cabeça aos pés. Jovem e bonita demais, não poderia ser uma mercadora, muito menos uma cobradora, ela era fraca demais para isso.
— Que tipo de brincadeira é essa?
— Brincadeira? — Ela se aproximou do balcão, batendo suas mãos com força sobre os mesmos. — Esses idiotas tentaram me roubar enquanto eu acampava aqui perto, acha que eu estou com paciência para brincadeiras?
O tapa no balcão deixou o homem perplexo e assustado, o fazendo recuar imediatamente. O olhar afiado que perfura sua alma era tão amedrontador, a ponto de fazê-lo se arrepender por ter a subestimado.
— Eu pensei…
— Não me importo com o que pensou — interrompeu. — Eu quero saber onde posso encontrá-los, esses tais de Arch.
Dessa vez, foi o homem que teve receio em responder a pergunta. Alissa suou frio por um momento. Ela nunca havia mentido de forma tão descarada, mas não podia recuar, gaguejar ou ceder à vontade que suas pernas tinham de sair correndo dali enquanto tremiam sem parar, escondidas apenas pelo balcão.
— Na colina… Eles vivem na colina ao norte, na casa de madeira vermelha.
Ela não esperou que ele continuasse, pegou o pingente e andou, a passos largos e pesados, para fora da loja.
“Isso, consegui. Porra!”
— Ei, espere aí mocinha!
O grito a fez parar abruptamente.
Quando se virou, ele disse.
— Se for até lá diga que o Adala mandou lembranças, esses idiotas precisam saber que não podem dever para mim e sair impunes.
Alissa concordou com a cabeça e saiu daquela loja. Caminhou de forma apressada, seu coração estava a mil, a vontade de pular e gritar eram quase incontroláveis, apesar de ser uma pequena vitória, ela enfim havia conseguido uma pista e uma direção para continuar aquela investigação. O sorriso em seu rosto era tão evidente, que ela poderia ser confundida com uma simples moça qualquer.
Com as poucas, mas precisas orientações que Adala havia fornecido, não foi difícil achar uma pequena trilha, quase oculta, que levava até o topo da colina. Quanto mais andava, mais a trilha parecia sumir, o que indicava que estava no caminho certo. Os pedaços de madeira fincados no chão já estavam apodrecidos, outros estavam quebrados e jogados no meio do mato.
Se ela estivesse devendo para alguém faria o mesmo, não fazia sentido deixar uma trilha que levava diretamente até a porta de sua casa.
Mesmo com as pequenas dificuldades que a subida na colina proporcionava, Alissa enfim chegou em seu topo se deparando com uma imensa casa de madeira vermelha, gasta pela passagem do tempo e da chuva. Aquele local tinha um aspecto de abandono, o que a fez se questionar se estava no lugar certo.
Ela não teve tempo de se aproximar e averiguar os arredores. Subitamente alguém abriu a porta da frente. De lá, uma mulher de cabelos curtos, cor castanho saiu. Ela era linda aos olhos de Alissa, seu corpo magro e pele clara quase a fizeram a menina suspeitar se de fato ela vivia naquela casa caindo aos pedaços, estava vestindo roupas simples, que acentua suas curvas e físico admirável, que fizeram Alissa sentir inveja.
Porém, essa beleza toda mudou em segundos, quando a mesma olhou diretamente em sua direção, franzindo os olhos.
— Saia! Eu estou te vendo — gritou, sua voz pesada em claro tom de ameaça deixou Alissa em alerta.
Ela ficou surpresa, não sabia como havia sido descoberta de forma tão rápida, infelizmente ela não possuía tempo naquele momento para pensar. Devagar, Alissa obedeceu as ordens indo para frente da casa. A mulher, que provavelmente tinha sua idade, se mostrou surpresa ao ver quem se tratava. “Esperava outra pessoa”, Alissa leu seus pensamentos como quem lia um simples poema. Não sabia se dava início à conversa ou esperava que a outra mulher tomasse a iniciativa.
A mulher relaxou os ombros, aliviada.
— Uma viajante. Escuta, a cidade é logo abaixo, descendo a colina.
— Obrigada…
— Tome cuidado, está bem? A descida é um pouco escorregadia, tome cuidado para não se machucar.
— dizia com um sorriso inocente, como uma anfitriã que acabara de receber visitas depois de tanto tempo.
