Um Alquimista Preguiçoso Brasileira

Autor(a): Guilherme F. C.


Volume 1

Capítulo 139: O homem que nunca dorme

Mesmo após a morte do 1º Ancião Dong, a batalha dentro do território continuou. Seus aliados não sabiam que todos os líderes da rebelião haviam sucumbido para o outro lado. Porém, esse cenário logo começou a mudar, quando o 8º e a 7ª Anciã se juntaram para dominar os rebeldes remanescentes.

Desse ponto em diante, a contenda interna não durou muito. Numerosos cultivadores foram detidos e os feridos encaminhados para receber o tratamento adequado. Entretanto, aqueles ― aliados ― que ainda podiam lutar foram enviados para dar suporte na contenção das Bestas Demoníacas.

Em contrapartida, os praticantes que não tinham mais condições de continuar batalhando ― seja por estarem feridos ou não ter Energia Espiritual ― reuniram-se em bandos na frente da casa do 9º Ancião. Após descobrirem que o Patriarca e a 2ª Anciã também se mudaram para lá, todos correram para ficar mais perto de onde era seguro.

Enquanto isso, Xiao Ning estava passando por dentro da casa do tio Chang que também se encontrava mergulhada numa verdadeira bagunça, com diversos moribundos deitados nos sofás, tapetes e nos quartos vagos de hóspedes, e alguns descontrolados falando alto. Em sua mão achava-se uma garrafa de vinho pela metade. O que, muito provavelmente, justificava suas bochechas ruborizadas.

Ele entrou em um amplo corredor e avançou em direção a cozinha, onde algumas pessoas se reuniam para preparar uma boa refeição. Deu um gole na bebida e continuou andando até atravessar o cômodo e sair nos fundos da casa, de frente para a câmara que usava para fazer sua Alquimia.

Levando em consideração que Camila estava presa na cidade, não deveria haver ninguém no interior do recinto. Porém, Ning sentia com clareza a Energia Espiritual de alguém vindo dali.

Ele deu outro gole na bebida ― virando a garrafa feito um bebum imoral e babando em si mesmo. Limpou a boca com o braço e entrou na câmara.

O lugar estava escuro, mas os reflexos criados pelas luzes da casa deram forma a uma silhueta encostada num canto, tentando se esconder. Assim que entrou, o Alquimista também escutou um fungar apressado de nariz, como se estivesse tentando fingir que não sentia nenhuma tristeza.

Ah! Então é aqui que você estava se escondendo! ― grunhiu o preguiçoso cuja voz continuava firme, a despeito dos olhos brilhando. ― Tem algumas pessoas te procurando. Agora que eles conseguiram finalmente forçar as Bestas Demoníacas a mudarem de direção, esse lugar está uma confusão ainda maior.

Seu tom era descontraído e bastante amigável, mas apesar disso não recebeu nenhuma resposta. Ele estreitou os olhos, mirando a silhueta com certa desconfiança. Logo após, virou para o lado e avançou em direção a lâmpada a óleo pregada na parede.

― Eu já cuidei de seu irmão ― falou enquanto acendia a lâmpada com certa dificuldade para mexer o braço. ― Foi difícil estabilizá-lo, mas depois que a 7ª Anciã pegou o antídoto, consegui parar as convulsões. Ele sofreu alguns danos internos e ainda não acordou, mas estou confiante de que ficará bem.

Quando a luz se espalhou pelo recinto, espantando parte da escuridão, uma figura indefesa, abatida e desolada apareceu. Xiao Shui estava sentada no lugar em que o caldeirão deveria ficar, abraçando os joelhos e fungando alto. Seu rosto achava-se um tanto inchado e a região abaixo dos olhos tinha sido tomada por melancolia e angústia. Ela tentou disfarçar a tristeza enfiando a cabeça entre as pernas, mas isso não bastava para apagar sua dor.

― A situação do seu pai é um pouco mais complicada ― continuou Ning que fez uma pequena pausa, colocou o bico da garrafa nos lábios e bebeu mais um pouco. ― Eu reparei os principais danos, limpei o ferimento e fiz uma transfusão de sangue. Graças a isso ele não corre mais perigo de vida. Contudo... ― respirou fundo ― aquele maldito arrancou um belo pedaço dele. Eu me esforcei, mas não sou muito bom com cirurgias. Então, mais tarde, o doutor Wen vai fazer um enxerto.

