Vida em Folhas Brasileira

Autor(a): Lucas Porto


Volume 1 – Arco 1

Capítulo 3

 

Aquela noite se mostrava turbulenta, e mesmo com a insistência das horas, a noite teimosa se recusava a acabar. Kishi percebeu isso enquanto se esgueirava por caminhos confusos seguindo as orientações de Alissa. A garota, no entanto, não se preocupava com detalhes tão insignificantes como às horas, sua atenção está totalmente focada em observar as ruas para ter certeza que não estão sendo seguidos. 

O vento assobiou quando os dois saíram de um beco e adentraram outro, passando por outra rua vazia. Ele parou bruscamente e olhou para trás, a solidão da rua o deixava incomodado. Alissa notou o jeito preocupado dele e parou de andar, voltou na direção oposta e olhou para rua da mesma forma que ele, com um rosto sério e fechando as sobrancelhas.

— O que foi? 

— Você sabe que horas são? 

— O quê?! — Ela se xingou mentalmente quando sua voz mudou para um tom mais alto, voltou a cochichar. — Por que isso seria importante agora? 

— É comum as pessoas não andarem à noite, mas não vimos nenhum guarda até agora. E minutos antes, várias pessoas estavam no torneio, não é possível que toda a cidade esteja lá. 

— Aqui é uma região mais perigosa. — explicou um pouco irritada. — Os guardas não andam por aí pois tem medo de serem abordados por soldados da Lótus, e as pessoas têm medo de serem abordadas pelos dois. 

— Eles são guardas! É o trabalho deles. — Ela deu um tapa em suas costas por ter falado alto, ele se desculpou envergonhado. 

— As patentes são diferentes, não há como medir as capacidades dos guardas com os soldados mais rasos da Lótus. Agora para de divagar e vamos andando. 

Dito e feito. Kishi e Alissa continuaram a andar e dessa vez não se deixaram ser levados por pensamentos tão insignificantes como as estranhas ruas vazias. Depois de um tempo, eles finalmente saíram daquela região suja e desagradável e seguiram caminho por casas cada vez maiores e belas. 

Eles pararam em frente a uma enorme residência, com paredes brancas e um piso de madeira mais escuro, aquela casa chamaria a atenção de qualquer um que passasse por ali. A arquitetura era complexa e Kishi não sabia como nomeá-la, mas era óbvio que aquilo era inspirado nas civilizações antigas, talvez antes mesmo da reformulação. Se sua memória não estivesse enganada, Tsju tinha um grande apreço por uma das civilizações pré-reformulação, era chamada de "Japão", por mais que tivesse um apelido infame, Artéria se beneficiou bastante dos gostos de seu descobridor. 

Conforme foram se aproximando da entrada, eles passaram em frente a uma árvore com tons fortes. Kishi automaticamente percebeu que o piso de madeira é o mesmo da árvore. Novamente uma sensação de familiaridade, mesmo sem saber o porquê. 

— É uma casa bonita. 

— Sim, essa Minka¹ estava por um bom preço, meu pai não perdeu tempo em comprá-la. 

Alissa tomou a iniciativa e adentrou a casa, empurrou a porta de shõji² e deixou seus sapatos no gekan³. Kishi entrou logo depois e fechou a porta. Percebeu que além de bonita do lado de fora, a casa em sua parte interna é absurdamente espaçosa, se sentiu até um pouco incomodado, não era sempre que ele entrava em um local tão... Diferente. Antes que pudesse fazer o próximo movimento, uma pessoa surgiu na frente de Alissa, a pegando de surpresa. 

Um senhor. De cabelos grisalhos, rosto enrugado, uma barba a ser feita e trajando uma espécie de roupão vermelho, ele fez uma cara de desaprovação para a garota que assim como qualquer criança, ficou com medo da bronca que estaria vindo a uma velocidade anormal. 

O ar entrou em seus velhos pulmões e saiu de forma sonora, acertando Alissa como um pesado martelo. 

— Alissa! — exclamou, em seguida fez uma pausa para manter a compostura. — Preciso sempre te dizer para não sair de casa à noite, mas você nunca me ouve, sua teimosia está começando a passar dos limites! Onde você foi dessa vez e quem é ele? Não acha que está muito tarde para trazer rapazes até em casa? 