Alissa ficou quieta a encarando, o que deixou a mulher levemente desconfortável. Não foi difícil perceber o machucado na perna esquerda, um pouco acima do tornozelo, que ainda parecia recente. Dando uma olhada minuciosa, percebia ao ler a sua expressão corporal que ela estava na defensiva, não apenas isso, demonstrava estar inquieta, constantemente olhando para a porta de casa.
Quando Alissa levantou o braço direito segurando o pingente qualquer simpatia que a mulher possuía sumiu no mesmo instante, fazendo a mulher descer as pequenas escadas e fechar o rosto, enquanto dava pequenos passos para frente.
— Eu quero apenas conversar.
— É o que todos queremos, não é? — respondeu. — Como chegou até aqui?
— Eu pedi orientações na cidade, o Adala…
— Então veio cobrar a dívida dele? Já devia imaginar que aquele gordo não se atreveria a subir aqui.
“Merda, comecei com o pé direito.”
— Não, olha eu…
— Garota — Ela disse, sua voz soava como um rugido de um leopardo. Alissa tremeu por um instante. —, me devolve o pingente e talvez eu não quebre a sua cara.
— Como é? — Alissa cerrou os punhos de raiva, o que fez a garota dar um sorriso debochado, deixando-a mais irritada.
Alissa jogou o colar com força e iniciou uma corrida. Já estava claro que a abordagem por meio do diálogo não funcionaria, então teria que recorrer a outros meios. O pingente estava a poucos centímetros de acertar o rosto da mulher, o que seria a distração perfeita para que Alissa pudesse a imobilizar.
Mas a mulher segurou o pingente com uma mão, e usando a perna esquerda desferiu um chute que embora não tivesse acertado, fez Alissa recuar de imediato.
— Boa menina, obedeceu rápido — disse apertando o colar que estava em sua mão. — Já pode ir, não vou quebrar sua cara.
Alissa rangeu os dentes com a provocação o que fez a mulher deixar escapar uma larga risada, claramente zombando da falta de compostura de sua inimiga, a fazendo sentir um misto de vergonha e ódio profundo.
Apesar de ter sido um movimento simples, a rápida reação e sua aura ameaçadora mostrava uma grande diferença de força entre as duas. Alissa deveria recuar, observar ou novamente tentar um diálogo, mas aquela garota havia a irritado de tal modo, que ela queria, mesmo que fosse perda de tempo, se provar mais forte que a mesma.
A porta se abriu.
Alissa e a moça olharam ao mesmo tempo assustadas.
— Irmã… Ah! — Uma garota que havia acabado de aparecer, brilhou os olhos abrindo totalmente a porta. Se tratava de uma pequena garotinha com cerca de 7 anos de idade, de longos cabelos pretos e um olhar que brilhava em um marrom claro. Ela depressa desceu a pequena escada na frente da casa e correu na direção de Alissa.
— Maria, espera!
— Você é a amiga que a Varya disse que ia trazer, não é! Seu cabelo é tão vermelho! Tão lindo! — Ela dizia com os olhos arregalados, segurando a mão de Alissa e dando pequenos pulinhos.
— Muito obrigada… — respondeu sem jeito, não sabendo como reagir.
A postura da mulher, que segundo a menina se chamava Varya, havia mudado completamente. Sendo um misto de preocupação e medo, estando pronta para agir caso visse alguma ameaça.
— Vamos entrar, o resto do pessoal está esperando! — dizia a pequena Maria, enquanto puxava a mão de Alissa
Alissa e Varya se entreolharam. Varya não estava preparada para aquela situação e parecia estar paralisada, seu coração batia rapidamente enquanto ela pensava em qual seria a melhor forma de agir, não podia lutar na frente de sua irmãzinha.
Já Alissa, apesar de não entender direito aquela situação, fez um gestos simples com a cabeça para a moça. Aquele simples aceno acalmou Varya que, embora não confiasse e nem conhecesse Alissa, soube por seu olhar que ela não representava nenhum mal para sua irmã.
Dessa forma, em um contrato estabelecido e assinado somente pelo olhar, as duas evitaram continuar qualquer confronto enquanto a pequena menina estivesse por perto. Já a mesma, que nem sequer havia reparado na hostilidade das duas, puxava a mão de Alissa com mais força para que ela a seguisse.