― Ele vai precisar de um enxerto?! ― disse Shui, levantando o rosto inchado.

― O tio Chang vai ficar com uma bela cicatriz, mas vai ficar bem ― afirmou o Preguiçoso, estudando a expressão da amiga. ― As pessoas estão procurando por você. Já que é a única da casa que não está desmaiada, eles querem saber quais são os limites. Além do mais, depois de toda a tragédia de hoje, muitos estão ansiosos por uma boa notícia. Eu ouvi alguns Virtuosos falando de uma tal “Seita Elementária”.

Nesse momento, Xiao Ning pôde ver a expressão de Shui morrer e mais uma vez ser engolida pela melancolia. Ela tombou a cabeça de lado e escorou a bochecha sobre um dos joelhos.

― Sabe ― falou com demasiada amargura. ― Dizem que as pessoas que Despertam o Elemento Gelo se tornam extremamente poderosas. A vice-líder da Seita Elementária é uma dessas. Mas elas também se tornam muito frias, distantes e impassíveis. Dizem que quanto mais forte for o praticante, mais indiferente eles ficam. Os cultivadores do gelo não tem emoção, não sentem nada... não amam, nem odeiam ninguém.

Suas palavras estavam carregadas de dor e incerteza. Uma confissão daquilo que a corroía por dentro, uma confissão de seus maiores temores. E Xiao Ning sentiu cada uma dessas emoções. Foi por isso que soltou um suspiro pesado e não teve pressa em apresentar sua própria visão.

Percebendo que a amiga estava a um passo de se render às lágrimas, ele caminhou até ela e se preparou para sentar:

Ai! Ai! Ai! Quebrar costelas é uma merda! ― resmungou, tendo grande dificuldade para se abaixar. ― Ainda bem que encontrei um bom anestésico. Quer um pouco? ― Estendeu a mão e ofereceu a garrafa de vinho.

― Não!

Xiao Ning bebeu uma quantidade generosa de vinho, olhou para o alto com uma expressão contemplativa e soltou outro suspiro profundo.

― Uma vez eu conheci um homem; gente decente e dedicado à família. Era um sujeito... muito simples. Não discutia, não brigava, nunca arranjava problema, nem bebia ― ergueu a garrafa enquanto abria um meio sorriso. ― Trabalhou a vida toda em uma feira local. Um negócio que herdou do pai. Eu parava lá todas as manhãs. Adorava as maçãs e a melancia. Eram as melhores de toda a região ― gesticulou de uma maneira explicativa. ― Certo dia, ele chegou em casa... tarde da noite. Teve um problema no trabalho e ele precisou ficar para resolver. Quando chegou, seus dois filhos estavam no quarto e a esposa lavando os pratos do jantar.

Mais uma vez, o Alquimista virou a garrafa e se deixou ser inundado pelo álcool. Seu tom já não era tão animado e descompromissado como costumava ser. Havia nostalgia e remorso em sua voz.

― Então, ele foi até a cozinha, pegou uma faca e cortou a garganta da esposa que... nem mesmo imaginou que o marido pudesse ser uma ameaça. Depois, aquele simples feirante foi atrás dos filhos. O mais velho, de doze anos, teve o coração perfurado pela mesma faca que matou a mãe. O outro ficou tão apavorado que não conseguiu correr. O menino mijou nas calças e ficou lá, se tremendo até o seu pescoço ser quebrado.

Ning fez outra pausa, mas desta vez não bebeu nada. Apenas deixou os olhos vagarem rumo ao caos que habitava sua mente enquanto mirava o teto.

― Porque alguém faria isso? ― E quando parecia que ele não diria mais nada, Xiao Shui resolveu perguntar.

― Todo mundo sabia que o melhor horário para vender na feira era quando ainda tava escuro e os pássaros estavam começando a acordar. Mas aquele feirante não podia abrir a barraca tão cedo, já que precisava ajudar a esposa a preparar os filhos para a Academia de Educação e Cultura. E isso não era nada prático. Era um empecilho.