— Pai! — Sua voz se fragilizou um pouco, envergonhada com a acusação do pai. — Ele é um lutador habilidoso que também utiliza o renso, ele vai ser o nosso guarda costas para sairmos da cidade. 

— Renso? — O pai de Alissa deu uma rápida olhada no rapaz, visando apenas pela sua aparência, não havia diferenças entre ele e um vagabundo de rua qualquer. — Não me parece grande coisa. Além do mais já conversamos, não iremos sair da cidade. 

— Agora você está sendo teimoso pai! Ficar aqui é muito perigoso, eles estão até mandando um general para as buscas, se demorarmos mais talvez não sairemos vivos-

— Alissa! — Outro martelo atingiu a pobre garota. — Eu não sairei da minha casa por um bando de ninjas estúpidos! O que acha que sua mãe diria se estivesse vendo seu comportamento infantil agora? 

A discussão tomou caminhos tempestuosos, Kishi se sentiu como uma pulga em uma briga de gatos. Cogitou sair dali e esperar do lado de fora, infelizmente sua mente teve outros planos. Aquela casa, aquela discussão, a árvore lá fora, até mesmo a pulseira que ele estava usando naquele momento. Todos esses pequenos detalhes fisgaram a sua mente inquieta de e lhe puxaram para tempos mais longínquos. 

Tempos em que as coisas não eram tão complicadas. 

 

 

Um pequeno Kishi caminhava junto com o homem velho que recorrentemente surgia em suas memórias. O garoto empolgado perguntava constantemente onde os dois iriam, em sua mente pensava em inúmeras possibilidades, mas sempre retornava a uma; ele iria ganhar uma arma especial.

Cortar montanhas e rasgar os céus sempre foi uma vontade gritante dentro de Kishi. Ser aplaudido por multidões eufóricas que gritavam: "Kishi é o melhor! Kishi é o mais forte!" deixava seu pequeno coração embriagado de alegria. Mesmo que às vezes ele duvidasse de suas próprias capacidades, ele tinha certeza que um dia seria famoso por conta de seus poderes inimagináveis. 

O sorriso no rosto do velho era perceptível até pelos pássaros que voavam no local. Curiosos, dois pardais seguiram a dupla que se aproximava de uma casa. Pousando em um galho de uma árvore que estava em frente a casa, eles observaram toda a cena. 

— Chegamos Kishi. 

O pequeno Kishi olhou para frente e viu uma bela e gigantesca casa. De paredes brancas e um piso escuro de madeira, a casa era graciosa de uma maneira que não cabia em palavras. Em sua frente, um homem tão velho quanto o que o acompanhava regava algumas flores.

De roupas relaxadas e postura cansada, o outro velho transmitia uma aura calma e bondosa. Quando ele finalmente notou duas figuras o olhando, forçando um pouco a vista ele reconheceu seu grande e velho amigo. 

— Oh! Edo! — disse o velho que largou o regador e caminhou a passos lentos até seu amigo. — A quanto tempo! Como tens passado? Hã? Quem é esse pequenino?

—  Eu estou muito bem Mikatasi. Você continua com uma saúde ótima como sempre, esse aqui é meu filho...

— Eu sou Kishi! O homem mais forte do mundo! — completou a fala de seu pai. Aprisionando o ar no peito para parecer mais durão, Kishi se apresentava com entusiasmo. A atitude dele fez um sorriso abrir no rosto de Mikatasi.

— O quê?! O homem mais forte do mundo?? Por que não me avisou que estava trazendo um guerreiro tão importante até minha casa Edo? — Mikatasi realizava expressões exageradas em seu rosto. Como resposta, Kishi lhe dava várias risadas e sorrisos que enchiam o coração de Mikatasi de alegria.

— Então você é o Senhor Mikatasi. Meu pai me falou muito do senhor, ele disse que você é muito engraçado e um bobalhão!

— Kishi! Mais respeito.

— Mas ser bobalhão não é legal?

— Então você ouviu falar de mim. Então seu pai também te disse como eu sou encantador com as mulheres. E claro, ele deve ter te contado das minhas incríveis habilidades com a espada, um samurai de respeito! O segundo mais forte! — Assim como a criança, o senhor Mikatasi estufou o peito fazendo mais um sorriso escapar e sair correndo da boca de Kishi.

— Segundo? Quem é o primeiro?

