Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.

Revisão: Dante


Volume 1

Capítulo 66: Curiosa e observadora

Dentro da câmara, Xiao Ning começou os preparativos. Antes de mais nada, acendeu as duas lâmpadas a óleo que se encontravam pregadas uma em cada extremidade, próximas às janelas. Logo anoiteceria e desta vez não teria o auxílio de ingredientes brilhantes.

A Composição Alquímica que faria daqui algum tempo não demandaria de um grande empenho de sua Energia Espiritual; era bastante simplória em sua complexidade, tanto em execução quanto em preparação. Os ingredientes que usaria seriam as frutas da Erva Bútutu, cujo nome se resumia a Bútu; e água. A única coisa que de fato demandaria de alguma paciência era o tempo, pois se tratava de uma composição demorada.

Enquanto aguardava os objetos solicitados, preocupou-se em arrumar o recinto de maneira adequada. Mais especificamente falando; seria necessário mudar Genbu de local.

Diferentes Composições Alquímicas exigem diferentes métodos de preparo. Existem aquelas que se resumem na ordem de colocar os ingredientes, outras, no entanto, exigem certos arranjos e condições para serem executadas. Um bom exemplo disso é a relação do sol e da lua com determinados conjuntos de insumos.

Nem todas fazem uso obrigatório do clima para benefício próprio, mas é fato que, certas constituições requerem ambientação e até mesmo horas fixas. Algumas composições só podem ser realizadas durante o dia, ao passo que outras precisam da noite para serem concebidas. Existem até mesmo aquelas cuja criação solicita um ambiente gelado, quente, tempestuoso; as variações são inumeráveis e podem se estender para qualquer lado.

É claro, existe um método específico de contornar o obstáculo oferecido por determinadas composições, como era o caso da Pílula da Borboleta Monarca. Em resumo, seria necessário a adição de um ingrediente capaz de suprir a demanda exigida, os assim chamados Agentes Incorporados. Mas para a que seria feita daqui algum tempo, não existia nada adequado para dispensar a influência do ambiente.

No caso daquela que Xiao Ning faria logo em seguida, seria necessário expô-la a um raio de lua; apenas uma nesga de luz já bastaria, pois como já fora mencionado, era bastante simples em sua concepção. Por sorte não precisaria ser uma radiação oriunda de uma lua cheia ou algo do tipo. Apenas ser noite já atenderia ao requisito.

No entanto, ainda assim, precisaria estar exposta diretamente sob a luz do luar. Dessa forma, Xiao Ning começou a mover o gigante Caldeirão Encantado em direção a janela cuja posição se encontrava mais próxima do leste.

Quando tentou mudar Genbu de posição, as tábuas que compunham o assoalho rangeram e estalaram, conforme o chão tremeu e vibrou, inseguro da própria estabilidade. Isso obrigou Xiao Ning a desistir da ideia de sair arrastando o pesado utensílio até a localização adequada.

Ei, cuidado, senão você vai quebrar a sala de treino da minha mãe! ― exasperou Xiao Shui, que estava parada sob o portal de entrada.

― Então pare de reclamar e venha aqui me ajudar. ― retorquiu Xiao Ning. Desde que eles haviam chegado, ela estava fixada no mesmo lugar, apenas assistindo-o arrumar as coisas.

Porém, diante o pedido dele, Xiao Shui hesitou. Ela olhou para o lado de dentro com um olhar vacilante. Após alguns segundos de profunda hesitação, balançou a perna, como se estivesse iniciando um movimento, mas voltou atrás, recuando um passo.

― Qual o problema? ― indagou Xiao Ning, franzindo o cenho.

― Não, é só que... ― balbuciou, com uma voz fraca. ― Eu não entro aqui desde que... minha mãe se foi.

Quando seu pai concedeu a Xiao Ning o direito de usar a sala que sua falecida mãe usava para praticar e cultivar, Xiao Shui protestou muito sobre a decisão. Mesmo esse sendo um infeliz acontecimento do passado, ela, na ocasião, sentiu-se bastante ofendida e até violada, ao saber que outra pessoa estava usando o lugar no qual sua mãe passou longas horas. E embora já tivesse aceitado o ocorrido, ainda não conseguia adentrar naquela câmara de lembranças sem ser atormentada por fantasmas.

― Então sua mãe já morreu... meus pêsames. ― desejou Xiao Ning, que não sabia do ocorrido, apesar de achar estranho nunca ter encontrado com a mãe de Xiao Shui durante todo esse tempo que ficou de visita em sua casa. Meio sem jeito, coçando a cabeça, ele acrescentou. ― Faz tanto tempo que eu vi meu pai pela última vez, que nem mesmo me lembro do rosto dele direito...