Alissa e Varya foram conduzidas pela pequena Maria para dentro da casa, com as costas de Alissa sendo constantemente vigiadas pela moça que no menor sinal de ameaça atacaria sem hesitar. Quando entrou na casa, Alissa reparou que a mesma estava extremamente vazia, contendo apenas alguns objetos simples como cadeiras velhas e algumas tigelas. Além de outros cômodos que estavam totalmente fechados.
Elas entraram em um dos quartos da casa. Diferente dos demais cômodos, aquele quarto estava relativamente completo. Havia uma cama simples, uma pequena mesa, alguns livros já mofados e um tapete redondo no centro.
— Desculpe a demora pessoal, a nossa visita chegou, sejam educados e a cumprimentem.
A menina soltou a mão de Alissa e correu dando a volta no tapete redondo. Um por um, ela mexeu cada uma das bonecas de panos acenando com suas mãozinhas, forçando a própria voz para dar vida a cada um de seus ilustres convidados.
— Olá, desculpe o atraso. — Alissa disse por fim quando cada uma das bonecas a cumprimentou, Varya continuava a observar.
— Sente-se, aqui um espaço para você — Ela afastou as bonecas, permitindo que sua convidada se sentasse. — Varya! Não fique aí na porta, venha.
Varya esperou que Alissa se sentasse primeiro antes de sentar do lado oposto, ficando de frente para a mesma. Ambas possuíam muitas perguntas uma para a outra, mas se contiveram por hora.
— Oh, você é muito bonita — dizia um dos bonecos, que eram controlados por Maria. — Como faz para o seu cabelo ser tão vermelho?
— Ele sempre foi assim, eu herdei de minha mãe — respondia enquanto deixava um sorriso sem graça e envergonhado sair de seus lábios.
— Leôncio! Não faça perguntas tão pessoais, vai constrangê-la! — dizia a pequena Maria, deixando largos sorrisos escaparem.
— Não precisa se preocupar, o Leôncio só é um pouco curioso, não é mesmo?
— E o que você está fazendo aqui? — interrompeu Varya, assustando as duas.
— Você não é daqui Alissa? Não sabia que minha irmã tinha amigas de longe.
— Oh, bem… — ela pensou enquanto trocava olhares com a mulher. — Cheguei a pouco tempo, a cidade está linda como sempre, vi inclusive que alguns edifícios foram queimados para abrir espaço a alguns novos.
Varya cerrou os olhos.
— Sério? — questionou Maria. — Eu não sabia disso…
— Nós não saímos muito, não tínhamos como saber.
— Não? Ouvi dizer que você é bastante vista, os comerciantes estão sentindo falta de sua cliente favorita. — Aquelas palavras fizeram a mulher ranger os dentes, se contendo para não demonstrar.
— Ah! Eu falei para você mana, que temos que sair mais! Mas você trabalha bastante…
— E do que ela está trabalhando mesmo?
— No porto. — interrompeu Varya. — Estou trabalhando no transporte de mercadoria.
— Mas… — disse Maria. — Você tinha dito que…
— Não se intrometa Maria-
Em um momento, uma dor aguda foi sentida por todo o seu corpo. Em um movimento automático, ela levou a mão até o machucado em sua perna o apertando, tentando inútilmente conter e disfarçar a dor.
— Irmã! — Maria se levantou a abraçando.
A garota estava assustada. Ela tremia todo seu corpo enquanto tentava fazer alguma coisa para ajudar sua irmã mais velha. Parecia querer chorar, talvez até gritar, mas se segurava.
Alissa conseguiu se ver naquela situação, em todas as vezes que segurou o choro pois queria ser ou parecer mais forte, ajudar seu pai quando o mesmo voltava machucado do campo de batalha machucado, forçando um sorriso e dizendo que estava tudo bem.
Ela era fraca demais e apenas servia como um estorvo.
Uma mão gentil recaiu sobre a cabeça de Maria, a fazendo se virar.
O sorriso genuíno de Alissa acalmou a menina que teve seu medo dissipado. Em seus olhos, ela entendia o que Alissa queria dizer: estava tudo bem, não havia o porquê se preocupar.
Alissa rasgou uma parte de sua calça e, surpreendendo as duas, a enrolou com cuidado em volta do machucado. Embora não resolvesse a situação, amenizou a dor de Varya que a observava com os olhos arregalados enquanto Alissa explicava algo.