A partir desse ponto, a voz de Ning se tornou mais deprimida, como se estivesse desabafando um mal guardado no coração.

― As pessoas dizem que Despertar um Elemento é uma benção, só porque o cultivador fica um pouco mais forte e mais hábil em controlar algumas Técnicas de Combate. Contudo, eu penso diferente. Os efeitos colaterais são severos demais. Isso tá mais para uma maldição... Não! Uma maldição não, uma doença. ― Ele fez outra pausa. Olhou para Shui com pesar e completou: ― Sinto muito!

A jovem de cabelos azuis e detentora de uma personalidade forte ficou algum tempo mirando o nada com a cabeça apoiada sobre um dos joelhos. Vagarosamente, o branco de seus olhos foi consumido pela vermelhidão do desconsolo, o brilho refletido se tornou mais intenso e após alguns segundos lutando para não cair, a primeira lágrima fugiu. Mas ela logo tratou de enfiar o rosto entre as pernas e esconder a tristeza.

Nos momentos seguintes, apenas o fungar incessante e os soluços abafados puderam ser escutados. Ela estava se esforçando para não entregar as verdadeiras emoções ― apesar de ser tarde para isso. Porém a desolação a consumia, expondo a choradeira crescente.

Xiao Ning ficou de lado, tomando grandes goladas de seu vinho que estava perto do fim. Mas não havia nenhuma alegria em seu ritual de bebedeira. Ele apenas escutou e esperou.

E então, após algum tempo se entregando aos prantos, Shui, em meio aos soluços, balbuciou:

― Eu não quero deixar de amar o meu pai... Meu Gege! ― Ela não aguentou mais e debulhou-se em lágrimas. O gemido e o fungar aumentaram, até que não foi mais possível continuar se escondendo.

Quando a filha mandona do 9º Ancião levantou a cabeça, revelou um rosto molhado pelas lágrimas e assombrado pelo futuro. Ela esfregava os olhos, tentando apagar a tristeza, mas isso apenas aumentava o inchaço e a vermelhidão.

Por algum tempo, Xiao Shui não conseguiu lutar contra a angústia. Parecia que quanto mais tentava resistir, mais aos prantos se entregava. Ela chorou tanto, lamentou tanto que sua cabeça ficou pesada e então começou a doer. Foi nesse ponto que tomou uma decisão:

― Eu já sei! ― declarou, determinada. ― Nunca mais vou cultivar na minha vida! Vou parar de lutar, usar pílulas... ― respirou fundo, segurando um soluço ― e nunca mais pegarei em outra arma! Vou aprender a fazer outras coisas e encontrar um trabalho comum na cidade.

Havia tanta determinação em sua voz, tanta decisão, que Ning se sentiu culpado ao acrescentar a seguinte informação:

― Infelizmente, isso não muda muita coisa. ― Ele desejava dar uma boa notícia, concordar e falar que talvez isso pudesse funcionar. Mas sentia que, acima de tudo, seria injusto contar uma mentira. ― A partir do momento em que você Despertou um Elemento, essa... doença começou a se espalhar pelo seu corpo como uma infecção. Parar de cultivar irá retardar o processo. Contudo, não impedirá o avanço. Eu sinto muito!

Mesmo naquela sala mal iluminada foi possível ver o brilho de esperança desaparecendo do rosto da pobre garota. Seus olhos se fixaram no chão, como se as respostas para todos os problemas estivessem ali. E por um instante, pensamentos conturbados e nebulosos inebriaram sua mente, deixando-a perdida e desorientada.

― E se... e se... ― Ela não sabia o que dizer ao certo, mas ainda assim abriu a boca e balbuciou algumas palavras. De certa forma, esperava que o ritual de repetição trouxesse algum esclarecimento. E foi isso que aconteceu quando sua mente foi tomada por uma epifania. ― Você sabe muito dessas coisas, não é? conhece algo que pode me ajudar? Você é um Alquimista!

A última parte foi dita com grande entusiasmo. Era quase como se aquele fato pudesse mudar qualquer coisa, por mais impossível que pareça. Outra vez, as cores da esperança voltaram a marcar a sua face enquanto os olhos se encheram de expectativa.