― Eu ouvi do meu pai. ― comentou Xiao Shui, em um tom solidário. ― Eu sinto muito.

― Não foi isso que eu quis dizer. ― argumentou Xiao Ning. ― Estou falando que, meu pai morreu quando eu era jovem e depois de cinco mil anos fica um pouco difícil de se lembrar de coisas da infância. Não sei pelo que você está passando, então, se não quiser entrar, não precisa. Eu consigo arrumar isso sozinho.

Apesar da estranha alegação de cinco mil anos e da tentativa de preservar seus sentimentos, Xiao Shui ainda hesitou. Via-se pela expressão em seu rosto que estava relutante tanto em partir, quanto em entrar. Podia parecer algo bobo de sua parte, mas o simples pensamento de entrar ali, apertava seu coração de uma maneira angustiante e causava sentimentos e arrepios que se espalhavam por todo o corpo, fazendo seu estômago se encolher em um canto, como se uma geada o oprimisse, obrigando-o a se retrair.

Por outro lado, era algo que precisava superar. Para ela, a família era a coisa mais importante que existia e a perda da mãe foi, e sempre será, um evento do qual jamais se recuperará por completo. Mas, ainda assim, precisava dar um passo em frente e aprender a conviver com o ocorrido; evitar aquele lugar, não traria qualquer benefício. Por sorte, ajudar Xiao Ning poderia servir de desculpa para ao menos tentar.

― Se eu não fizer nada, você irá quebrar a sala da minha mãe. ― resmungou Xiao Shui, se fazendo de forte. E por fim, após respirar fundo, entrou...

No instante em que pisou no assoalho, sentiu uma sensação inexplicável percorrer seu corpo, atravessando da ponta do pé até o fio de cabelo mais distante. Foi algo que fez sua pele arrepiar e suas pernas vacilarem. Nada tinha a ver com alívio ou coisa do tipo, estava mais para um profundo senso de hesitação, medo e insegurança.

Conforme sentia suas pernas perderem a força, respirou fundo, tentando se controlar. Era um passo que nunca havia se atrevido a dar, mas não recuaria agora; não podia, pois se fizesse, jamais voltaria.

― Bem, já que você vai me ajudar, então segure deste lado e vamos levar juntos até aquela janela. ― instruiu Xiao Ning, segurando o Caldeirão Encantado de um lado, esperando para Xiao Shui fazer o mesmo.

O tolo sequer percebeu o quão insegura estava a outra parte. Entretanto, Xiao Shui se superou ao se forçar a avançar, obrigando-se a manter os pensamentos no dever e não em assuntos irrecuperáveis.

Em um esforço conjunto, os dois ergueram Genbu do chão e tomando extremo cuidado para não quebrar as tábuas envelhecidas, carregaram-no sem pressa até o local desejado e repousaram-no ― como foi exigido por Xiao Shui ― com bastante carinho no chão, permitindo a madeira carcomida se acostumar ao peso.

Não foi muito tempo depois de terminarem de posicionar o Caldeirão Encantado, Camila chegou à porta. Estava sozinha e trazia em seus braços dois baldes de madeira ― um sobre o outro ―, de tamanhos distintos. Os itens restantes, como a tesoura e a jarra para colocar água, estavam dentro do balde superior, que era também o menor.

Ah, você encontrou tudo o que eu pedi. Muito obrigado. ― agradeceu Xiao Ning, rendendo Camila do fardo, ao mesmo tempo em que espiava o conteúdo.

― Eu não consegui encontrar baldes do mesmo tamanho que estivessem livres e... ― a jovem empregada desviou os olhos para o caldeirão que havia sido mudado de lugar ― eu trouxe duas tesouras... ― vacilou brevemente, antes de sugerir. ― Achei que poderia precisar de ajuda.

― Bem pensado, Camila. Assim eu vou poder ajudá-lo. ― manifestou-se Xiao Shui, que se encontrava no fundo da câmara.

Quando ouviu a voz da filha de seu chefe, a jovem empregada pareceu se assustar. Não tinha se dado conta de sua presença ali.

― É claro, Srta. Xiao Shui. ― balbuciou Camila, com uma voz vacilante, parecendo desapontada.

Xiao Ning caminhou para próximo de Genbu e começou a tirar os utensílios de dentro do balde menor, colocando-os no chão.

