Vida em Folhas Brasileira

Autor(a): Lucas Porto


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 6

 

O vento soprou forte…

Os cabelos desgrenhados de Kishi ficaram ainda mais bagunçados. Seu olhar atento não se concentrava em nada específico, um foco no vazio, que era preenchido pelos pensamentos. Sentado no chão de madeira, ele relembrou dos ensinamentos que obteve com o passar da vida.

Ao colocar a mão na madeira, ele deixou um sorriso fugir quando percebeu uma pequena deformidade ali. Um erro tão simples numa casa tão bem planejada formou uma memória maravilhosa.

Diante de seus olhos alucinados, o pequeno Sekiro passou correndo por ele sendo perseguido por um jovem Kishi que segurava um pequeno galho de árvore. Pega-pega pirata era como eles chamavam a brincadeira, e por incrível que parecesse, Kishi nunca conseguiu pegar Sekiro não importa o quanto tentasse.

Naquela ocasião ele estava mais motivado que nunca, aumentou sua velocidade e esticou sua mão. Em poucos centímetros seus longos dedos tocariam em Sekiro, finalmente o fazendo vencer aquela disputa.

Entretanto, Kishi tropeçou na pequena deformidade do chão.

Caindo de cara na terra, largou o galho que segurava na mão esquerda e colocou a mão no nariz com medo de um sangramento. Sekiro parou de correr e voltou atrás para ver como ele estava.

A preocupação nos olhos de Sekiro deixou o jovem Kishi constrangido, onde já se viu? Pensou na época, um grande guerreiro como ele se deixar abalar por um mero tropeçar na correria? Não, não, isso não está certo. Se levantando orgulhosamente, limpou rapidamente o nariz e agiu como se nada tivesse acontecido.

Sekiro riu por algum motivo.

Não por zombaria, mas sim, por felicidade.

Kishi, ao se lembrar daquilo, também riu.

— Eu era tão... — falou em um sussurro, dando uma longa pausa. — Feliz... 

Inclinou o corpo para frente e olhou para a palma de sua mão. Manchas de uma história desagradável era tudo o que ele conseguia ver.

Se lembrou da conversa que teve com seu pai sobre seu antigo grupo criminoso, Alopeke, algumas memórias surgiram daquela época, mas havia uma memória específica que sempre lhe trazia uma grande dor de cabeça. Como se sentisse o peso de um pecado, o prelúdio que trouxe o Noredan.

A memória ainda era muito confusa e precisava ser esclarecida. Forçou sua mente a pensar naquilo, naqueles corpos, no imenso portão que separava o mundo trivial da irregularidade, fazendo com que a dor do trauma aumentasse de forma imensurável, mas houve um resultado.
Ele se lembrou de... 

— Não… — ordenou colocando a mão sobre a boca. Recusava-se a pensar mais naquilo. — Ei... Você pode me ouvir?

Nenhuma resposta.

— Noredan, é com você que estou falando — disse.

Silêncio.

— Eu não pedi por aquilo… Então por que você está aqui, por que eu? — exigiu alguma resposta.

.

.

.

Kishi suspirou...

— Entendi o recado.

Fechou os olhos. Deixou que uma grande quantidade de ar entrasse em seus pulmões e depois, suspirou com força. Ao tentar pensar em outra coisa, viu que as nuvens estavam com formatos engraçados como sempre. Um jacaré? Não, um coelho sem dúvidas, um coelho com orelhas tortas.

— Isso não existe Kishi — contestou Sekiro. Quando o atual Kishi olhou para baixo viu seu amigo deitado no chão apontando para as nuvens —, são cachorrinhos, está vendo?

— Não. — Imitou as falas de si mesmo, revivendo mais fortemente a lembrança. — São coelhos saltitantes, como você não percebe.

— Continuam sendo cachorros — bufou em desaprovação, sabendo que seu amigo era orgulhoso demais para admitir a derrota. — Ei Kishi, o que você quer ser quando crescer? — disse sem tirar os olhos do céu.

— Quando eu crescer? Hum... Quero entrar na Lótus Vermelha e me tornar um grande guerreiro! Vou cortar montanhas, piu piu — anunciou com orgulho, começou a imitar os barulho de seus ataques, rápidos e poderosos. Ao menos era assim na sua cabeça.

— Coitada das montanhas. — Os dois riram.

— E você Sekiro? Quer se tornar um guerreiro também? 

— Não. Quero me tornar um pacificador.

— O que é um panificador?

— É pa-ci-fi-ca-dor. São homens fortes que fazem de tudo para impedir conflitos e brigas, igual nossos pais.

— Não sabia que o papai era isso.

— Meu pai disse que aqueles que não sabem lutar sempre serão dominados, precisamos ser fortes para impedir que brigas aconteçam.