— Você é claro — explicou, e com os olhos brilhando, Kishi sentiu sua alma se enchendo de felicidade por ter sido elogiado como "o homem mais forte do mundo" por mais que ele mesmo tenha feito esta declaração.

A atenção do garoto foi cortada quando alguém abriu a porta shõji a empurrando para o lado. De pele pálida e cabelos brancos num tom quase doentio, um garoto da mesma idade de Kishi abriu a porta para ver o que acontecia em frente a sua casa. Os pássaros o reconheceram – o filho do senhor Mikatasi, a criança – e ambos voaram na direção do garoto recém chegado.

Um pássaro pousou aos seus pés, e começou a bicar o chão, este era o mais tímido, já o outro mais esvoaçado, pousou com calma no ombro da criança que nem pareceu notar. Ele já havia se acostumado a estar rodeado de animais. Em seus olhos de açúcar apenas cabia a curiosidade de saber quem era aquela outra criança que o encarava.

Kishi se sentiu muito alegre sem um motivo aparente. Aquele garoto foi a primeira criança que ele viu na cidade desde que se mudou. Seu pai nunca o deixou sair muito, dizia que ainda estava muito perigoso, mas nas últimas semanas eles andavam um pouco, nunca muito longe de casa, apenas o suficiente para esticar as pernas. Hoje foi a primeira vez que Kishi de fato se distanciou de sua residência. Explorar de fato valia a pena.

Abandonou os dois adultos e correu até a criança. Quase pisou em cima do pássaro tímido que de medo bateu suas asas voando para longe. O garoto se surpreendeu com a atitude inesperada de Kishi e timidamente deu um passo para trás.

— Oiii! — Ele ergueu o braço esquerdo e o balançou como em um aceno, aquilo não fez sentido na cabeça do garoto, se ele estava tão perto, por que agir como se estivesse tão longe? — Eu sou o Kishi e você?

— Olá... — gaguejou sem abrir muito a boca, apenas o suficiente para cumprimentá-lo com uma voz fraca.

— Ele é seu passarinho de estimação? — questionou com olhos brilhando, seria aquela criança de cabelos brancos um encantador de aves? Parecia tão divertido. Em sua mente ele perguntava se seu pai compraria uma ave para ele caso pedisse.

— Ah, não... Eu alimento ele... Às vezes... Eu sou o Sekiro! Prazer! — Ele ergueu o braço direito e imitou o aceno longe–perto de Kishi. Como resposta, recebeu um sorriso.

— Você é um bobalhão! — O elogiou de Kishi não foi muito bem recebido por Sekiro que ficou surpreso com a ofensa. Mas uma ofensa tão doce e com um sorriso bobo o confundiu por instantes, lhe deixando quieto e imóvel. — Você está bem? E por que você tá usando uma pulseira? Você é uma menina? Um Garoto–Menina!

— Eu não sou menina! — Kishi ficou com medo quando viu a cara de irritado de Sekiro, ele se sentiu meio mal por ofendê-lo. — Essa pulseira é pra trazer sorte.

— Desculpa...

— Tá desculpado...

— ...

— ...

— Ei.

— Oi.

— Quer ser meu amigo?

— Quero! — As duas crianças comemoraram em alegria e seus pais os olhando, se lembraram de quando se conheceram a muito tempo atrás.

 

 

Aquela lembrança doce de seu melhor amigo fez com que Kishi soltasse um sorriso discreto. Alissa e seu pai ainda brigavam, ele nem prestava mais atenção. Sua mente se concentrava na coincidência daquele local, aquela foi a casa em que ele e seu amigo se conheceram.

Naquela casa, memórias doces foram construídas. Flash rápidos passaram na frente de Kishi. Da vez em que os dois lutaram com espadas de madeira, que na verdade eram simples galhos, e fingiram ser piratas. Da vez em que os dois roubaram ovos das galinhas da senhorita Hanber, seus pais lhe deram uma baita bronca naquele dia.

Houve também a vez em que...

A mente de Kishi parou.

Abalado, Kishi sem perguntar passou por Alissa e seu pai que ficaram surpresos com a ação inesperada. Conhecendo a casa como a palma de sua mão, Kishi andou em meio aos cômodos e parou em frente uma parede em um cômodo grande e vazio. Ainda estava ali.

Uma mancha, que sobreviveu ao passar do tempo e nunca foi apagada. Lágrimas saltaram de seus olhos quando ele confirmou suas suspeitas.