— Lave bem, água morna irá fazer a ferida se cicatrizar mais rápido… Você entendeu?
Varya observava a situação desconfortável. Não sabia o que dizer ou fazer naquele momento. Apenas prestava atenção em Alissa.
— Obrigada… — Ela se recompôs, tocando a cabeça de Maria. — Está tudo bem.
Maria concordou com a cabeça, já mais calma.
Varya pegou uma das bonecas e, mudando sua voz, interpretou uma das bonecas da pequena festa.
— Mas que expressão é essa? — disse a boneca. — Isso é uma festa, vamos nos divertir com um delicioso chá!
— Sim! — uma outra boneca, dessa vez controlada por Alissa, disse. — Eu estou com muita fome!
As três brincaram e riram enquanto se divertiam. Parecia que, qualquer tensão que houvesse no ar, havia se dissipado instantaneamente quando as bonecas ganharam vida e começaram a brincar com a pequena Maria, a fazendo cair em gargalhada.
As horas passaram voando, o que deveria ser apenas alguns minutos, se tornaram horas e mais horas conforme a brincadeira passava, retirando qualquer preocupação que elas possuíam. Mesmo que, por meio de bonecas, Alissa e Varya puderam conversar e deixar suas diferenças de lado.
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A festa de aniversário de Maria continuou sem qualquer problemas, durante todo o fim daquela tarde. As garotas comeram bolo e tomaram chá imaginário conversaram sobre diversos assuntos.
Quando estava perto de escurecer, Alissa mentiu dizendo precisar voltar para casa e mesmo com a insistência de Maria implorando para que a mesma ficasse, depois de uma longa conversa e explicações, enfim ela deixou Alissa partir, sendo acompanhada por Varya que a levou até o lado de fora.
— Obrigada pela festa — disse Alissa já do lado de fora. — Não fazia isso a um tempo.
— Sim, é difícil resistir a Maria quando ela começa insistir em algo.
— Com certeza — ela deixou uma pequena risada sair. — Aquelas bonecas, foi você que as fez?
— Sim, não temos muito dinheiro então eu passava constantemente na loja do Adala para comprar alguns materiais de costura.
— Ele disse que os outros comerciantes não vendem seus produtos para vocês. Por que?
Ela ficou quieta, abaixando a cabeça.
— Desculpe pela pergunta. — Completou Alissa.
Alissa desceu as escadas, percebendo a parada repentina de Varya, ela olhou para trás.
— Obrigado… Por acalmar a Maria.
— Eu sei como ela se sente, não tem o que agradecer. Mas é melhor tomar cuidado com esse machucado ou ele pode piorar. — Ela concordou com a cabeça.
— Você não precisava ter feito isso.
— Não mesmo, talvez eu tivesse que deixar você sofrer um pouco para eu te mostrar quem vai quebrar a cara de quem.
Varya rangeu os dentes, fazendo Alissa sorrir mais uma vez.
— Não pense tanto sobre isso — disse pegando a mulher de surpresa. — Pedir ajuda deixa as coisas mais fáceis, isso demonstra que você é mais forte por abdicar da sua arrogância. — Alissa repetiu as palavras do Sr. Edo, se sentindo sabia e destemida, como uma verdadeira guerreira. — Tenho que ir agora, adeus.
Aquelas palavras perpetuaram pela mente de Varya que refletiu sobre aquilo. Ela hesitou em se despedir, e hesitou mais uma vez em dizer o que queria. Sabia que, sem a ajuda de Alissa, sua pequena irmã se desesperado.
Ela conseguiu reunir coragem, e deixou as palavras fugirem de sua boca.
— Alissa!
A garota se virou, surpreendida por ter sido chamada.
— Eu…
— Algum problema?
Ela ficou quieta por alguns instantes antes de enfim, prosseguir com o que queria dizer.
— Nós estamos com um problema.
— Do que está falando? — questionou. — São os cobradores das dívidas?
— Não, não sou apenas eu.
— Seja mais clara, Varya. O que você quer dizer?
Varya ergueu sua cabeça, dessa vez, olhando diretamente nos olhos de Alissa. Nem ela soube explicar o porque, mas as palavras saíram de forma escorregadia, como se já não conseguisse assegurar:
— Eles vão destruir essa cidade em poucos dias.