― Saber mais do que algumas pessoas, não é o mesmo que saber muito. ― Foi a resposta desanimadora de Xiao Ning. ― E para ser sincero, nesse caso, nem mesmo um especialista poderia te ajudar. A verdade é que muitas pesquisas já foram realizadas(desde os tempos Antigos), mas nunca encontraram um medicamento capaz de curar, diminuir os sintomas ou retardar o avanço da doença. Eu lamen... ― O Alquimista parou de falar e divagou por um instante.

― O que foi? ― indagou Xiao Shui, ansiosa.

― Sempre teve algo que eu quis tentar, mas... não, é melhor deixar para lá. provavelmente não iria funcionar. Com certeza não iria funcionar.

― Por favor, fala! Eu faço qualquer coisa. ― Apesar do preguiçoso estar indeciso, Shui se mostrava bastante motivada.

― Eu já te falei como minha Técnica de Cultivação funciona?

― Você dorme e cultiva ― simplificou ela, ansiosa para saber o motivo da pergunta.

― Bem, isso está certo, mas ao mesmo tempo errado. ― A expressão de confusão foi instantânea no rosto de Shui. E percebendo o efeito que tinha causado, Ning logo tratou de continuar. ― A verdade é que eu nunca durmo.

E outra vez a estranheza se apoderou do rosto da jovem de cabelo azul.

― Mas você disse...

― Eu sei! ― Ning a interrompeu. ― O que eu falei é mais uma... interpretação subjetiva. Veja bem! Quando eu estou “dormindo”, na verdade eu estou num estado de coma induzido pela minha técnica. O Dorminhoco Eterno me mantém consciente cem por cento do tempo e é por isso que eu posso usar o Sentido Espiritual mesmo adormecido ou, no caso, cultivar.

― Você não parece ficar acordado o tempo todo. Até ronca! ― observou Xiao Shui.

― Isso acontece porque uma pessoa, mesmo um cultivador, não pode ficar eternamente sem dormir. Percebendo isso, aqueles que criaram essa técnica desenvolveram uma maneira de enganar a mente e o corpo do usuário durante o “sono”. Quando estou dormindo ou me preparando para dormir, eu sonho, fico sonolento e tenho dificuldades para acordar. Mas isso nada mais é do que uma ilusão criada pela minha Energia Espiritual em parceria com minha técnica. Eu preciso dessas coisas para não acabar... perdendo a sanidade.

Ning estava inspirado e havia pulado de cabeça no modo “professor”. Sua boca ficou seca, então fez uma pausa, bebericou um pouco do vinho restante e continuou.

― O meu ponto é: Técnicas de Cultivação são mais complexas do que podemos imaginar. A minha cria uma ilusão de sono para não me deixar chegar na exaustão ao mesmo tempo que me deixa acordado o tempo todo. Ela também divide uma parte da Energia que cultivo e usa para me deixar sempre revigorado, além de aumentar meu tempo de vida e rejuvenescer minhas células, entre outras coisas. E esse tipo de poder provoca mudanças, mudanças em nossos comportamentos, hábitos e organismos.

― Mas como isso pode me ajudar? ― indagou Shui não aguentando mais esperar pela conclusão.

― Quando uma pessoa passa pelo despertar de um elemento, seu corpo passa a sofrer de algo semelhante a uma doença degenerativa. As consequências e o tipo de problema desenvolvido vai depender de indivíduo para indivíduo e qual elemento despertou. Há muito tempo eu me perguntei se seria possível curar ou até mesmo retardar os efeitos sofridos por um Cultivador Elemental usando uma técnica forte o bastante para tal. Sabe, a verdade é que esse foi um devaneio que tive uma vez. Para ser sincero, nem eu acredito que isso possa funcionar...

― Eu aceito! ― afirmou Shui, que se inclinou para frente e encarou o colega cheio de expectativa. ― Qualquer coisa é melhor do que ficar sem fazer nada.