Enquanto isso, Camila permaneceu na porta, como se estivesse esperando por algo ou tomando coragem para dizer alguma coisa. A todo momento, seus olhos, muito discretos, desviavam-se para o Caldeirão Encantado, demonstrando um profundo interesse. Como se fosse algo do qual não deveria desejar, mas não conseguia deixar de cobiçar, ela estudava os contornos de Genbu e no instante seguinte, percebendo a própria grosseria, desviava o olhar. Porém, a tentação parecia irresistível, pois logo voltava a encarar a peça de metal, apoiada sobre o corpo de uma tartaruga.

― Aconteceu alguma coisa? ― questionou Xiao Shui, percebendo a indecisão da empregada em partir.

― Eu só... estava pensando se o Mestre Xiao Ning iria precisar de ajuda para mais alguma coisa.

― Não, isso já é o sufic... ― Xiao Ning estava para negar a boa vontade de Camila, afinal, já possuía tudo do que precisava. No entanto, quando percebeu que os olhos dela não estavam focados nele e sim em Genbu, abriu um sorriso discreto, pois conhecia aquele tipo de olhar abrasador e cobiçoso.

Durante sua vida passada, quando estava aprendendo Alquimia, tinha aquele mesmo olhar de interesse ou pelo menos achava que tinha, dado a ausência de espelhos em sua jornada de fuga ― uma curiosidade irreparável, que o impulsionava a continuar estudando e procurando. Embora não gostasse de estudar, lia livros colossais, contendo centenas e, até mesmo, milhares de páginas; os pergaminhos analisados por ele, desenrolavam-se por dezenas de metros, abrangendo os mais diversos assuntos e mistérios.

Com o passar do tempo, em virtude de querer aprimorar suas habilidades de Alquimista, seus interesses se ramificaram, abarcando assuntos do tipo Herbalismo, medicina, estudo da Energia Espiritual, entre muitos outros. E tudo era movido pela curiosidade e a paixão, curiosidade de saber como determinado composto agiria se submetido a tal ação. O que aconteceria se misturasse tal Erva com o extrato daquilo.

Foi o desejo de saber que fez Xiao Ning continuar avançando, procurando, aprimorando-se, e, agora, conseguia ver esse mesmo desejo e curiosidade brilhar nos olhos de Camila, demonstrando uma fome difícil de saciar e que pode até mesmo roubar o sono.

― Bem, se você não estiver ocupada, poderia me ajudar com os ingredientes. Tem muita coisa para fazer. ― sugeriu ele, convidando-a a participar da Composição Alquímica que ocorreria daqui a pouco.

― É claro, eu estou livre e posso ajudar no que for preciso. ― Camila não esperou por um segundo convite, quando foi entrando e se aproximando de Genbu. Não sabia o que iria fazer, mas isso não importava.

― Achei que eu iria ajudar. ― protestou Xiao Shui, parecendo insatisfeita. Não tinha muito interesse em Alquimia; achava fascinante, isso era óbvio, mas sua maior curiosidade estava voltada para o resultado final. Ou seja, a evolução das Chamas da Essência.

― Você não sabe nada sobre trato de Ervas Espirituais, não é? ― contrapôs Xiao Ning. ― Ao invés de ajudar com o preparo dos ingredientes, poderia buscar um pouco de água. ― falou, passando o balde menor para ela.

Sentindo-se subestimada, Xiao Shui resmungou um pouco mais, porém aceitou a tarefa. Muito embora conhecesse a aparência e finalidade de algumas Ervas e Frutas Espirituais, era fato que não possuía grande destreza ao trabalhar com elas.

Logo que ela saiu, Xiao Ning tirou os cachos das frutas que colhera no limiar da Montanha Ancestral de Jade com a Floresta das Mil Perdições de dentro da Bolsa de Armazenamento. As Bútus formaram um amontoado considerável, para frutas tão pequenas, sobre o assoalho. Ali parecia existir centenas delas, presas umas às outras por hastes marrons.

Embora já houvessem sido colhidas há um bom tempo, as frutinhas detinham uma coloração brilhante e viva, do tipo que só se vê em um vegetal que tenha sido arrancado da terra recentemente. A casca rosada não apresentava sinais de degradação, amadurecimento precoce ou apodrecimento; continuava lustrosa e suculenta. Da mesma maneira, a haste permanecia firme, prendendo as frutas junto a si.

Em grande parte, tal preservação espantosa se devia à Bolsa de Armazenamento, que era um bom Artefato de conservação. Porém, é evidente que a Energia Espiritual contida na Bútu possuía seu papel nessa tarefa.

― O que nós vamos fazer é tirar a fruta do cacho, tomando cuidado para não danificar a casca e expor a polpa, por isso, a tesoura. ― Xiao Ning pegou um cacho do chão e começou a demonstrar o que fariam, e Camila ouviu tudo com extrema atenção. ― É preciso cortar o pedúnculo, este “braço” que liga a fruta ao caule, o mais rente possível, mas sem danificar o epicarpo (a casca), pois isso faria parte da Energia Espiritual contida no mesocarpo (polpa) ser dispersada, prejudicando a qualidade do fruto.