Não era uma memória falsa.

Sekiro... morreu nesta casa.

Kishi se lembrou perfeitamente. Naquele dia, ele e seu amigo corriam pela casa sem um motivo aparente, apenas porque era divertido. A diversão acabou no segundo em que ele viu seu amigo parar, apoiado na parede tendo algum problema para respirar. Quando Kishi se aproximou e tocou no ombro dele, Sekiro vomitou uma gosma verde e pegajosa que atingiu a parede em sua frente respingando no chão. Sekiro desmaiou em seguida.

Kishi arregalou os olhos e colocou a mão no peito em cima do coração que batia numa velocidade anormal. Era como reviver um pesadelo. Alissa foi até onde ele estava e o viu encarando aquela mancha com o pavor estampado em seu rosto. Kishi não a notou, pois logo mais detalhes voltaram junto a mais uma terrível memória.

De roupas pretas e segurando firmemente a mão de seu pai. Ele via o funeral de seu amigo. Tudo estava tão preto, e as poucas cores que um dia alegraram sua vida se tornaram pontos brancos sem quaisquer distinções entre si. Não foi aquela a primeira vez que Kishi se encontrou com a morte de um ente querido, mas com certeza, aquela tinha sido sua pior experiência até então.

Naquele mesmo dia, após enterrar o corpo do filho. O Senhor Makatosi tirou sua própria vida.

Um toque.

Suave.

Foi como o pouso de um pequeno pardal em seu ombro. Kishi moveu sua cabeça com cuidado, e viu que na verdade se tratava da mão de Alissa. Ela estava surpresa em vê-lo chorando, algo havia passado despercebido por ela, mesmo sem muita certeza, ela decidiu tentar ao menos descobrir o porquê de suas lágrimas.

— O que houve? — Um silêncio foi ouvido como resposta. Limpando as gotas de água que saiam do seu olho ele recobrou a postura.

— Nada... Apenas me recordei de algumas memórias do antigo proprietário dessa casa.

— Você fala do Mestre Makatosi... — indagou o pai de Alissa, surpreendendo Kishi.

— Você... O conheceu?

— Sim. Mestre Makatosi foi meu chefe de divisão quando eu era um recruta na Lótus vermelha, durante muito tempo ele serviu como general e dizia que quando se aposentar viria morar aqui em Revin junto com a esposa e o filho. Você sabe o que houve com ele? Faz anos que venho tentando o encontrar, se tiver alguma informação-

— Ele morreu — interrompeu. — Já fazem 15 anos. Eu sinto muito.

— Eu entendo.

— Alissa havia feito um acordo comigo. — Ela prestou a atenção junto com seu pai nas palavras de Kishi. — Em troca de uma escolta para você ela me daria algumas informações sobre a cidade, eu estou procurando uma pessoa.

— Infelizmente terei que dispensar seus serviços.

— O que! Mas pai-

— Calada Alissa — ordenou com um olhar sério e voltou a encarar o rapaz. — Como bem sabe a Lótus Negra se desvinculou do rei e agora age como um grupo próprio contra a coroa. Eu como um antigo capitão da Lótus Vermelha tenho estado na mira deles. Minha filha acredita que eu esteja correndo perigo, mas está profundamente enganada. Eu nunca abaixaria minha cabeça para moleques como Hakuro e seus ninjas patifes.

— Nesse caso, acredito que nosso acordo acaba aqui.

— Espere um pouco! Pai por favor!

— Alissa, seu pai é um homem orgulhoso. Eu não posso obrigá-lo a fazer algo que ele não queira. Eu realmente sinto muito.

Sem se despedir, ele deu as costas a Alissa que rangeu os dentes de raiva. Ela parecia ser a única ali que sabia o quão perigosos os ninjas da Lótus Negra podiam ser. Mas ninguém a escutava. Kishi se sentiu mal por não poder ajudá-la, mas não demonstrou. Enfrentar um homem orgulhoso era uma tarefa difícil e Kishi não queria se desgastar, ele tinha seus próprios problemas para resolver.

Assim que ele passou do lado do pai de Alissa, a corda do destino que ligava todos ali cedeu por um momento.

Predestinado ou não, a corda negou-se a arrebentar. Negando a dizer adeus.

Kishi notou algo entrando pela janela.

Uma explosão ocorreu.



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