― Se está de acordo... ― para Xiao Ning, bastava ver a determinação nos olhos dela para saber que eles haviam chegado a um consenso. ― As técnicas que tem nos armazéns da Família são muito fracas para isso. Então eu irei fazer um manuscrito. No entanto, você precisa saber de algumas coisas importantes. Mesmo se tivermos êxito nesse experimento, você nunca mais poderá usar artifícios para cultivar. De agora em diante, é sem pílulas, Ervas Espirituais ou qualquer outra coisa do gênero. Do contrário, sua degradação irá acelerar.

A informação chocou Xiao Shui, deixando-a boquiaberta por alguns segundos enquanto tentava assimilar o que tinha escutado. Além de ser outra catástrofe, a notícia era como a última parte faltando em seu infortúnio, era aquela parte que torna todo o resto real.

Contudo, ela não se desesperou, pois apesar de não falar em voz alta, confiava no Alquimista.

― Eu irei me livrar de tudo que tenho. ― Deu sua palavra. Uma forma de se comprometer e ao mesmo tempo mostrar que era de confiança.

Agora com as esperanças renovadas, Xiao Shui parou de chorar e limpou o rosto usando as mãos. Apesar de não ter um pente, ela usou os dedos para arrumar o cabelo, penteando-o para trás e alisando as partes amassadas. Em seguida, respirou fundo e se levantou.

― Acho melhor ir ver como meu pai e o Gege estão ― falou, preparando-se para se despedir. Entretanto, ela não partiu de imediato, pois ainda tinha algo a dizer. ― Escuta, eu sei que sou meio chata às vezes, mas... muito obrigada por tudo. Nunca vou me esquecer disso! ― expressou seus mais sinceros sentimentos. ― E também, obrigada por cuidar do meu pai e do Gege.

― Nada demais! ― disse Ning com sua voz descompromissada. ― Eu também tentei cuidar da minha querida Ah-kum, mas eles não deixaram. Bando de chatos! ― resmungou.

― Nem posso imaginar o motivo. ― Xiao Shui estava surpreso por ele ainda não ter desistido. Mas pensando bem, não deveria ser tão surpreendente assim.

Seja como for, ela se virou e andou em direção a saída. Mas quando chegou na porta, parou e olhou para trás.

― O que aconteceu com o seu amigo da história? ― Estava curiosa para saber o desfecho.

― Eu o matei! ― Naquele momento, qualquer traço de emoção desapareceu da voz de Ning e seu rosto se tornou ainda mais frio do que um bloco de gelo.

Xiao Shui percebeu que era melhor não perguntar mais nada. Assim sendo, virou-se e partiu.

Deixado sozinho, Ning não teve pressa em se despedir do conforto oferecido pela solidão da câmara. O resto da casa se encontrava tomado pela balbúrdia, mas não era do tipo divertida, com música, dança e libertinagem. Depois de toda a confusão que marcou a noite, além do cansativo festival, era bom poder parar e respirar.

Entretanto, ele lembrou que havia firmado certos compromissos. Sem falar que o vinho estava acabando.

― Pensando bem, me pediram para voltar e ajudar com os feridos. Mas antes, outra garrafa! ― Ning se apoiou no chão e se esforçou para levantar, porém assim que ergueu a cabeça, uma tontura passageira tomou conta de seu corpo maltratado pela dor das costelas quebradas. ― Uh! ― grunhiu enquanto respirava fundo. ― Eu só bebi um tiquinho de nada e já estou assim...

― Talvez seu corpo não esteja acostumado com a bebida. ― Uma voz suave e infantil surgiu de repente, pegando o Alquimista de surpresa.

O preguiçoso ligeiramente embriagado retrocedeu um passo e no mesmo instante ficou mais alerta. Não sentiu ninguém se aproximando e ainda não sentia que havia alguém ali. Parecia que outra pessoa estava se beneficiando do Artefato Mágico de Xiao Dong, mas isso não era possível, pois o Patriarca havia o confiscado.

Alarmado, ele apertou os olhos e encarou a saída do recinto.

Parado ali, sob o portal, exibindo um sorriso inocente e a leveza de uma pluma, havia uma criança. Tratava-se de um garoto de onze anos com bochechas rosadas e rechonchudas. Tão clara era sua pele que quase era possível ver as veias, os nervos e todo o resto. Era de fato um jovem de aparência dócil, porém o que mais chamava a atenção eram seus olhos e o cabelo.