— Mas... — Ele se levantou, e olhou para o amigo. — Pra que ser forte e não lutar? Não é mais fácil derrotar os inimigos?

— Os inimigos pensam da mesma forma, não é?

— É... — admitiu meio confuso, ficou pensando sobre aquilo. 

— Por isso — Sekiro ficou de pé —, vou ser bem grande e forte, para ajudar todo mundo que precisar de ajuda. Como um grande samurai. Daí as guerras não vão acontecer e ninguém precisará sofrer.

Naquele momento, Kishi notou como sua ambição de se tornar forte apenas para se vangloriar era inútil. Sekiro almejava algo mais à frente. Almejava ajudar. Assim como o senhor Edo ajudou Kishi quando sua terra natal foi pega pela guerra, Sekiro lutaria para que guerras como aquela não acontecessem.

Sekiro se tornou sua inspiração.

Um barulho alto cortou os pensamentos de Kishi.

Em um susto ele se levantou com um pulo, sem pensar duas vezes correu para dentro de casa. Conforme se aproximava o barulho aumentava até que chegou em um dos cômodos no fundo da casa.

Assim que adentrou, viu Alissa que socava um saco de pancadas. Sua expressão deixava claro sua raiva que quase transbordava. Ele relaxou ao saber que sua preocupação foi felizmente em vão.

Alissa ainda não o notou, ela estava concentrada, ou muito distraída. Com o cabelo preso em um rabo de cavalo, ela alternava entre socos e chutes um mais forte que o outro. Sua postura continuava ruim, ela não levava muito jeito para artes marciais, porém aqueles socos eram tão fortes que ele sentiu dó da pessoa que um dia os recebesse.

Aquela era a área de treinamento, ele constantemente treinava aqui junto do seu pai.

— Você tem que chutar mais alto — disse ele pegando a de surpresa.

— Desde de quando você está aí? — Exclamou logo após levar o susto. — O que você quer?

— Nada, eu ouvi os barulhos e vim ver do que se tratava. Então o que o coitadinho do saco de pancadas fez pra você?

— Só estou treinando — cochichou.

— Enquanto não consertar sua postura esse seu treino não vai adiantar de nada.

Ela levantou o dedo para reclamar, mas sabendo que estava errada, se calou depressa. Ele achou aquilo engraçado. Os dois riram.

— Está bem, quer me dar uma aula, professor?

— Você parece mesmo estar precisando. — Adentrou o cômodo de vez.

— Você está engraçadinho hoje, pensei que fosse alguém mais sério.

— Certo. — Ele fechou a cara. — Melhorou? — Os dois soltaram outra risada descontraída.

Os dois se prepararam. Ambos estavam em posições similares, poucas diferenças poderiam ser percebidas. Alissa começou com o primeiro movimento, apoiando o peso na perna esquerda ela desferiu um chute alto que foi defendido sem problemas por Kishi.

— Não deixe óbvio seu ataque, é fácil de defender assim.

— Tá, tá — resmungou, deu outro chute e depois se aproximou com mais alguns socos, todos defendidos sem nenhuma dificuldade. Ela se afastou um pouco para respirar. — Seu pai era um guerreiro do exército da Lótus Vermelha, não é?

— Por que a pergunta?

— Você parece estar utilizando uma variação do Renso, é o estilo marcial deles.

— Bem, meu pai fez parte do exército por um tempo, mas não sei muito disso. Talvez ele fosse de uma patente baixa, por isso ele não aprendeu tudo direito e me ensinou errado.

— Quanta consideração, talvez você que tenha aprendido errado.

— Eu sou um ótimo aluno-

Kishi foi interrompido quando Alissa avançou para cima dele com um soco de direita. Ele colocou os braços na frente para se defender, porém o tal soco nunca chegou, em vez disso, Alissa acertou um chute na cintura dele. Um blefe perfeito.

— Ai — reclamou.

— Se ficar distraído, fica fácil de atacar — caçoou.

— É assim então? 

Kishi partiu pra cima dela, dessa vez foi ele que a chutou. Três chutes consecutivos, o primeiro usando a sola do pé para atingir os joelhos, tirando um pouco de seu equilíbrio. O segundo no rosto, esse Alissa conseguiu se defender colocando os braços na frente em formato de cruz. Já o terceiro atingiu a barriga da garota e a fez dar alguns passos para trás.

Sem a deixar respirar. Ele a atacou de novo com um soco. Alissa foi rápida e se abaixou esquivando do ataque, ao se levantar tentou dar um gancho de direita mirando no queixo de Kishi, golpe esse que quase o atingiu.

Ela começou a dar vários socos na direção do rosto dele, Kishi colocou os braços na frente e se defendeu de todos. A cada soco que o atingia ela ficava mais forte, mais rápida. Ele teve que dar passos para trás tentando pegar distância, mas ela o acompanhava, sem parar.