A jovem empregada balançou a cabeça, demonstrando compreender as instruções. Apesar de não entender os termos técnicos, entendia bem o que tinha de ser feito, pois Xiao Ning estava apontando com o dedo para as partes que precisariam ser cortadas e como deveriam ser seccionadas.

― Da mesma forma ― continuou a explicação ―, não pode deixar o pedúnculo grande demais, já que pode afetar na qualidade final da Composição Alquímica. Quanto mais próximo você conseguir cortar sem danificar o fruto, melhor. Conseguiu entender tudo?

― Eu preciso cortar bem o caule e tomar cuidado para não machucar a casca. ― recapitulou Camila, demonstrando ter compreendido.

― Ótimo, isso mesmo. ― assentiu Xiao Ning, em aprovação. ― Então vamos começar.

Xiao Ning se sentou no chão e pegou uma das tesouras. O item ao todo era independente e bem grosseiro, sem mais acessórios; composto por uma barra de ferro achatada, com um total aproximado de sessenta à cinquenta centímetros de comprimento e cinco de largura; no qual as duas extremidades haviam sido amoladas de forma a deixar as pontas afiadas e pontiagudas, semelhante a duas facas construídas no mesmo corpo. E, por fim, a barra de metal fora dobrada e retorcida, de modo a preservar as partes cortantes viradas uma para a outra.

O intermediário que havia sido curvado, servia como uma espécie de mola e ligadura entre os dois braços. Quando não estava sendo usado, o acessório permanecia aberto, e durante o uso se fazia preciso apertar as duas extremidades, de maneira que os cumes afiados se encontrem e assim, segmentando a coisa a ser cortada. Após a execução, quando o usuário tira a mão, a tesoura restaura sua posição original, conservando-se aberta.

 A tesoura em si era bastante brusca e rústica, tanto que, apesar de possuir marcas evidentes de ter sido amolada há pouco tempo, ainda demandava de um esforço considerável para cortar qualquer coisa. A mola era um pouco dura de se dobrar e caso o usuário vacilasse, voltava sozinha para a posição primeva. Entretanto, a despeito das dificuldades apresentadas, era um item de facilitação, tornando a execução de certos trabalhos repetitivos mais rápidos e práticos.

Assim sendo, sentado de pernas cruzadas, Xiao Ning começou a separar Bútu por Bútu, cortando o pedúnculo o mais próximo possível, sem ferir a casca, que por consequência empobreceria a polpa. Cada Bútu cortado era colocado de lado, sobre o assoalho mesmo.

― Quando Xiao Shui voltar, pedirei para ela lavar as frutinhas no balde com água e depois colocar no outro, que está vazio. ― comentou Xiao Ning, vendo que Camila parecia indecisa sobre onde depositar os frutos cortados. ― Por enquanto, pode deixar no chão mesmo.

E assim ela fez. Imitando Xiao Ning, sentou-se no chão e começou a empilhar as frutinhas ao lado de sua perna, tomando cuidado para não saírem rolando e fugir.

― Eu devo dizer, você é bastante animada. Não é qualquer um que está disposto a se voluntariar para fazer um trabalho tão exaustivo. Se fosse eu; e não estivesse relacionado a Alquimia, teria fugido sem pensar duas vezes. Ahahaha!

Camila olhou para a pilha contendo numerosos cachos, que por sua vez suportavam dezenas de frutinhas rosadas cada, e entendeu bem o ponto de vista de Xiao Ning. Como teriam de separar fruta por fruta, esse seria um trabalho longo e cansativo; sem falar que, a rigidez da tesoura não ajudaria nada nas horas seguidas de tarefa repetitiva, ainda mais para ela, a qual nunca cultivou e possuía a força de uma pessoa comum.

Porém, ela tinha que discordar sobre querer fugir. Pelo contrário, estava ansiosa para terminar essa parte e dar início a chamada: “Composição Alquímica”. Se lhe for permitido, acompanhará tudo de perto.

Xiao Ning já tinha conseguido separar uma dezena de frutinhas, quando algo lhe ocorreu.

Ei, Camila. ― chamou, parecendo desinteressado. ― Você já provou alguma vez dessa fruta? São deliciosas...

 


Niveis do Cultivo: Mundano; Despertar; Virtuoso; Espirituoso; Soberano do Despertar; Monarca Místico; Santo Místico; Sábio Místico; Erudito Místico.

 


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