Grandes e redondos ― muito diferentes dos encontrados nas pessoas dessa região ―, semelhantes aos de Camila, mas ainda mais vibrantes. Assim eram seus olhos. O azul cristalino parecia cegar a luz e espantar a escuridão, ganhando assim um destaque significativo naquela câmara. Seu cabelo cacheado, de uma cor natural que lembrava um caramelo-dourado, era como molas sensíveis ou gavinhas, balançando ao toque mais sutil do vento.

― Que merda, pirralho! Você quase me deu um infarto. ― Agindo de uma maneira bastante dramática, Ning colocou a mão sobre o peito e arfou algumas vezes. ― Onde está sua mãe? Seu pai? ― perguntou após se acalmar.

― Não sei! ― respondeu o menino, dando de ombros. Seus olhos estavam focados no Alquimista parado a sua frente.

― Não se perdeu deles no meio dessa confusão, né? Já pediu alguém pra te ajudar? Se você ficar me encarando assim sem falar nada, não vou poder te ajudar. Quer um pouco? ― estendeu o braço, oferecendo a garrafa. ― Ajuda a concentrar.

Uhu! Hu! ― O garoto cobriu a boca com a mão e sorriu. ― Que pessoa estranha!

― É assim que trata quem quer te ajudar? ― resmungou o preguiçoso. ― Bom, se você não quer, eu bebo o resto. ― Xiao Ning colou a boca na garrafa e engoliu o resto vinho de uma só vez. Porém, quando descolou o vidro vazio dos lábios, deparou-se com algo estranho: o menino havia desaparecido.

A cena peculiar o deixou alarmado e ele passou a esquadrinhar cada canto do recinto. Porém, não havia rastro do garoto em parte alguma, nem mesmo do lado de fora.

Nesse momento, o Alquimista olhou para a garrafa por um segundo e falou:

― O que o tio Chang tem colocado nessa coisa? ― Seja como for, Ning voltou para dentro da casa em seguida, onde suas habilidades eram necessárias.

Ao mesmo tempo, do outro lado do casarão...

Após todos os quartos, salas e demais cômodos serem ocupados, os feridos passaram a ser organizados na frente da moradia. Para que essas pessoas não ficassem no chão, toalhas foram estendidas sobre a grama e o único adereço a mais foram as pequenas almofadas para apoiar a cabeça.

Sete dos dezesseis médicos integrantes dos Xiaos trabalhavam sem parar ao lado de enfermeiras e enfermeiros. Tais profissionais buscavam amenizar a dor de seus pacientes e ao mesmo tempo salvar quantas vidas possíveis, já que entre as vítimas existiam alguns em estado grave. Contudo, novos enfermos chegavam a todo instante, tornando o sucesso um objetivo complicado.

O Patriarca estava parado próximo da saída do jardim, olhando para as dezenas de familiares deitados na grama. A despeito de seu confronto contra algumas das principais forças da invasão, ele se mostrava em perfeito estado ― já havia até trocado de roupa. As lesões que sofreu não passaram de arranhões superficiais e a exaustão desapareceu depois de alguns minutos.

― O Dr. Wen voltou para a montanha? ― Quem surpreendeu o líder dos Xiaos com o questionamento repentino foi a 7ª Anciã, que decidiu parar ao seu lado e compartilhar da vista deprimente.

― Sim! ― confirmou Enlai, meneando a cabeça. ― Ele e outros pegaram alguns medicamentos e foram ajudar por lá.

― Eu fiquei sabendo que muitos morreram, incluindo um Ancião da Família Zhan ― disse Huo com um semblante severo.

― Nós aqui também sofremos muitas perdas ― alegou o Patriarca. ― Mas por sorte, temos médicos competentes para evitar que mais vidas se percam.

― Tem certeza que é uma boa ideia deixar o Ning participar disso. Da última vez em que o vi, ele estava segurando uma garrafa de vinho.