Foi então que os socos ficaram estranhos, desalinhados, mas ainda com força. Kishi notou aquilo e viu uma boa oportunidade para contra atacar.

Mas não o fez.

Ele simplesmente ficou ali se defendendo dos golpes que perdiam velocidade. 

Alissa começou a chorar.

Ela parou de atacar.

— Desculpa. Vamos dar um tempo por um minuto — disse o dando as costas enquanto limpava o rosto. Ela sentou encostada na parede.

Kishi não soube o que dizer a princípio.

Se aproximando a passos lentos, ele se sentou ao lado dela. Alissa encolheu as pernas, apoiou os braços nos ombros e a cabeça nos braços. O silêncio constrangedor se estabeleceu, ninguém quis falar nada.

...

Kishi abriu a boca... E a fechou. Ficando quieto.

...

— Eu-

— Eu sinto saudade dele — interrompeu ela, Kishi a escutou sem contestar. — Minha mãe morreu durante o parto, então eu sempre tive a companhia dele. 

— ...

— Não sei o que fazer. Ele sempre me falou que eu deveria parar de me meter em encrencas, mas eu nunca dei ouvidos — soluçou —, ele morreu... Ele não está aqui por minha culpa.

— A culpa não é sua.

— Então é de quem? Quem foi que te arrastou para tudo isso? 

— Você não me arrastou, eu fui por que quis.

— Mas-

— Eu pedi a memória. — Dessa vez, ele que a interrompeu. — E nunca soube por que, mas faltava algo, eu esqueci do meu próprio pai e apenas o reconheci por pura sorte. Eu esqueci quem era meu melhor amigo, eu esqueci de tudo. 

— …. Onde quer chegar?

— Eu matei pessoas. Muitas pessoas, e não importa o quanto eu queira, não posso voltar atrás. Então quando eu me lembro dos rostos eu choro, eu sinto a dor e depois... Eu me levanto e continuo. Seu pai morreu, então chore. Grite, faça a algazarra que quiser. Depois disso, limpe o rosto e siga em frente.

— Você fala como se fosse fácil.

— Não é. Eu sei. 

— Sabe? Seu pai está ali na hora que você quiser, ele vai estar sempre ao seu lado já eu...

— Minha vila natal era Hinahina.

Alissa parou por um momento e olhou surpresa.    

— Hinahina... Você quer dizer...

— A vila que foi atacada por Jólder há 20 anos atrás. Todos morreram com exceção de mim.

— Mas o seu pai...

— Edo Sanju era um soldado na época, ele me acolheu e me adotou. Foi difícil me adaptar, eu constantemente reclamava e ficava triste. Às vezes me lembro dos rostos da minha mãe e do meu pai borrado, não faço ideia de como eles são.

— Eu sinto muito… Eu não sabia...

— Não há porque se desculpar. Já é passado. 

— O senhor Edo é muito gentil, eu gosto dele. Vocês brigaram hoje cedo, sobre o que era?

— Eu o desrespeitei. Me tornei um criminoso e assassino, o que eu tinha na cabeça...

— Nada, aí dentro está completamente vazio — ironizou.

Dois soltaram uma risada sem graça. Era costume de ambos tentarem amenizar a situação de forma cômica.

— O senhor Edo foi comprar peixe para nós, ele disse que vai fazer peixe grelhado. 

— Peixe grelhado?! Aquele peixe é muito bom, depois de aquecer, ele tempera com...

Ela olhou para Kishi que estava extremamente animado, peixe grelhado era sua comida favorita e ninguém sabia fazer aquele peixe como seu pai, só de pensar no peixe ele babava um pouco de canto. Alissa riu dele.

Ele limpou a baba que escorria da boca e voltou a encostar as costas na parede. Ficou sério em silêncio.

Ronc.

A barriga de Kishi roncou.

Alissa tentou segurar a risada, mas não aguentou. Ela começou a gargalhar de maneira tão descontrolada que até a sua própria barriga doeu. Ele ficou vermelho e não soube onde colocar o rosto.

De uma maneira tímida e atrapalhada, eles fortaleceram sua relação.


Algumas horas depois.

Edo finalmente voltou para casa após ficar cerca de uma hora fora. Ele teve bastante dificuldade em escolher o peixe certo, afinal seu filho havia retornado para casa, então deveria ser o melhor peixe de todos.

Assim que empurrou a porta para o lado ele viu Alissa e Kishi que o esperavam na sala de recepção.

— Estão com fome? Eu trouxe peixe.

— Nós estamos, senhor Sanju, mas vamos esperar um pouco. 

— Hm?  — indagou — Por que?

— Pai — disse com o rosto rígido —, Eu me lembrei de uma coisa.

— Se lembrou? Do quê?

— De como eu consegui esse Noredan.



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