― E parece que encontrou outra. ― Enlai esticou o braço e apontou para um rapaz de rosto corado e olhar alegre que saiu de dentro da casa carregando uma garrafa quase cheia. ― Bem... O próprio Dr. Wen afirmou que ele tem capacidade para isso. E estamos precisando de mais pessoas...

Hunf! Mais tarde eu vou dar a esse garoto a bronca que merece! ― A voz rígida e a postura pouco flexível de Xiao Huo não durou por muito tempo. Embora achasse revoltante ver um menino bebendo enquanto cuida de pessoas feridas, existia um assunto de maior importância que precisava resolver. ― As coisas saíram como você planejou?

Enlai sentiu o olhar condenatório da Anciã perfurando-o, julgando suas ações como as mais condenáveis possíveis.

― Eu não sei do que está falando ― ele respondeu com a maior das naturalidades. Não existia sequer uma ruga em seu rosto que expressasse preocupação, culpa ou remorso.

― Eu confio em você e acredito no seu julgamento para escolher o melhor para a Família ― disse Xiao Huo cujo tom de voz em nada lembrava uma pessoa amigável. ― Mas existe um lado seu que eu simplesmente abomino.

Por alguns instantes, Enlai não falou nada, nem ao menos tentou contestar. Sua postura era calma, o sorriso discreto afável e suas feições não exibiam nenhum sinal de intimidação. Parecia que nenhuma resposta seria dada, pois não havia o que responder. Mas então, ele sorriu e falou:

― Como eu disse: não faço ideia do que você está falando.

Enquanto isso, em um canto qualquer do vasto Império Dourado. Localizado abaixo de uma gruta isolada, notava-se uma construção rudimentar e inacabada. O longo corredor com paredes cavernosas, que se escondia depois de um arco de pedras, não era muito diferente das passagens encontradas em minas de carvão ou de Jades Elementais.

Não seria incomum para um forasteiro azarado que se deparasse com a entrada cavernosa considerar aquele lugar abandonado, pois teias se acumulavam na entrada e as folhas mortas do bosque se amontoavam no chão.

Entretanto, uma vez dentro, o infeliz seria confrontado pela visão hedionda de dezenas de guardas sem expressão parados em posição de espera, ocupando toda a longa passagem subterrânea. E além deles, ainda era possível encontrar arandelas dispostas a cada trinta metros de distância. Sua luz alaranjada era tão fraca que quase não existia diferença entre elas e a escuridão e talvez fosse melhor ficar assim, já que o brilho emitido pelos objetos projetavam sombras sinistras nas paredes rochosas.

Nesse momento, passando entre as fileiras de guardas, foi possível ver três homens quebrando o clima tumular da caverna. Dois deles eram como as sentinelas, criaturas sem expressão, sem alma ― medonhas. O terceiro, por outro lado, estava sendo arrastado pelos braços enquanto gemia e lamuriava.

A figura do terceiro era miserável, de um homem sem esperança, maltratado e torturado por uma criatura que uma mente sã não pode alcançar. Seu cabelo, um dia longo e garboso, cultivado por uma vida para atrair mulheres, encontrava-se destruído, em partes arrancado pela raiz. Faltava-lhe dentes na boca e por isso o sangue amargo escorria pela gengiva, manchando os lábios crescidos e sujando as roupas emporcalhadas.

Aquela pessoa, tão patética e infeliz, não era ninguém menos do que o assim chamado “Coo”.

Ainda sofrendo com as consequências de enfrentar Xiao Ah-kum, Coo foi arrastado até um amplo salão subterrâneo abafado, úmido e mal iluminado. Pouco depois de cruzarem a entrada e avançarem através de um piso poroso, os guardas o soltaram de qualquer jeito e deram meia volta.

Contudo, apesar da maneira rude com que foi tratado e de ter sido deixado só, o miserável não ousou levantar a cabeça. Sem perder um único segundo, ele se sentou sobre os joelhos, colou a testa no chão e esticou os braços com as mãos voltadas para cima.

― Meu lorde! ― grunhiu, apavorado. ― Perdoe-me pelo fracasso. Eu trouxe vergonha para o seu nome.

― Como pode ter trazido vergonha ao meu nome, se fingia ser outra pessoa, Colin? ― Uma voz fria e sibilante ressoou pela caverna sem criar um único eco. Era como se as paredes temessem repetir tal som blasfemo e despertar algo hediondo. ― Mas, sim! Eu esperei pela vitória.

― Perdoe-me, meu lorde! Encontramos obstáculos inesperados e não... ― Colin engoliu em seco ― conseguimos concluir o objetivo. ― Falar era uma agonia profunda, mas ele sabia que chorar ou gaguejar palavras incompreensíveis não o ajudaria.

― Bem, não importa mais. Tao-tao conseguiu uma arma interessante na fronteira a oeste daqui.

Ainda com a cabeça pregada no chão, Colin escutou um barulho inconfundível soar ao lado de sua orelha direita e por puro impulso causado pela curiosidade, ele inclinou o rosto e espiou a causa. E foi quando viu uma cena que apesar de tão simples, era também extraordinariamente abominável.

A poucos centímetros de sua cabeça havia um par de pés descalços cujos ossos alongados dos dedos eram como formas profanas concebidas pela mente hedionda de uma criatura com senso de humor perverso. Por algum motivo bizarro, faltavam unhas em todos os dez dedos e não era por terem sido arrancados. Eles sempre foram assim, desde o começo. A pele flácida se assemelhava a de um sujeito em idade avançada, mas o tom cinza cadavérico repleto de nervos se destacando o distanciava de qualquer concepção humana.

Quando sentiu os pensamentos sendo levados para o rosto daquela abominação, despertados pela visão inominável, Colin travou os dentes, causando a si próprio uma dor quase intolerável.

― Foi uma pena o fracasso na missão, mas a culpa também foi minha por pensar que você seria capaz de realizar algo relevante. Responda-me: o 9º Ancião dos Xiaos ainda está vivo?

― Sim, meu lorde! As informações que recebi é que Xiao Chang sobreviveu e irá se recuperar, assim como o Alquimista. ― A voz de Colin tremia, temendo dar uma resposta errada e acabar mudando o humor “daquilo”.

― Bom! Significa que podemos tentar outra vez. Mas... um Alquimista, hm! Com a sua humilhação e agora o surgimento de um jovem promissor... Talvez os delírios de Xiao Dong não fossem tão fantasiosos quanto pensei.

Colin escutou os sons de passos se afastando.

― Você pode ir agora! ― disse a voz sibilante e indiferente.

E mesmo sem ter forças para ficar de pé, ele logo tratou de se arrastar para fora do salão subterrâneo. Entretanto, quando estava atravessando o portal, escutou um som abominável de carne mexendo, ossos partindo e o grunhido de não um, mas dezenas de homens. Sabia que não devia olhar para trás ou fantasiar a causa dos barulhos, pois os pesadelos seriam gentis se comparados a tal imagem inconcebível. Então rastejou até que não pudesse mais ver a caverna maldita.

 


Nota (importante) do Autor

Pois é! Finalmente o fim do volume. Já estava mais do que ansioso para isso.

Mas agora que chegamos aqui, irei dar uma pequena pausa nos lançamentos antes de começar o volume 2. Falarei mais sobre o retorno e tudo mais nas minhas redes sociais, então me sigam.

É claro que, apesar de pausar aqui, não irei ficar parado, pois voltarei com os capítulos de O Condenado ― Já passou da hora, né?

Enfim, uma coisa que gostaria de deixar avisado aqui, é que eu estou planejando um projeto no apoia-se, catarse.me e outros.

Eu falarei sobre isso um pouco mais pra frente, mas já vou dar esse spoiler: Vai ter sorteios mensais de livros, mangás e outras coisas. Além do mais, eu postarei contos inéditos e exclusivos lá e nessa parte, eu irei até mesmo escrever contos e histórias maiores com base nas coisas que vocês escolherem, tipo gênero de terror, comédia e nome de personagens, entre outras coisas. 

E é claro, vai ter assuntos relacionados a Um Alquimista Preguiçoso e O Condenado.

Legal, né?

Eu falarei mais sobre isso em breve nas recedes sociais, então, de novo, é importantíssimo que me sigam por lá!

 

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